Por José Castello
Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão.
Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.
O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.
Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um bom homem com duas sombras – uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?
É verdade que Raduan Nassar deixou desde muito cedo, por todos os lados, pistas do conflito que nunca resolveu. Ele continua em plena luta, só que agora as palavras se transferiram do papel para a dimensão mais fluida das entrevistas, dos seminários, das declarações; abandonou a personalidade de escritor militante para se tornar um entre tantos personagens híbridos da cena literária, escolha que pode ser vista, apressadamente, como um retrocesso. Mas será mesmo? Resta-nos pensar, como leitores estupefatos, que Raduan quer mas não quer – e isso só perturba. Há quem chegue a pensar até que sua atitude não passa de um jogo, aliás bastante banal, para chamar a atenção; outros preferem achar que Raduan está só fazendo uma ironia, e que seu jogo de esconde-esconde nada mais é que uma figura de linguagem – talvez um zeugma, forma em que o enunciado, uma vez excluído, na verdade permanece em cena, agora subentendido, e cada vazio (ou aparente negação) apenas o repete. Seja como for, Raduan conseguiu transformar a literatura num enigma, decisão que, contrariando os que veem nisso um jogo de aproveitador, só o torna um escritor ainda mais apaixonante.
A carreira de Raduan Nassar é breve. Lavoura arcaica, seu primeiro livro, é de 1975, e Um copo de cólera, o segundo, de 1978. Logo depois de publicá-lo, Raduan tomou a decisão repentina de parar de escrever. Mas ainda assim, já nos anos 80, transferiu sua pequena obra de editora e, mais tarde, permitiu que seu novo editor publicasse, em “edição comemorativa” datada de 1994, um antigo inédito, Menina a caminho, seu primeiro texto de ficção, escrito ainda nos anos 60 e que só havia aparecido numa remota coletânea de contos brasileiros publicada na Alemanha. Um pouco depois, Raduan resolveu também aceitar a edição de outros quatro inéditos, reunidos no volume Menina a caminho e outros textos, de 1997. Três deles foram escritos nos anos 70 e andavam mofando na gaveta, mas o quarto, “Mãozinhas de seda”, surgiu em pleno ano de 1996, como uma encomenda dos prestigiados “Cadernos de Literatura Brasileiro”, de cujo número 2 ele é o personagem de capa. Depois de terminar o conto encomendado, porém, Raduan não permitiu sua publicação nos “Cadernos”, atitude ambivalente que ilustre a cisão que carrega dentro de si. O escritor que decidiu parar de escrever ainda assim escreve, mas precisa esconder que escreve e por isso decide não publicar. Uma pergunta, que dividimos com muitos leitores, nos é então permitida: será que, entre quatro paredes, ele trabalha secretamente em outros livros?
Pode-se atribuir essa ambivalência às obrigações de um personagem, Raduan, “o Ex-critor”, conforme alguns amigos mais desconfiados e maliciosos gostam de brincar; um sujeito que, se escreve, é só para retocar sua imagem acabada – aquele retrato imenso fixado na capa dos “Cadernos”. Raduan talvez pense que esse “escrever por encomenda” não é escrever – é apenas se exibir, como os tenores que largam o palco do La Scala de Milão para se apresentar em shows populares no Central Park e não chegam a considerar que aquilo seja música, mas só uma complacência. A qualidade de “Mãozinhas de seda”, o conto encomendado, no entanto, desmente essa hipótese. Publicado mais tarde na antologia de inéditos, “Mãozinhas de seda”, além de ser um conto magnífico, revela alto teor corrosivo; mais que um conto, ainda que ostente a forma de uma recordação infantil, ele parece ser uma resposta antecipada que Raduan dá a seus futuros torturadores. Nele, o escritor medita sobre as vantagens do silêncio, ou pelo menos da ambiguidade, esse jogo de sombras que, como uma dançarina do Oriente, ele agora exercita diante de nós.
A primeira frase de “Mãozinhas de seda” já vem carregada de significados que extrapolam, em muito, o terreno do imaginário e configuram, mais que tudo, uma confissão pessoal. “Cultivei por muito tempo uma convicção, a de que a maior aventura humana é dizer o que se pensa”, ele começa. Ao contrário, o bisavô desse narrador dividido sempre lhe dizia: “A diplomacia é a ciência dos sábios.” E é sobre essa questão, entre o dizer e o silenciar, ou pelo menos o se conter em meias palavras, que o relato, de apenas sete páginas, se desenvolve. Surge, logo a seguir, a confissão de um vício que é, na verdade, um recado aos intelectuais de seu tempo: “Daí minha mania, se esbarro com certos intelectuais, de olhar primeiro para suas mãos, mas não só. Tenho até passado por algum constrangimento, pois me encaram com um viés torto no olhar, se, como bom empirista, demoro demais no aperto de mão.” O contato com as mãozinhas de seda dos intelectuais pedantes, com seus melindres, vaidades e suas questões de prestígio, desencadeia uma longa meditação e nele inspira até ânsias de vingança. “Eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: o rosto”, Raduan escreve. Esses homens cultos não passam de seres desencarnados, que tem corpos gelados como os dos vampiros, vultos que, mesmo atravessando milhares de páginas, não chegam a aprender a ler.
Enfurecido, Raduan (ou seu narrador) diz mais: “Tenho notado também que estão entregues a um rendoso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito”, que é tudo aquilo de que ele, o escritor que desistiu da literatura, deseja escapar. Mas, depois de escrever o conto, Raduan Nassar decide não entregá-lo aos “Cadernos de Literatura”, e nesse gesto aparecem seu decoro e timidez, sentimentos que, mais tarde durante a longa entrevista que concede à publicação, não conseguirá mais controlar. No fecho de “Mãozinhas de seda” aparece ainda a reflexão: “Custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata, cumprindo à risca a antevisão de regozijo do bisavô.” Mas, na última linha, entre recatados parênteses, ele arremata: “(Saudades de mim!)” É o desabafo de um homem que já não tem certeza de que se pertence. Se ainda é um homem, ou se é apenas a máscara que aceitou vestir.
Há, entre esses inéditos de juventude publicados em 1997, um outro relato, “Aí pelas três da tarde”, que também merece atenção, já que traz, desde tão cedo, o desejo de parar, de silenciar. “…largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo ciao ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida”, ele escreve. Escolhendo o tempo imperativo, o narrador ordena a seu personagem que, em pleno meio de tarde, volte para casa e, sem pressa, sem alarido, simplesmente fuja da obrigação de escrever. E que depois, desistindo de tudo, vá ao terraço e se deite na rede envergada entre plantas. “Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho”, ele sugere. Vinte anos depois, Raduan, mesmo cheio de dúvidas, cumpre o desejo de seu narrador e abandona a escrita.
Não é, porém, uma decisão fácil e envolve muitas contradições. Quem não deseja mais ser escritor, ou ser visto como escritor, não continua a cuidar com tanto zelo da própria obra, não remexe as gavetas em busca de inéditos, tampouco se oferece como personagem de capa da maior publicação especializada em literatura do país – os “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pela Fundação Moreira Salles, de São Paulo. Não aceita a adaptação de um livro seu para o cinema – como o recente projeto de filmagem do romance Um copo de cólera. Quem não quer aparecer simplesmente desaparece, mas Raduan, depois de um tempo de recolhimento, passou a aparecer mais ainda, e por isso sua recusa à escrita passa a ter, para os mais desconfiados, a aparência de uma provocação. Quem simplesmente deixou de escrever, preferindo o recolhimento, não quer mais saber dos constrangimentos da publicidade; mas Raduan se deixa submeter, e só podemos pensar que alguma vantagem tira disso.
Quem não quer mais saber de literatura não dá palestras no exterior, não aceita convites para feiras e seminários, não continua a se comportar como escritor, seja lá isso o que for. Não dá entrevistas para grandes jornais, ou revistas, nem aceita homenagens públicas – e aqui temos os paradigmas clássicos: no Brasil, Dalton Trevisan, e no exterior, J. D. Salinger, dois escritores que têm alergia ao mundo. Na abertura de seu romance mais famoso, O apanhador no campo de centeio, de 1945, Salinger escreve: “Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso.” Raduan, ao contrário, mesmo hesitante, submete-se à “lengalenga” da publicidade e fala, sem parar, de si.
Há portanto um enigma na escolha de Raduan, opção por um silêncio que é, na verdade, bastante ruidoso. Ele parece ter abandonado o ofício de escritor, mas não o papel de escritor – e aqui faz um movimento oposto ao de uma escritora tímida, sufocada em conflitos, como Clarice Lispector, que não gostava de ser chamada de escritora, fugia dos rituais que configuram a “vida de escritor”, mas ainda assim continuava a escrever furiosamente. É verdade que as duas novelas que Raduan publicou não podem simplesmente ser apagadas (embora ele, se quisesse mesmo fugir, pudesse até ter impedido sua reedição, o que seria uma decisão lamentável e tenebrosa, pois elas estão entre as melhores coisas escritas nesse país na segunda metade do século). E há também um desejo de exposição, de que ele retira um tipo escorregadio de prazer, e que não pode, no entanto, ser reduzindo à vaidade. Há algo mais forte em jogo, que é, a partir daqui, o que deve nos interessar.
Nesse ponto, a entrevista concedida aos “Cadernos de Literatura” está cheia de pistas preciosas. Insistindo em se apresentar como alguém que “abandonou a literatura”, Raduan ainda assim aceita ocupar o lugar do entrevistado – e ao repórter, é inevitável, resta o papel de seu torturador. Não sendo mais um ofício, a literatura aparece como aquilo que tem de mais essencial – mostra-se como uma espécie de vício, que de fato sempre é. Roubo aqui as palavras de E. M. Cioran a respeito de Paul Valéry: “Ele levou até o vício a mania de explicar-se.” Esse “ele” pode ser, também, Raduan, que, tendo desistido de escrever, não se cansa de explicar por que desistiu de escrever. O mais perturbador é que, ao continuar a se explicar mesmo depois que os textos silenciaram, Raduan nos deixa diante daquilo que não se explica, condição de que ele, ao contrário dos interrogadores que o torturam, tem absoluta consciência.
Mas, com um pouco mais de paciência, é possível ver o que incomoda Raduan Nassar e também o que ele e seu entrevistador anônimo no depoimento aos “Cadernos de Literatura”. Fixo-me nessa entrevista porque penso que nela, mais que em qualquer outra, Raduan, acuado por um repórter severo que lhe cobrava “posições literárias” e respostas “de escritor”, acaba por revelar o paradoxo em que decidiu viver. Raduan é o que “já não é”, mas ainda é “o que continua sendo”. Não pode fugir do que fez e não esconde o justo orgulho que retira do que fez, argumentando apenas que nada mais tem a dizer. A literatura é, assim, empurrada para o passado; mas sua sombra persiste no presente e se projeta para a frente, como um destino de que ele já não pode se livrar. Talvez como uma condenação.
Raduan nos põe diante do inexplicável, e esse inexplicável inclui até o motivo que o levou a deixar de escrever. Sempre que é solicitado a dar uma entrevista, ele primeiro responde que “não”. Nada tem a dizer, argumenta, não há por que falar sobre o que já não o interessa. Mas as entrevistas não param de ser publicadas. Raduan Nassar permanece nesse espaço turvo entre a obra e a figura de escritor que a obra, à sua revelia, constrói. Estamos diante de um triângulo: primeiro, há o escritor; e simultaneamente, pois ela o constitui, a obra; e por fim, luminosa mas despregada dos dois, a imagem pública do grande escritor, isto é, a máscara. É contra essa máscara, me parece, que Raduan passa a lutar. Desistindo de escrever, Raduan não desiste porém da máscara de escritor. Expondo-a como um objeto vazio, ele consegue mostrar tudo aquilo que ela guarda de artificial e de fantasioso. Desistindo de escrever, e se escondendo atrás da máscara, ele preserva aquilo que a literatura tem de mais escandaloso: a nudez do espírito.
Se a obra se concluiu, se esgotou, ele já não pode deixar de ser o que é. Já não é “o homem que escreve”, mas ainda é “o escritor”. A imagem depressiva do “ex-critor”, do homem que fala de seu ofício como algo que já se consumiu, é ainda aquela imagem que surgiu para compor o triângulo. “Ex-critor” ou não, Raduan não perderá o seu título. E depois, o fato de não mais escrever lhe dá, é preciso entender, um tipo especial de força. Raduan nada mais tem a defender: o que está feito. Conserva a imagem do escritor, mas já não precisa lutar por ela; não precisa conservar postura alguma, nem agradar, ou simular qualquer tipo de papel. Está sozinho com sua obra.
Volto à entrevista que Raduan Nassar concedeu aos “Cadernos”. Sua importância se deve menos às qualidades do repórter anônimo, que, justamente por se apresentar como anônimo, e como um especialista em “temas literários”, representa uma voz mais geral (a crítica, o saber universitário, o leitor culto, ou que nome se lhe queira dar), e mais à posição resistente, de combate, de Raduan. Ao ver seu esforço frustrado, o repórter se enfurece; e se instala então aquele mínimo de tensão sem o qual os alicerces da criação não poderiam aparecer. Se as respostas são negadas, ou são convertidas pelo escritor em novas perguntas, ainda assim obrigam Raduan a clarear sua posição “antiliterária” – e aqui será preciso definir muito bem o que essa expressão pode significar. Não se trata de uma postura contra a literatura, mas sim contra as exigências secundárias que o ato de escrever demanda. Um escritor tem suas obrigações: deve apresentar um original a cada dois anos, deve estar disponível para as cerimônias de lançamento, deve se oferecer como divulgador de si mesmo. Não se trata, provavelmente, de desistir da literatura, mas sim de abrir mão dos ritos que a envolvem e que hoje, num mundo dominado pelas regras de mercado, por fim a definem. Ser escritor, hoje, é comportar-se como escritor; é isso, provavelmente, que Raduan ironiza.
A princípio, a entrevista tem apenas a aparência de um duelo tedioso, que não leva a lugar algum. Compenetrado em seu papel de estudioso da literatura a devidamente amparado em um rol de perguntas formulado por eminentes especialistas, o entrevistador (talvez haja mais de um) tenta extrair, à força, uma “estética” das palavras de Raduan. Seu propósito fracassa, pois o escritor reluta todo o tempo em satisfazer esse desejo de teoria. No fim, contra as esperanças do repórter, o leitor fica com a resistência de Raduan Nassar, que maneja um instrumento, a criação literária, irredutível a qualquer sistematização, indiferente ao desejo de ordem, e que é tão solta e oscilante, o escritor nos diz, quanto a vida. Uma atividade tão humana e “suja” quanto criar galinhas.
Mas, feitas as contas, o esforço do entrevistador é compensado. Mesmo sem satisfazer seu desejo de clareza, Raduan termina por expor de forma contundente a perplexidade, a ausência de muletas, a intimidade com o acaso, aquela “sujeira” humana – e mais uma vez é preciso usar aqui as aspas como ressalva – que presidem todo trabalho criativo digno desse nome. Raduan acaba por mostrar que o escritor só pode trabalhar com as trevas. Ele deve ter sua disciplina, suas leituras, seus vícios, seus esquemas, suas muletas de toda sorte, mas quando está diante do papel, é a mente vazia que toma a frente, ou o que se escreve é só repetição, e não invenção. O escritor é um desemparado, que vaga às cegas, sem controle, mas de que lhe serviria? Não passaria de um entrave, ainda que tivesse a aparência de um trilho.
“Fosse o caso de forjar uma escora, quando muito se poderia falar na estética do bagaço”, propõe em dado momento da entrevista Raduan Nassar, vencido pelo cansaço. Pois o que se lê é a recusa de Raduan contra a obsessão de quem o entrevista. Para ele, mais importante que ler os grandes críticos, ou mesmo os grandes clássicos, é ler o “Livro da vida”. “Nunca senti muito apego pelos livros”, diz, para fúria de seu interlocutor, pois isso vem roubar à conversa aquela dignidade culta, aquele brilho que o repórter parece desejar. “Valorizo livros que transmitam a vibração da vida”, insiste Raduan, e nesse ponto pode estar pensando em paixões, em cenas banais do cotidiano, ou apenas em suas galinhas. Suas palavras, naquele contexto, parecem inacreditáveis, pois desarmam todas as regras do interrogatório, impedem a formação da polêmica, quebram as expectativas inerentes a qualquer entrevista – o repórter parece não entender, mas é justamente por isso que a entrevista funciona! O repórter reage em defesa da literatura, como se a literatura, seja ela o que for, necessite de defesa. “É difícil acreditar que você tenha passado ao largo da teorização estética”, comenta, perplexo, o repórter dos “Cadernos”. Mais à frente, ele não se controla e põe Raduan contra a parede. “Por que essa atitude de recusa radical em relação às teorias literárias? Você acredita que um autor possa dispensá-las?”, pergunta, quase ofendido, enquanto o escritor, desgastado, se limita a resistir.
A resposta que Raduan Nassar lhe dá é definitiva: “Por decisão mesmo, sempre me mantive a distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de assepsia.” E repete que o único pressuposto para alguém se tornar escritor é não a teoria, ou o saber acumulado, ou a bagagem de leituras, mas só a “leitura da vida”, o resto não passando de contaminação. Só através do apego à vida o escritor tem acesso ao bagaço – o sumo vital, que ele injeta nas palavras para transformá-las em escrita. Fazer literatura, podemos pensar, é como fazer sexo: manuais de boa conduta jamais substituirão o calor da experiência, conduzindo apenas à esterilidade, ou à falação vazia. E Raduan, atormentado, vai falando, mas ao mesmo tempo se irrita com o que fala, porque falar é realizar um jogo que não é o seu.
Mas fica então a pergunta – por que aceitou ser entrevistado? Talvez Raduan tenha desejado expor a absoluta incompreensão de que se sente vítima, condição que só poderia exibir entregando-se ao velho jogo das perguntas e respostas, encenando-o pacientemente para que, então, ela viesse a surgir. Entrega-se aos leões para demonstrar que os leões existem, e sai cheio de feridas, desgastado, porque não havia mesmo chance de vitória. As dezesseis páginas de entrevista terminam por compor, à revelia do repórter, um dos testemunhos mais radicais já produzidos no país a respeito do fazer literário – e da crítica que sobre ele se debruça. A entrevista interessa menos pelas respostas de Raduan às perguntas de seu interlocutor e mais por sua recusa em aceita-las, seu árduo exercício de resistência, seu empenho em não sucumbir. A postura reverente do repórter, que se prostra piedosamente diante da literatura, esbarra na relutância de Raduan em aceitar o papel de “teórico”. Se alguns sacralizam a voz dos escritores, Raduan Nassar não pode compactuar com eles. “No ritual de castração”, ele diz, justificando seu humor arredio, “foram sempre os seguidores que deram em oferenda os próprios testículos.” Foi dessa ablação que, com o silêncio, resolveu escapar.
Terminada a leitura da entrevista, podemos compreender por que Raduan Nassar tomou a decisão radical, e aparentemente intempestiva, de parar de escrever. O crítico José Paulo Paes pareceu chocado ao formular uma pergunta a respeito de uma declaração famosa do escritor: a de que “não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas”. Lembro-me inevitavelmente, e mais uma vez, de Clarice Lispector, que disse: “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.” Mas é claro: mesmo os melhores teóricos recusam-se a aceitar que a literatura, quando é para valer, se produz no domínio do privado, ali onde o mistério tem mais força que a convicção. Vivemos os restos de um século dominado pelo mito da ciência. Objetividade, aferição rigorosa, funcionalidade, sistematização, racionalização são nossos deuses. Esses pressupostos foram transplantados pelas ciências humanas para o mundo etéreo da criação. A entrevista dos “Cadernos” é exemplar porque ilustra a falência e o desespero dos especialistas diante do que lhes escapa. Toda teoria é sempre um pouco paranoica, cheia de ambições descabidas, delírios de clareza e perseguidores inexistentes. A entrevista termina por deixar à mostra a imensa coragem de Raduan. Seu silêncio, agora, já não parece tão insensato.
Não fosse por sua identidade ambígua, do homem que “é mas não é” escritor, Raduan não teria se dado (e nos dado) a chance de expor sua posição “antiliterária”. Ele decidiu habitar uma fronteira, adotando então o papel de sentinela, posição limítrofe que, ainda que tenha a aparência de um fracasso, é na verdade muito original. A posição de Raduan é bem diferente daquela exibida por escritores tímidos e rabugentos (Dalton Trevisan, J. D. Salinger, Rubem Fonseca…), que fogem e fogem de seus interlocutores até o cansaço por puro mau humor. Eles parecem ainda mais radicais, quando são, na verdade, mais conservadores. Continuam a escrever e, desaparecendo atrás dos livros, só se valorizam. Raduan, ao contrário deles, tomou a decisão de parar de escrever – e, ao contrário deles também, continua a se expor. Essa posição, que alguns consideram “exibicionista”, é na verdade muito corajosa. Ainda no papel que já não pode mais renegar, pois tem três livros publicados, Raduan no entanto se põe fora do jogo e, agora com as armas do livre-atirador, investe contra o tabuleiro.
A posição de sentinela empresta a Raduan Nassar uma independência que, de outra forma, ele não poderia obter. O repórter aproveita a distância que o escritor tomou de sua obra para incitá-lo a falar como um crítico; mas Raduan Nassar mostra, ao contrário, que em literatura não há conhecimento de causa, nem títulos ou saberes acumulados que garantam a competência de ninguém. O escritor escreve e isso lhe basta. É de fora que lhe imputam desejos, projetos, intenções, maquinações – como eu mesmo, aliás, trato de fazer aqui. A literatura, na verdade, é outra coisa: ou bem surge de um impulso interior, como algo que o escritor se obriga a dizer, ou nada será além de um lance de mercado. E hoje, quando o mercado parece onipotente, é bem sensato que, às vezes, se prefira o silêncio.
Uma rápida retrospectiva da vida de Raduan Nassar pode ajudar a compreender a posição ambígua, mas desafiadora, que ele decidiu assumir. Raduan nasceu em Pindorama, uma pequena cidade, hoje com cinco mil habitantes, situada no norte do Estado de São Paulo. Foi um menino agitado e atrevido, apaixonado por animais – entre eles, as galinhas. Quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, sempre respondia que desejava ser criador. Não criador de livros, ou de arte, mas criador de animais. A palavra criação, para ele, parece estar sempre impregnada desse primeiro sentido, e foi a ele que Raduan, ao desistir de escrever, retornou. Criador é aquele que faz nascer, não importa o quê. Galinhas, por exemplo.
A mãe de Raduan foi uma criadora de perus, e havia nesse ofício uma dignidade que as indústrias de hoje, com suas máquinas sangrentas de abate e esteiras de aves degoladas, fizeram desaparecer. Na infância, Raduan caçava borboletas e criava pombos. Na adolescência, criou peixes. Mais tarde, coelhos – em depoimento a Edla van Steen, em 1982, o escritor rememora que chegou a ser até presidente da Associação Brasileira de Criadores de Coelhos. São revelações singelas, desafetadas – como sua dificuldade infantil em pronunciar o r, que o levava a dizer que seu nome era “Haduan”, e não Raduan –, mas que parecem pegar o paradoxo de Raduan pela garganta. Nos tempos de escola, o futuro escritor desmentia sua vocação: tinha dificuldades com o estudo das línguas, inclusive o português. Sofreu também uma série de sete ou oito estranhas convulsões, que o acometeram no breve intervalo de dois dias, quando ainda estava na quarta série do ginásio, causando-lhe a perda temporária de memória. Primeiro, elas foram diagnosticadas como efeito de um vírus estrangeiro, de origem imprecisa, mais tarde como vulgares “epifenômenos da adolescência”, o que evidentemente nada quer dizer. As crises trouxeram mudanças radicais no comportamento do futuro escritor, que se tornou um menino muito fechado e, efeito mais benéfico, voltou a ser um bom aluno. Surgiu, como sequela boa da doença, o grande leitor, o que abriu caminho para todo o resto. A literatura o esperava logo à frente.
Depois, Raduan cursou até o quinto ano da faculdade de Direito, e dela desistiu para estudar Filosofia, guinada que atesta seu empenho no pensamento. Mas a USP não era seu destino. Escreveu Lavoura arcaica, romance em que recupera a atmosfera da infância, entre 1969 e 74 – mas dois terços do livro foram efetivamente escritos durante oito meses do ano de 1974, período em que, metódico, trabalhou todos os dias. Escreveu livros curtos, disse, mesmo à custa de longos períodos de trabalho, porque não simpatiza com exageros e excessos. Também não simpatiza com teorias. Há, na longa entrevista que concede a Edla van Steen, pelo menos um momento emblemático. Raduan diz: “Tenho cruzado com gente erudita que é tão perdida quanto uma dona de casa em meio aos eletrodomésticos. Me dá em geral a impressão, o erudito, de que não sabe combinar informações; a dona de casa, de que não sabe mexer com os botões.” A essa altura, ele já afirmava a tese de que, para o escritor, a teoria só traz destruição. “Nada pode contra a soberania do leitor, quando essa soberania, está claro, é conquistada, o que é raro. Para o leitor independente, que não tem vocação para a obediência, as autoridades no assunto perdem a existência.” A teoria se afirma através da noção de autoridade, ainda que autoridade atribuída ao saber, e faz dela uma ética, já que se anuncia como representante da verdade e, manipulando os conceitos de bem e mal, procura sempre se impor. Raduan, é claro, está mais uma vez se definindo. Que não esperem dele ideias sobre o que faz; e, para evitar mal-entendidos, já que nossa cultura liga a criação à crítica de modo tão inexorável, que agora não esperem nem mesmo que faça.
Recusando a literatura, Raduan parece se tornar mais livre para dizer tudo o que pensa, sem nada precisar defender. E mais livre até para escrever secretamente. Essa constatação é perturbadora, porque o espaço de liberdade que ele conquista ao abandonar a escrita é, por definição, a marca do literário, aquilo que o define e o distingue da retórica, da teoria, das divagações e outras manifestações da língua. Raduan, no entanto, teve abrir mão de si, teve que deixar de escrever e bradar isso com orgulho, para reconquistar o que nunca deixou de ser seu. Situando-se “fora da literatura”, na posição do comentarista sem compromissos que especula a respeito do passado, a liberdade lhe é restituída. A história de Raduan exibe os desconfortos, os desgostos, as pressões a que os escritores, e os artistas em geral, estão sempre expostos. Ele precisa se descolar dessa identidade, recusá-la, para então existir. Só assim, na recusa, pode voltar a fazer uso da palavra sem que essa lhe pareça roubada, vigiada, ou ferida pela ingerência alheia. Ao se permitir falar o que bem entende, e mesmo sem escrever, Raduan se afirma como escritor, mas só os que estiverem mais conectados aos textos que às ideias sobre os textos poderão compreendê-lo.
Ao optar pela criação de galinhas, e a ela nivelar, em posição de desvantagem, a criação literária, Raduan Nassar restituiu à literatura um vigor que havia muito lhe tinha sido tomado. Esse sacrifício, pois evidentemente há uma abnegação em tudo isso, só o enobrece. Era preciso que um escritor, um grande escritor, se negasse a aceitar parte do status que a obra lhe confere para que pudéssemos pensar mais seriamente no quanto a literatura é hoje manipulada. Quantos escritores conhecemos que são apenas título, como livros que tivessem só a capa e, dentro dela, nada mais que um miolo vazio? Pena que, com essa recusa, Raduan tenha sacrificado também a obra, e nossa esperança de leitor é que isso seja só um evento transitório, o desafogo de um mal-estar, ou quem sabe até uma simulação bem planejada. Separando-se da máscara, permitindo que ela tome toda a frente da cena, Raduan tem a chance de se livrar dela, permitindo que ela seja apenas aquilo que é – um disfarce. Há alguém por trás da obra, mesmo quando ela não existe mais, ou quando deixou de se multiplicar; há um homem que a precede, mesmo quando, para ler um livro, não precisamos nos lembrar desse homem. É isso, essa obviedade que teimamos em esquecer, que Raduan, sendo mas não sendo um escritor, insiste em nos lembrar.
Volto a Clarice Lispector, que, ao ler um romance pela primeira vez, perguntou-se de que maneira os livros nasciam, e só muito mais tarde, ao descobrir que havia um escritor por trás de cada livro, pôde entender o que eles guardam de vivo. Em O ventre seco, um texto do início dos anos 70, Raduan Nassar escreveu: “Já cheguei a um acordo perfeita com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe meu silêncio.” A máscara, que continua a matraquear, é agora só um artefato vazio. Quanto à literatura, Raduan nos faz ver, ela é bem outra coisa.
(Publicado no livro “Inventário de Sombras”, de 1999)