Por Joaquim Ferreira dos Santos
A Gisele Bündchen me gritava “Eu não sei sambar, cara, eu não sei sambar”, e eu ali, espremido feito um japonês na estação Shibuya do metrô de Tóquio, eu ali no meio da galera reportativa no camarote da Brahma tinha vontade de dizer que também não, gata, que por causa disso, por não saber dançar, como num anúncio antigo da minha infância, eu tinha perdido muitas oportunidades, chegado mesmo a pensar em fazer um curso na academia de dança do professor Moraes, mas que o problema era dela, onde já se viu?, ela estava ganhando U$ 150 mil, e que se o Nizan Guanaes me desse algo parecido para botar uma camiseta e segurar uma latinha de guaraná, eu poria um gás agradecido na cena, e dançaria não só o samba, mas o let kiss, a macarena, o bigorrilho, a valsa vienense, o escambau a quatro, tá ligada?, se o Eduardo Fischer, o gerente da Nova Schin, só pelo prazer de provocar a concorrência, me desse tamanha nota, eu me obrigaria a mais, meu bem.
Eu saberia direitinho, sem ter que ir ao dicionário agora, sem ser mais uma vez humilhado pela ignorância, eu saberia se a grana que a Gisele estava ganhando era uma soma “vultuosa” ou uma soma “vultosa” para colocar neste texto e seguir em frente nesta tentativa de acelerar a evolução da escola, não parar para pensar muito, de incorporar a prosa espontânea dos beatniks e relatar, como se me fosse escapulindo aos borbotões da memória, sem estilizar muito a coisa, sem perfumar demais a inculta e bela flor do Lácio que nos deram, as 48 horas que passei trancado nesses camarotes carnavalescos, lugares em que não se vê nada do desfile, mas em compensação você ocupa um milésimo de segundo na pupila azulada da Gisele Bündchen, percebe que a Carolina Dieckman bate na cintura da tua namorada, e descobre, quando vê passando o Fabio Assunção dentro de uns óculos enormes, que Deus é justo.
Deu um cabelo daqueles ao cara mas não lhe ensinou o fundamental, a necessidade sábia de imersões diárias, por mais que os olhos sejam lilases, por mais que a pele seja tenaz, Deus, em seu maravilhoso senso de ironia, negou ao galã a informação de que é preciso, para que a beleza não sobre marrenta demais, é preciso, para que a exibição do élan não vire Casseta e Planeta demais, é preciso repetir todo dia o mantra divino de “menos, baby, menos”, e tomar um banho de imersão no humildificador da crônica anterior, aquela cabine vendida em qualquer C&A, o Coração e Alma, em que todos devemos nos meter por alguns minutos para, seja Gisele, seja Fabio, perceber que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, é algo que os olhos não conseguem perceber, é uma necessidade de fazer menos pose, de descer do camarote, do salto agulha, de refletir sobre os valores menos bronzeados da existência e, como eu faço agora, dar um tempo, parar para pensar, respirar fundo, puxar o freio de mão, chutar o balde, dizer “comigo não, violão” e, ufa!, que correria insana, vamos abrir uma cerveja e ponto parágrafo também.
Bebe-se muita cerveja nos camarotes de carnaval da Sapucaí e quando é de graça, então, bebe-se mais ainda, por isso, quando a Gisele, desatendendo meus pedidos para sambar sambando e ficar melhor ainda na foto, quando ela disse que não sabia como dançar e preferiu posar abraçada com o Paul Allen, o careta milionário da Microsoft, eu achei que aquilo tudo era malte, lúpulo, cevada, um acontecimento relicário de real valor, achei que aquele auê de disparates fermentados, cheiro de lança-perfume o tempo todo no ar, aquela cornucópia toda de gente se azarando em quase-desespero dava um samba do cronista doido, uma versão carioca do filme “Encontros e desencontros”.
A única coisa a fazer dessa vez, graças a Deus, graças ao genial Laila, carnavalesco da Beija-Flor, não era tocar o tango argentino, o melhor a fazer era não fazer mais ponto parágrafo nenhum e atravessar a gramática na avenida Camões, era apostar nas vírgulas, pôr fé nas mulheres sampakus, juntar tudo correndo, como se fosse uma escola passando em 80 minutos, e tentar tirar algum nexo dessa vida off que são as 48 horas de prisão num camarote de cerveja, uma maluquice carná-bizarra onde você esbarra numa boxeadora do Big Brother, grita perguntas sobre o sentido da morte dentro da orelha viva do Drauzio Varela e ninguém tá muito ai, sabe como?
Tá todo mundo cansado de já ter visto tudo, ninguém liga se a fila do banheiro dos homens de repente ficou enorme porque dois caras foram às vias de fato dentro de uma das cabines, trancaram as portas, abriram as mentes e, desgovernados como um carro alegórico do segundo grupo, deram vazão ao prazer amoroso entre carnes iguais, tudo mais ou menos do mesmo jeito que estava na comissão de frente da Grande Rio, uma escola em que, aliás e a propósito, já que estamos nesta prosa beat-espontânea, nesta correria de assunto que puxa assunto, uma escola em que duas amigas chegadas, meninas criadas nas finas escolas do Rio de Janeiro, desfilaram de camisola num carro angelicalmente chamado de “Suruba”, as duas radicalizando em minha frágil alma de menino nem um pouco carnavalesco o drama de sempre, aquela música de Freud e Caetano sobre o nunca saber onde elas colocam o desejo, o nunca entender em que apoteose da existência essas doidas maravilhosas vão confundir ainda mais minha exaltação romântica e, como naquele baile antigo de Sábado de Aleluia, elas vão pegar no ganzê, botar a Gisele pra ganzá e cremar minhas tristezas.