Causos Políticos

A primeira eleição de Gláucio Gonçalves em Parintins

O saudosos ex-prefeito Gláucio Gonçalves
Postado por Simão Pessoa

Morto precocemente em 1978, aos 52 anos, José Raimundo Esteves foi um dos políticos mais brilhantes já surgidos no Amazonas. Sua empatia imediata com as classes mais humildes era simplesmente fascinante.

Nascido em Maués – era irmão do ex-prefeito do município, Carlos Esteves –, ele começou sua vida política em Parintins, onde se destacara como empresário bem-sucedido (proprietário de embarcações, de usina de pau-rosa e pequeno pecuarista).

Durante muitos anos, Zé Esteves, como gostava de ser chamado, exerceu o cargo de gerente regional do Sobral Santos, um navio de carga e passageiros, que fazia a linha Belém-Manaus.

Sua trajetória política foi meteórica. Ele se elegeu prefeito de Parintins em 1959, derrotando Antônio Maia, pai do festejado compositor Emerson Maia, que era apoiado pelo governador Gilberto Mestrinho.

Durante os dois anos em que comandou o município, fez um governo revolucionário, asfaltando as primeiras ruas de Parintins, colocando máquinas pesadas no arruamento dos bairros, elaborando um plano diretor da cidade e atraindo para o município as usinas de extração de óleo de pau-rosa e beneficiamento de juta.

Em 1962, interrompeu seu mandato de prefeito para disputar (e ganhar) uma cadeira de deputado federal pelo PTB.

Foi reeleito em 1966, pelo MDB, com a maior votação para deputado federal da história política do Amazonas, fato inédito, na época, para um político oriundo do interior. Em 1970, disputou a vaga para o Senado da República, pela Arena, derrotando o jornalista Andrade Neto, do MDB.

Ele deixou o Senado em 1977 para participar do governo José Lindoso, onde instalou a Secretaria de Estado da Indústria, Comércio e Turismo, tendo sido o seu primeiro secretário. Um câncer ósseo interrompeu sua carreira.

Em 1964, o pecuarista Raimundo Dejard Vieira, mais conhecido como “Didi Vieira”, se elegeu prefeito de Parintins e também fez um bom governo.

O deputado federal José Esteves

Em 1968, o deputado federal José Esteves seria o fiel da balança na escolha do sucessor de Didi Vieira.

Dois candidatos disputavam as suas bênçãos: Alberto Kimura e Gláucio Gonçalves.

Kimura recebeu o apoio do deputado estadual Rafael Faraco, um carismático orador albino apelidado impiedosamente por Esteves de “Periquito branco”, porque fazia muito barulho nos comícios.

O deputado federal ficou com Gláucio.

Naquela época, a chegada de um político do alto clero (deputados federais e senadores) numa cidade interiorana era um acontecimento digno de nota. Literalmente. A população inteira ficava no cais do porto, com seus tamboretes, cadeiras preguiçosas, guarda-sóis e sombrinhas, aguardando o ilustre cidadão, enquanto a bandinha da cidade tocava um dobrado atrás do outro.

De cinco em cinco minutos, os rojões explodiam no céu, assustando os urubus, as beatas e a criançada. A grande concentração popular tinha uma razão de ser: fazia parte da etiqueta o visitante ilustre distribuir alguns trocados, aleatoriamente, para os presentes. O quadro “Tudo por dinheiro”, do Silvio Santos, onde ele joga dinheiro para a plateia, deve ter surgido daí…

Por causa desses fatores exógenos, assim que a lancha conduzindo José Esteves foi avistada do porto de Parintins, descendo o rio Amazonas, a multidão começou a gritar como se o Brasil tivesse acabado de golear a França numa final de Copa do Mundo.

Ainda em terra, o candidato Gláucio Gonçalves e o deputado estadual Júlio Belém estavam mais nervosos do que de costume. Completamente “lisos”, eles aguardavam ansiosamente pela chegada de José Esteves, sonhando secretamente que o deputado estivesse cheio da “bufunfa”. Era isso, ou todos seriam trucidados pela massa enfurecida.

A lancha nem chegou a aportar direito no trapiche, e Gláucio e Belém, numa manobra típica de bucaneiros, já haviam abordado a embarcação para encostar Zé Esteves na parede. Júlio Belém era o mais nervoso dos dois:

– O caso é o seguinte, compadre: nós estamos numa campanha dura, numa campanha sem dinheiro e nós estamos aqui, na expectativa, se o senhor chegou com a “gasolina”, compadre! – explicou Júlio Belém.

Esteves saiu pela tangente e foi logo mudando de assunto. Virando-se para Gláucio, bateu de primeira:

– E aí, compadre, como é que está o nosso amigo Antônio Meireles?…

Os dois começaram a conversar animadamente sobre reminiscências antigas.

Cinco minutos depois, Júlio Belém faz uma nova investida e Esteves saiu de novo pela tangente. Na terceira vez que ele cutucou a fera, o deputado federal, com o olhar posto na multidão, falou o seguinte:

– Olha, compadre, eu tô sentindo que esse povo tá animado… Eu acho que nós vamos ganhar essa eleição…

Júlio Belém se desesperou:

– Pois é, compadre, mas eu estou sentindo que o senhor veio “liso”. E “liso”, nós vamos pegar porrada…

Sem perder a classe, Esteves tentou contemporizar:

– Calma, compadre, se acalme. A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais… Se acalme que no fim tudo vai dar certo…

– Mas como me acalmar? – trombeteou Belém. – Eu estou vendo na sua cara que o senhor veio “liso”, compadre! E “liso”, nós vamos pegar porrada…

Sem ligar para o nervosismo do deputado estadual, Esteves abraçou Gláucio e, juntos, se dirigiram para a proa da lancha.

A multidão, mesmerizada, entrou em histeria coletiva:

– Zé Esteves! Zé Esteves! Zé Esteves!

Ele fez um sinal para a multidão silenciar e emendou, de bate-pronto:

– Meus amigos, quero avisar pra vocês que estou com a lancha abarrotada de cascalho….

A multidão urrou de contentamento, como se estivesse torcendo pelos leões contra os cristãos, num domingo de festa no Coliseu romano:

– Pai d’égua! Pai d’égua! Pai d’égua!

Zé Esteves retomou o discurso, agora afetando indignação:

– Vocês acreditam que mal essa lancha aportou aqui na cidade, e essa lei eleitoral, que foi votada às pressas, já fez sua primeira vítima? Eu estou recebendo uma intimação do senhor Juiz de Direito, que acaba de colocar um oficial nesta lancha (e apontou para Basílio, um oficial de Justiça que era cabo eleitoral de Gláucio)! Pois bem, meus amigos. Mal essa lancha acabou de aportar e o oficial aqui presente, sequer, me deixa meter a mão no bolso!

A multidão reagiu furiosa, quase beirando a apoplexia:

– Juiz filho da puta! Juiz filho da puta! Juiz filho da puta!

Zé Esteves retomou o discurso, agora afetando uma bondade superior:

– Mas se tranquilizem! Podem escrever as cartinhas, pedindo o que vocês quiserem, e mandar pra mim. Vou atender todas as cartas que receber…

A multidão agora estava em transe mediúnico, como se acabasse de presenciar uma revelação celestial:

– Pai d’égua! Pai d’égua! Pai d’égua!

Gláucio Gonçalves discursando e Zé Esteves de olho no afilhado político

No dia seguinte, chegavam sacas e sacas de cartas na casa do Chico Ianuzzi, onde José Esteves se hospedava. A multidão, postada na frente da casa, ficava abespinhada. E entrava em delírio místico quando Zé Esteves dava um grito imperial para o seu principal aspone:

– Compadre Belaco, coloque com bastante cuidado todas essas cartas na lancha, que nós ainda temos de visitar a zona rural hoje à tarde…

Belaco fazia o solicitado, seguido de perto por uma procissão.

– Será que ele vai mesmo ler todas essas cartas? – perguntava alguém.

– Claro, parente, esse Zé Esteves é pedra noventa… – dizia outro.

No início da tarde, indo para a zona rural, mal a lancha atravessava o Paraná de Ramos, Esteves chamava Belaco e dava a ordem fatídica:

– Jogue as cartas no rio, que o boto é quem vai responder…

No dia seguinte, Zé Esteves ia pra rádio Alvorada e mandava ver:

– Meu amigo, minha amiga! Cheguei ontem da zona rural, mas quero informar que já estou atendendo duzentas cartas por dia. Não se avexe, que vai chegar a tua hora e a tua vez. Confia em mim e vota no meu candidato!…

A população, contrita, se encarregava de espalhar a boa-nova:

– Esse Zé Esteves é que é o homem. E se ele diz que o Gláucio é bom, é porque o Gláucio é bom. Vou votar nele!

Gláucio Gonçalves foi eleito prefeito com um pé nas costas.

Zé Esteves era danado!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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