Por Luis Fernando Verissimo
A audiência preliminar para determinar se O.J. Simpson vai a julgamento pelo assassinato da mulher domina o noticiário e a atenção dos americanos. Só para dar uma idéia: as transmissões ao vivo das sessões diárias da audiência fez as cadeias de TV cancelarem as novelas da tarde, e o público não está se queixando.
O O.J. Simpson show substitui com vantagem as novelas, aqui chamadas “soap operas”, ou óperas de sabão, desde os tempos do rádio, porque eram melodramas invariavelmente patrocinados por fabricantes de detergentes e artigos de banho.
Algumas das pessoas convocadas como testemunhas na audiência se transformam em celebridades instantâneas, como “Kato” Kaelin, um aspirante a ator que morava na casa de hóspedes de Simpson e não para de receber propostas de trabalho desde que fez seu depoimento.
Todos os envolvidos, de qualquer forma, no caso já receberam ofertas de dinheiro de publicações tipo o “National Enquirer”, uma revista semanal especializada em matérias como “Minha mulher fez amor com um extraterreno e agora vive comparando-nos”, para contarem o que sabem ou o que supõem. Nem dá para imaginar a quantidade de livros que sairão sobre o assassinato, e as fortunas que farão.
A audiência é um exemplo ao mesmo tempo do extremo a que os americanos vão com a idéia de que tudo que é notório é comercializável e do extremo a que vão, paradoxalmente, para proteger o direito de um cidadão.
Agora há poucas chances de que Simpson não vá a julgamento, mas dependendo de uma única decisão da juíza que preside a audiência preliminar, sobre a administração de certas provas, era possível que Simpson nem continuasse preso. Nem seria demais pensar em Simpson, daqui a algum tempo, fazendo comerciais de faca que supostamente usou para matar a mulher. O livro que fatalmente escreverá já é um best-seller certo.
O assassinato de Kennedy foi transformado na principal atração turística de Dallas. Tudo bem, o assunto tem interesse jornalístico e, na medida em que é uma homenagem ao presidente morto, também é a homenagem de milhões de texanos que se chocaram com o crime.
Mas Dallas representava o que havia de mais retrógrado e reacionário no país no tempo em que Kennedy – menos do que diz o mito, mas isto hoje pouco importa – tentava levá-lo em outra direção. Panfletos contra Kennedy estavam colados nos postes ao longo do trajeto que o levou a morte.
Simbolicamente, Kennedy foi executado por Dallas, independente de quem puxou o gatilho, ou os gatilhos. Meu protesto também foi simbólico.
Não paguei os três dólares para entrar no edifício de onde saíram os tiros, segundo o relatório.
O.J. Simpson, sabe-se agora, era um homem violento e já tinha batido na mulher. Mas talvez a tenha matado (se é que matou) levado pela certeza de que sua celebridade de certa maneira o protegeria, o eximiria de suspeita.
A celebridade tornou-se um valor independente nos Estados Unidos, o centro do seu próprio universo moral. Seu valor é definido pela cotação no mercado. Nada é tão rentável nos Estados Unidos hoje quanto a celebridade, e tanto faz a celebridade se dever à invenção de uma nova vacina ou ao decepamento de um pênis.
Existe uma lei nova proibindo as pessoas de ganharem dinheiro explorando o próprio crime em livros (“Como matei mamãe”, etc) e reportagens mas nada impede que outras pessoas envolvidas lucrem com sua proximidade ao crime.
Todos os participantes do julgamento do Simpson já são celebridades, a família da mulher assassinada já tem um agente cuidando dos seus contatos, o juiz já contou sua vida desde a infância para a TV e a promotora já deu palpite sobre quem deve desempenhar seu papel quando fizerem o filme.
O.J. Simpson, o homem que entrou no mundo dos seus sonhos com tanta facilidade que devia se imaginar à salvo de qualquer represália, deve se sentir um pouco como o Gatsby de Fitzgerald quando descobriu que a promessa da América era uma armadilha.
A celebridade lhe garante uma defesa de primeira e talvez garanta um bom veredito, mas a celebridade não o suspendeu acima do bem e do mal. E embora ele pensasse que tivesse atravessado a fenda para sempre, a celebridade não impediu que seu caso se transformasse, no fim, em pretos contra brancos. Como sempre.