Humor

A Cigana Búlgara

Postado por Simão Pessoa

Por Luis Fernando Verissimo

A família era tão grande que, quando contaram ao dr. Parreira que seu sobrinho Geraldo tinha viajado para a Europa, ele precisou ser lembrado: qual dos sobrinhos era, mesmo, o Geraldo?

O Geraldinho da Nena. Largou tudo e foi para a Europa.

O dr. Parreira sorriu. Desde pequeno o Geraldinho, filho único de mãe devotada e pai rico, fazia tudo o que queria. Lembrava-se dele criança, comendo espaguete com as mãos e limpando as mãos na toalha. E a Nena, mãe de Geraldinho, como se não fosse com ela. O dr. Parreira ainda chamara a atenção da irmã:

Olhe o que seu filho está fazendo.

Deixa o coitadinho se divertir.

Na adolescência, Geraldinho se metera em algumas encrencas. Uma vez até tinham recorrido ao dr. Parreira, o tio mais velho e mais bem relacionado, para livrá-lo do castigo. Uma aventura amorosa que acabara mal. Mas não era má pessoa. Apenas um vagabundo mimado. E, na opinião de todos, o mais simpático da família. Geraldo anunciara em casa que estava indo para a Europa e, apesar do choro da mãe, convencera o pai a financiar a viagem, e seu sustento na Europa até “conseguir alguma coisa”.

Vez que outra, o dr. Parreira tinha notícias do Geraldo. (“Quem?” “O Geraldinho da Nena. O que foi pra Europa.”) Geraldinho estava lavando pratos em Londres. Geraldinho estava ensinando surfe em Paris. (“Surfe em Paris?!”) Geraldinho estava colhendo morangos na Suíça. Geraldinho tinha conhecido uma moça. Geraldinho estava namorando firme com a moça. E, finalmente, a única notícia que interessou ao dr. Parreira, pelo menos por dois minutos: a moça era cigana, de uma tribo búlgara. Depois: Geraldinho brigou com a moça.

(Todos sacudiram a cabeça, afetuosamente. “O velho Geraldinho de sempre.”).

Depois? Geraldinho desapareceu.

Como, desapareceu?

Há dois meses não têm notícias dele. A Nena está desesperada.

Pediram ajuda ao dr. Parreira, que, como o mais velho, assumira o papel de patriarca da família depois da morte do pai, o Parreirão. Mas, antes que o dr. Parreira entrasse em contato com o Itamaraty, chegou a notícia terrível.

Geraldinho estava num hospital em Berna. Tinha sido castrado e só choramingava, pedindo a mãe. Nena e o marido, Alcides, embarcaram imediatamente para a Suíça. Ao chegarem ao aeroporto de Zurique pegaram um táxi e descobriram tarde demais que era um táxi falso, que os levou para um galpão fora da cidade onde o Alcides também foi castrado e a Nena marcada na testa com um ferro em brasa com as três iniciais (soube-se depois) da frase, em búlgaro, “Mãe da besta”. Dois primos mais velhos do Geraldinho também embarcaram para a Suíça e também foram sequestrados, no caminho para Berna.

Não foram castrados, mas até prefeririam isto ao que passaram nas mãos de um bigodudo enorme chamado Ragud, que os outros incentivavam com frases em búlgaro (soube-se depois) como “Agora a posição do touro apressado, Ragud!”

O dr. Parreira convocou uma reunião da família para decidir o que fazer. Não seria prudente mandar outros familiares à Suíça, onde evidentemente todos corriam perigo. O consulado brasileiro daria a assistência necessária aos hospitalizados e as autoridades suíças investigariam os atentados. Enquanto isso, alguém saberia dizer o que o Geraldinho tinha aprontado com a cigana búlgara? Ninguém sabia. Mas alguém lembrou que os ciganos búlgaros eram famosos por serem vingativos.

O melhor – disse o dr. Parreira – é ninguém da família chegar perto da Europa, até que esta coisa passe.

Mas quando a “coisa” passaria?

Poucos dias depois da reunião da família em que tinham concluído que pelo menos no Brasil ninguém corria perigo, o dr. Parreira foi acordado no meio da noite com a notícia de que uma das suas fábricas estava em chamas. Fora invadida por um grupo, que escrevera uma frase em búlgaro numa parede antes de começar o incêndio. A frase era (soube-se depois): “Todos pagarão, até a terceira geração.” Até a terceira geração!

As crianças não vão mais à escola e a família contratou segurança armada para 24 horas, e mesmo assim entraram na casa da coitada da dona Zizica, viúva do Parreirão e mãe do dr. Parreira, e escreveram uma palavra em búlgaro no seu lençol que ninguém teve coragem de traduzir para a velha – e tudo por culpa do Geraldinho, seu neto favorito. Todas as empresas da família têm recebido ameaças constantes, explosões são frequentes nas suas instalações e a falência próxima do grupo é inevitável. Mas a vingança dos búlgaros não cessará. Continuará até a terceira geração.

Preso em casa, atrás de barricadas, com medo até de chegar na janela, o dr. Parreira amaldiçoa a irmã pelo que fez, ou pelo que não fez, com o Geraldinho. Um único tapa na mão, um único “Não!”, e tudo aquilo teria sido evitado. Mas Geraldinho podia comer espaguete com as mãos sem apanhar e o resultado estava ali. Todos sofriam pelo que ele tinha aprontado com a moça, fosse o que fosse. Provavelmente o mesmo que fazia com todas as moças que conhecia, nada grave: namoros inconsequentes, promessas e mentiras simpáticas ― só que nenhuma das moças era uma cigana búlgara.

E chegou a notícia de que um grupo invadira o cemitério e pintara insultos em búlgaro no túmulo do Parreira pai. No túmulo do velho Parreirão!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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