Humor

“Penso a vida através do humor”, diz Nani

Postado por mlsmarcio

Cartunista, chargista, roteirista e escritor, um dos grandes nomes do humor brasileiro, membro de proa da geração do lendário O Pasquim, junto de nomes como Jaguar, Henfil e Millôr, o fodástico Ernani Diniz Lucas, mais conhecido como Nani, nasceu na cidadezinha mineira de Esmeraldas, onde começou a fazer seus primeiros esboços com 13 anos de idade.

Com 20 anos, publicou seu primeiro desenho no jornal O Diário Católico. Trabalhou até os 22 nesta publicação, idade em que começa a enviar material para O Pasquim, que deu a Nani projeção nacional. Graças ao Pasquim, muda-se para o Rio de Janeiro em 1973.

Dono de um traço limpo e humor contestador, o artista faz graça de tudo, como ele mesmo diz: “O humorista tem que ser plural. Ele não pode ser um especialista em humor setorizado: de política, de futebol, de piadas feministas etc. Ele atira em todas as direções, sempre na contramão, sabendo que, às vezes, é o melhor caminho”.

Nessa entrevista, Nani fala sobre seu início na profissão de cartunista, os anos de participação no jornal O Pasquim – o mais importante veículo de oposição à ditadura militar no Brasil –, a censura na época da ditadura e a censura atual, que para ele é velada. “O politicamente correto está contaminando toda a cultura”, afirma.

Quando você começou a desenhar e como o humor entrou nos seus desenhos?

Como profissão, eu tive um estalo quando aos 13 anos, vendo uma revista de humor chamada Vamos Rir – que publicava cartuns estrangeiros variados –, eu disse: isso eu sei fazer. Na mesma hora sentei e fiz o meu primeiro cartum, com um desenho (muito ruim) de dois piratas com ganchos, um dizia para o outro: “Conheço essa região como a palma da minha mão”. A partir daí, eu desenhava freneticamente nas horas vagas, bolando cerca de quarenta cartuns por dia. Procurava temas nos cartuns das poucas revistas que chegavam em Esmeraldas, cidade do interior de Minas, e no jornal O Cruzeiro, com influência do Millôr, Carlos Estevão e do Henfil. Daí que resolvi batalhar para ser cartunista, pois eu pensava: se há tantas pessoas desenhando humor é porque isso é uma profissão.

Você começou a publicar seus trabalhos profissionalmente em Belo Horizonte. Quando aconteceu sua aproximação com O Pasquim?

Dos 13 anos aos 18 morei em Esmeraldas. Desenhando todos os dias, eu fui de certa maneira me formando como cartunista. Quando fui para Belo Horizonte, em 1969, encontrei O Pasquim nas bancas, ano em que o jornal havia surgido. Foi uma epifania, era naquele jornal que eu queria estar um dia. Aos 20 anos comecei a publicar no jornal O Diário, de Belo Horizonte. Meu humor chamou a atenção de um editor que me convidou para ir ao Rio de Janeiro para trabalhar no O Jornal. Ao chegar lá, tive contato com Henfil, que me mandou ir para a redação do Pasquim e me colar no Jaguar. “Jaguar sabe tudo”, me disse Henfil. E eu fui encher o saco do Jaguar. Fiquei no Pasquim até o seu final.

 

Como foi a sua experiência de trabalho nessa imprensa alternativa, em plena ditadura?

Minha geração cresceu com o pecado original da ditadura. Fazer charges no período era mais complicado por causa da censura. No Pasquim tínhamos que mandar o triplo de material para que, depois do feroz crivo dos censores, sobrasse material para o jornal ser feito. Não mandávamos originais porque eles vinham rabiscados com pilots – não havia respeito pela obra de ninguém. Se o Picasso mandasse um desenho que os censores não gostassem, eles rabiscariam também. Os tempos eram de terror, Ziraldo dava o nome de advogados para as esposas e namoradas dos cartunistas, para que, caso alguém sumisse, procurassem ajuda. O humor que fazíamos era humor de guerrilha. A censura era ridícula. Uma vez saiu uma notícia que dizia que no Pão de Açúcar havia urânio. Alguém escreveu uma dica dizendo que ia testar usando o contador geiger. Censuraram alegando que estavam chamando o Geisel de contador e ele era general. Alguém escreveu “uma próspera comuna mineira”. Os censores cortaram o comuna, achando que se referia ao comunismo.

Você pode dar mais exemplos das contrariedades cometidas contra a imprensa nessa época?

O Pasquim foi bombardedo, jogaram uma bomba na casa onde o jornal funcionava. Bancas foram explodidas. Isso afetava as vendas, pois os jornaleiros se recusavam a vender o jornal. Ziraldo, Jaguar, Paulo Francis, Fortuna, Flávio Rangel, Luís Carlos Maciel, Sergio Cabral foram presos. Outros veículos alternativos como Opinião e Movimento também sofriam por causa da censura. Mas o Pasquim foi importante porque entrevistava os exilados, apoiou a anistia e lutava desde o primeiro número contra a ditadura. Outros temas também foram lançados pelo jornal, como a ecologia. O Pasquim foi o primeiro a falar sobre a causa ecológica.

Atualmente, existe algum outro tipo de censura?

Hoje a censura é pior porque ela é velada, é a censura do politicamente correto. Humor que pede licença não é humor. O politicamente correto está contaminando toda a cultura. Cada vez mais grupos, grupelhos, guetos, classes, pessoas públicas e privadas reivindicam imunidade contra a crítica. O humor tem que ser crítico, ora. A liberdade de opinião é cada vez mais filtrada, o que temos hoje é uma liberdade “Melita”.  Isso afeta os meios de comunicação, que ficam se cercando, adivinhando processos que podem sofrer se vão contra o politicamente correto.

Você faz humor, escreve e faz cartuns… Como é administrar essas diversas manifestações de um mesmo talento?

Precisamos do humor para não morrer de realidade. Penso a vida através do humor. O humor é o menor caminho entre duas pessoas. A primeira coisa que o pai faz com o filho é um ato de humor: faz careta para o filho rir. Todos querem o riso através da vida, o riso que pode ser traduzido em felicidade. O espantalho é colocado na plantação não para espantar os pássaros, mas para que eles riam e achem o fazendeiro um cara legal. Como artista é o que eu gosto, levar o riso às pessoas – este riso que envolve crítica, conhecimento, poesia e simples divertimento. Daí eu expressá-lo desenhando, escrevendo para ser lido ou interpretado. Gostaria de ter mais veículos para mostrar muita coisa que tenho inédita. Minhas gavetas estão cheias. A única coisa que não fiz em humor foi escultura, mas um dia ainda pretendo fazer uma escultura engraçada.

Como o cartum conseguiu ter um espaço tão grande na imprensa sendo, muitas vezes, contrário ao editorial?

O desenho foi importante no início da imprensa quando não havia fotos. As charges sempre fizeram parte de um jornal. No Brasil houve um tempo que ela era chamada charge editorial porque saía na página dos editoriais. Na época da ditadura, as charges diziam coisas que as matérias dos jornais não podiam dizer, daí os jornais que não tinham, passaram a ter. Quando acabou a censura alguns jornais dispensaram os chargistas. Tirando algumas exceções, a charge hoje é ilustrativa do fato do dia, poucas charges têm opinião. A charge de opinião sumiu dos jornais brasileiros, talvez já sendo um reflexo do politicamente correto. Sendo a charge uma manifestação crítica e símbolo da liberdade de imprensa, eu acho que é muito importante um jornal tê-la em suas páginas, porque mostra a independência desse jornal. A charge é a quarta leitura que o leitor faz do jornal. Primeiro a pessoa lê a manchete, depois lê a notícia, depois o comentário de um articulista ou o editorial e depois vê a charge, que é a quarta leitura e, às vezes, a mais verdadeira sobre o fato.

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