Humor

Um sabiá

Postado por Simão Pessoa

Por Ivan Lessa

Estou vivendo há duas semanas uma crônica de Rubem Braga. Aprovaria o Sabiá da Crônica esta introdução? Eu espero que sim, pois diz respeito a passarinho, tão a gosto do cronista. Minha casa tem cinco janelonas, todas elas dando para jardim comunitário, cada uma das janelas tem sua caixa de flores – mal traduzindo, literalmente, os tão populares vasos de janela que todo inglês de estirpe que não tem jardim adota e cuida.

De duas semanas para cá, aproveitando esta primavera frouxa que chove sobre Londres, deu para aparecer na janela da sala um passarinho toda manhã, entrando com aquela cara assustada e meio tola, piscando os dois olhinhos de semente de mamão, chegando mesmo a ensaiar dois ou três passos desajeitados na mesinha colada na janela.

Eu não entendo nada de passarinho: mal reconheço um pombo, de gaivota eu já me esqueci e papagaio só em anedota. Minha filha, chamada por mim para identificar, não teve dúvida: “É um robin.” Fui ao dicionário, lá estava, robin: pisco de peito ruivo, variedade de tordo americano. Bem, peito ruivo tinha e piscava, sim senhor; tordo? capaz; americano? pouco provável.

Eu passo ao Aurelião: gênero de pássaros da família dos turdídeos, de plumagem de fundo branco sujo, com manchas escuras. Não tinha por onde: era meu robin, talvez eu, seu Batman. O Aurélio ainda me remetia ao sabiá, pedindo-me que com ele o comparasse e o confrontasse. Na ausência de um espécime com que comparar e confrontar, deixei por sabiá mesmo. E pronto, um sabiá me confrontou.

Deixei na janela um pouco do cereal matutino que minha filha toma com leite: o sabiá foi firme, limpou o prato ou parapeito da janela. No outro dia, comprei na loja de departamentos, na Selfridges, uma lata de requintadíssimo alpiste variado de ilibada reputação internacional – o sabiá merecia.

Espalhei pela janela as sementes num padrão atraente a meus olhos. Manhã seguinte lá estava o sabiá bicando. Dei repeteco umas duas vezes, o sabiá levou tudo.

Na janela, mandei minha mensagem telepática: “vai, rapaz, aproveita que eu sou principiante nisso, chama os amigos, traz a família, quem bem entender, a boca é livre e hoje quem paga sou eu” – embora, confesso, eu torcesse para que ficasse só ele mesmo na jogada. Seria um relacionamento meio intimista, afinal de contas eu sempre fui e sempre serei pessoa muita exclusivista.

Nesta batida ficamos nós uns dois dias, daí choveu, o alpiste molhou, o vento espalhou, o sabiá se mandou para onde quer que os sabiás se mandam quando o tempo e as janelas fecham.

Anteontem fez sol. Quase como o dono do restaurante que reabre depois das férias para o pessoal da casa, espalhei a alpistarada toda na longa mesa e fui ler esperando o sabiá. Nada.

Vai ver sabiá prefere comer de noite, vai ver este meu sabiá é boêmio, leva vida desregrada, está tentando esquecer de uma sabiona que se mandou com um sabião mau caráter lá para Edimburgo. Espalhei alpiste de noite. Nada. O alpiste lá, como prato de espinafre que eu deixava quando menino.

O sabiá sumiu, a lata de alpiste está lá, quase pela metade. Estou com raiva do sabiá. Vai ver é tordo mesmo, deve ser tordo, e pior, tordo americano desses horrendamente cafajestes – com dor de cotovelo, consolo-me. Inclusive eu nunca vi plumagem branca mais suja que a dele, janela de casa serventia da rua, bicho burro!

Pra ser sincero, ainda espero a volta do sabiá. Talvez volte amanhã, talvez volte na quinta-feira. Eu compreendo essas coisas, já sumi muito na minha vida, umas vezes voltei, outras não.

Mas eu sou eu e o sabiá é o sabiá, nós não temos experiência um do outro. Na janela, de lata na mão, aguardo: feito um mendigo, feito um pescador num fado, feito um sambista num samba.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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