Por Luís Fernando Verissimo
Como o personagem do poema de T. S. Eliot que podia medir sua vida em colherinhas de café, podemos medir nossos 28 anos em Copas do Mundo na busca de um novo título. Desde o fiasco na Inglaterra, em 1966, foram sete, cada uma correspondendo a uma etapa no nosso relacionamento com o futebol, ou com a seleção, que é o futebol depurado das suas circunstâncias menores, e, portanto, com o país.
Em 70, João Saldanha simbolizava, de certa maneira, nossa ambiguidade com relação à Seleção. O país que ela representaria no México, o “Brasil Grande” do Médici e do milagre, certamente não era o país do Saldanha, nem o nosso. Vivíamos numa espécie de clandestinidade clandestina, na medida em que a clandestinidade oficial era a guerrilha. Mas, que diabo, a Seleção também era do outro Brasil, da nação sofrida tanto quanto do Estado mentiroso, e assim como o Saldanha aceitou ser o técnico e disse de cara quais eram as 11 feras titulares, nós também nos empolgamos.
Pra frente, apesar de tudo, Brasil.
O Saldanha acabou tendo que sair, segundo a melhor versão, porque o Médici quis impor o Dario de centroavante, mas duvido que algum opositor do regime, mesmo sabendo o que a vitória no México renderia politicamente para o governo, deixou de levantar da cadeira cada vez que o Jairzinho recebia um passe do Pelé. Assim, a Copa de 70 ficou como a Copa da ambiguidade. Nunca foi tão difícil e nunca foi tão fácil torcer pelo Brasil. Difícil porque torcer era uma forma de colaboracionismo, fácil porque o time era de entusiasmar qualquer um.
E a de 70 foi a Copa do Pelé. Ele estava no ponto exato de equilíbrio entre maturidade e potência: já sabia tudo e ainda podia tudo. E estava decidido a transformar a Copa num triunfo pessoal, num fecho simétrico para o que começara em 58, na Suécia, e não conseguira completar em 62, no Chile, nem em 66, na Inglaterra. O México foi a desforra de Pelé, um lance da sua biografia que ele gentilmente compartilhou com o Brasil.
Na Copa de 74, o Brasil ainda vivia sob um regime militar, mas tínhamos uma forte razão sentimental para torcer pela Seleção: era uma Seleção tão medíocre que inspirava a caridade. Torcíamos não por entusiasmo, mas por espírito cristão.
Médici tinha sido substituído por Geisel e, neste caso, a mediocridade era um estágio acima, mas em relação à Seleção de 70, a de 74 era um retorno à Pré-História, quando a bola era de pedra. Zagallo, que naquele tempo só tinha um ele, chegou a resumir nossa estratégia numa patética confissão de incapacidade: o negócio, na Copa da Alemanha, era cavar faltas perto da área adversária e confiar nos nossos batedores. Nenhum outro comentário sobre a incrível falta de talento para o manejo da bola que se seguiu à grande geração de 70 é mais loquaz do que este. Nossa esperança era a bola parada, nosso terror era a bola em movimento.
Hoje, lembrando aquele tempo e aquela Seleção, concluímos que nenhum dos dois era tão ruim assim. Os dois tinham a virtude do realismo. Depois da euforia da Seleção de Pelé, e da falsa euforia do milagre econômico de Médici, resignação e cabeça no lugar. O Geisel, como Zagallo, sabia que a prioridade era administrar a ressaca.
Enquanto isso, a grande sensação da Copa era a Holanda de Cruyff e do carrossel. (Em Porto Alegre, o centroavante Claudiomiro declarou que não via nenhuma novidade no estilo “holandiano”, porque era o mesmo que o “seu” Minelli usava no Internacional. A Holanda perdeu a Copa para a Alemanha em 74, mas em 75 e 76 Minelli e seus holandianos foram bicampeões do Brasil.) O carrossel revolucionaria o futebol. Dizia-se que depois de 74 e da Holanda o futebol nunca mais seria jogado da mesma maneira. Depois de inventar o capitalismo, o colonialismo e o iogurte, os holandeses tinham reinventado o futebol.
Mas em 78 nem holandeses eram mais tão holandeses.
Copa da Argentina, 1978. Com Cláudio Coutinho, dizia-se, o espírito renovador que começara a tomar forma na Seleção de 70 – preparo físico europeu, a teoria substituindo, em parte, o empirismo e o vamos-lá-que-brasileiro-já-nasce-sabendo-tudo – chegava ao comando do nosso time. Era a tecnocracia no poder.
Fazia-se pouco da erudição e do jargão pretensioso do Coutinho, mas ao mesmo tempo desconfiava-se que com ele o futebol brasileiro ficava mais adulto. Ninguém mais acreditava que todo jogador europeu tinha cintura dura e que bastava deixar o brasileiro exercer seu talento para tudo dar certo. Com Zagallo em 74 a reclamação era que sua cautela constrangera a criatividade brasileira. Injustiça. Zagallo sabia que tinha um time fraco. Aquilo não era cautela, aquilo era pânico. Em 78, o time era melhor. Com Coutinho, a esperança era que o Brasil voltasse à sua alegria, mas com método.
No fim nem a alegria se materializou nem o método deu certo. Mas não houve a desmoralização completa do nosso estudioso capitão, que pôde reivindicar pelo menos o campeonato moral. A Copa foi da Argentina, ganha, dizem, tanto pela mobilização do seu governo quanto pelo mérito dos seus jogadores, mas não ao ponto de podermos chamá-los de campeões imorais.
E o que você estava fazendo enquanto o goleiro do Peru tomava os seis gols que a Argentina precisava para se classificar? Eu me lembro de ficar prostrado na frente da tevê, meditando sobre a cupidez humana e a gratuidade de todas as coisas. Mas como o Coutinho não tinha levado o Falcão e tinha levado em seu lugar o Chicão, meu pensamento final sobre a Copa de 78 foi “bem feito”.
A tecnocracia não merecia sobreviver às suas bobagens. Nem na Seleção nem no governo.
O que eu lembro com mais nitidez da Copa de 82 na Espanha não é nenhum lance ou jogo. É um tape promocional da Globo feito com o jogador Éder em que ele aparecia correndo por um campo florido, simbolizando, sei lá, seu espírito livre ou o ímpeto irreprimível da nossa juventude. Não vou dizer que tive um pressentimento de derrota ao ver o tape, mas tive, sim, a consciência de estar vendo um exagero, alguma coisa excessiva da qual ainda íamos nos arrepender.
Há quem diga que o triunfalismo das televisões brasileiras foi responsável, se não pela derrota em 82, então pela frustação arrasadora que veio depois, quase igual à de 50. Mas tanto o triunfalismo quanto a frustação se justificam, esperava-se muito daquele time do Telê. A entressafra de bons jogadores parecia ter acabado, outra geração de exceção chegava ao seu equilíbrio perfeito numa Copa, desta vez tinha que dar. Até que ponto o triunfalismo influiu no time, e o fez continuar atacando para as câmeras quando um empate contra a Itália servia, é difícil dizer. O fato é que, como num folhetim antigo, fomos derrotados pela soberba. E a mais brilhante geração de jogadores brasileiros depois dos anos 60 ficou sem sua apoteose merecida.
Hoje, claro, o carnaval publicitário feito em torno dos jogadores é muito maior do que há tantos anos passados. Com mais dinheiro envolvido e filmes promocionais mais espetaculares, o triunfalismo hoje parece maior. Mas, depois de 82, as pessoas não se entregaram a ele com a mesma facilidade. O ceticismo precavido com este time atual ainda é um reflexo do choque de 82.
A Copa de 86 foi a primeira que não aconteceu no meu aparelho de televisão, e que eu vi sem intermediários. Fui cobri-la para a Playboy. No México, as pessoas olhavam o crachá que me identificava como correspondente da Playboy e imediatamente olhavam para a minha cara, perplexas com meu óbvio pouco jeito para descobrir os aspectos mais lúbricos da competição. Eu me esforçava para fazer uma cara que não desmentisse o crachá, mas acho que convenci a poucos.
Fomos para o México cautelosamente vacinados contra o triunfalismo precoce, e com uma Seleção cercada de controvérsias. Telê ganhara outra chance, mas a sua lista final de convocados causara tanta discussão que ele estava mais defensivo e desconfiado do que de costume e o ambiente entre a Seleção e a imprensa era cordial, mas tenso. O Brasil que ficara em casa – uma minoria, julgar pelo volume de brasileiros em Guadalajara – era o Brasil do Sarney do Cruzado, do Sarney herói, lembra? Enfim, de outro milagre. Mas a Seleção, ao contrário da de 70, não era uma geração no seu ponto ideal de equilíbrio entre experiência e capacidade. Viu-se depois que já era uma geração em declínio, com mais experiência do que pernas. Nova derrota, nova frustração e uma leve suspeita de que continuávamos sendo os melhores do mundo, mas que já era tempo de provarmos isso na prática, senão o pessoal ia começar a desconfiar.
Em 90, na Itália, cheguei a ouvir uma tese suicida: era melhor o Brasil perder do que consagrar o feio esquema do Lazaroni. O ideal seria o Brasil ganhar, mas ganhar mal, ali, ali o que nos daria a satisfação da vitória sem o efeito colateral da redenção do Lazaroni. Não prevaleceram nem as teses suicidas nem as moderadas. O Brasil não ganhou nem bem nem mal e perdeu sem ser humilhado. E o que prevaleceu foi a tese do Lazaroni, tanto que ganhou em 94, nos Estados Unidos, aplicada pelo Parreira.
Mas o maior consolo da eliminação do Brasil de 90 foi que pudemos ficar na Itália vendo futebol em vez de torcendo por teses. Nada contra as teses. A tese é o futebol dos sem-pernas e sem-fôlego, como poderíamos continuar jogando sem ela? Mas o descompromisso com as teses nos torna livre e foi para desfrutar ao máximo essa liberdade que passei a torcer pela Argentina, que Deus me perdoe. Se ganhasse a Argentina, a Copa das teses seria vencida por um time que não redime nenhuma. Ninguém poderia dizer, de uma vitória da Argentina, que vencera um sistema. Na Argentina dá certo tudo o que não é esquema: carisma, coração, picardia, até mau caráter, todas essas coisas que vêm antes, depois ou em vez de teoria.
O melhor adversário da Argentina para uma final antítese teria sido a Inglaterra, com seu futebol simples e esforçado. Argentina e Inglaterra foram os times que começaram pior na Copa de 90, uma final entre os dois não representaria nada além da sua capacidade de auto-superação. Não provaria nada, não estabeleceria nada, não teria nenhuma sobrevida teórica. Mas deu a Alemanha na final contra a Argentina. A Alemanha representava algumas ideias bem definidas sobre futebol, e eu sonhava com a simetria perversa de uma final sem qualquer ideia. Depois de tanta discussão, por puro enfado, eu estava torcendo pela insensatez. Mas ganhou a Alemanha.
As gerações do nosso futebol depois 70 seguiram a sequência que alguém já identificou como um ciclo reincidente na História: da Idade dos Deuses para a Idade dos Heróis para a Idade do Homem Comum. A Seleção de 70 não tinha só deuses, é verdade. Não vamos esquecer que fomos campeões no México com Félix no gol e Brito à sua frente. Mas, com o tempo, eles também se transformaram em titãs, junto com Tostão, Gerson, Jairzinho e o resto da corte de Pelé.
A Seleção de 74 tinha alguns deuses caídos e não aguentou a comparação com a de 70. A de 78 foi um esboço da de 82, esta sim uma geração que inaugurava a Idade dos Heróis. O herói, como se sabe, é o Deus democrático, eleito pelos seus semelhantes, ao contrário do Deus clássico que já nasceu Deus, mas será sempre um Deus menor. Nunca houve qualquer dúvida de que Pelé desceu do céu dentro de uma bola iluminada e já saiu chutando enquanto que Zico, por exemplo, teve que conquistar seus poderes.
Mas a geração de Zico – ele, Sócrates, Júnior, Falcão, etc – foi uma geração de grandes jogadores que não chegaram a deuses porque nasceram na parte errada do ciclo. Uma geração sem apoteose. A Copa de 86 foi uma elegia para a de 82, a triste despedida de uma geração que teve tudo, menos o que mais queria. E veio a Idade do Homem Comum.
Ela começou na Itália em 90. O que parecia ser um medíocre time de transição, uma depressão passageira antes da vinda de novos titãs, era uma geração a caminho da sua apoteose, quatro anos depois. Aaron Copland, um compositor americano, escreveu, há anos, uma Fanfarra para o Homem Comum. Ela devia ter acompanhado a subida de Dunga e seus companheiros para receber a taça em Pasadena, em 1994. Seria o tema apropriado para o fim de uma epopeia improvável.