Por Thiago de Mello
G do Ginásio,
quero dizer, o Gymnasio Amazonense, ou por outra, Ginásio Amazonense Pedro II, nome que voltou a ter no alto do seu frontispício (encimado pelo castelo, seu antigo emblema, cuja miniatura de metal dourado usávamos ao centro frontal do quepe e as alunas no comecinho de uma banda da casquete), depois que algum funcionário do Estado, cujo nome não convém ser lembrado, mudou o nome da nossa mais tradicional casa de ensino secundário para Colégio Estadual do Amazonas.
Por muitos dos caminhos e atalhos por onde vem passeando minha memória, lá aparece, de frente ou de perfil, um pedaço do frontão ou da alma daquele digno edifício onde várias gerações de amazonenses viveram – e outras continuarão a viver – alguns anos fundamentais de sua existência. Será, por isso, breve o verbete especial que lhe tenho. De todas as coisas tantas que se pode dizer do Ginásio do nosso tempo, esta frase tão simples é a fundamental: nós tínhamos orgulho de ser ginasiano.
“Aqui só entra quem sabe”, dizia com seu jeito manso o inspetor Julio Nery, na manhã de 1937 em que minha turma se apresentou para o exame de admissão. E já no fim do curso, o professor Machado e Silva, jovem diretor que soube honrar a tradição de amor à casa firmada por Carlos Mesquita, nos advertiu ao encerramento de uma palestra inesquecível: “No Ginásio ninguém estuda para passar de ano, mas para ficar sabendo o que estudou”.
Quero gravar aqui o nome de dois ginasianos, companheiros de turma, com os quais muito aprendi do gosto pela convivência humana transparente, naquelas tardes do casarão da Lauro Cavalcanti: os irmãos Nogueira Borges. O Adauto já não caminha mais neste chão dos homens. O Alberto continua o mesmo menino: o peito generoso, a fronte aberta de luz.
Era um tempo em que os professores não eram nomeados nem contratados. Eram catedráticos, titulares de cátedras conquistadas em concursos memoráveis. Os alunos, na solenidade de formatura, recebiam diplomas de Bacharéis em humanidades.
Quero me valer desta página para ofertar um fino ramo de louvor e homenagem, em nome de todos os seus alunos, aos nossos professores, mestres dedicados, que se interessavam de verdade pela aprendizagem e até pela pessoa de cada um de nós. A maioria deles já não está neste mundo, mas todos continuam vivos conosco, no que somos e fazemos.
Que baste a simples menção dos nomes: Agnello Bittencourt, Augusto Rocha (grande força despertadora de vocação), Vicente Teles, Antonio Teles de Souza, Antonio Monteiro de Souza, o padre Monteirinho, aliás monsenhor, o padre Israel Galdino de Souza, Carlos Mesquita, dona Cora Santana, Martins Santana, dona Aurora Moraes Rego, Vivaldo Lima, Araújo Lima, Pedro Silvestre, Conte Telles, Machado e Silva, Ricardo Amorim, Ulysses Bittencourt, Nilton Vieiralves, Nicodemus Braule Pinto, Arthur Reis, Álvaro Maia, Manuel Lyra, Ney Rayol, Herbert Palhano, André Araújo, e dona Maria Augusta Bacelar, viúva de um ex-governador do Estado, que, para sobreviver, já velhinha, nos ensinava os segredos da música.
De todos os companheiros de turma, diplomada em 41, só guardo lembranças gratas. Mas tenho vontade de relembrar certos nomes e episódios. A começar pelo do Cavalo Velho.
O Cavalo Velho era o Raimundo Castro de Oliveira. Puxava de uma perna, tinha uma cicatriz no rosto. Um dia, meio de repente, ele me chamou para almoçar na sua casa. Era lá para as bandas da Cachoeirinha, casa de família sofrida: convidou a mim e ao Thury, o Thury não pôde ir. Fomos a pé, era um sábado, tínhamos uns 13 anos. Só quando chegamos lá (no canto da Usina dos Bondes tomamos um refresco de taperebá, o garapeiro era padrinho ou aparentado dele) foi que ele me contou: hoje é o dia dos meus anos, mamãe fez uma rabada. Foi a primeira vez que comi rabada, sentados nós dois sozinhos, a mãe dele nos servia, era uma mulher muito triste e silenciosa, mas a rabada estava uma maravilha, comemos rindo muito. Hoje sou, modéstia de lado, um senhor preparador do difícil guisado que é a rabada, com receita própria que tem fascinado o paladar exigente de amigos de muitos lugares do mundo. Mas sempre que preparo uma rabada me lembro do gesto infinitamente terno do Cavalo Velho. O Jeovalino me contou faz pouco que o nosso colega já morreu.
O Agobar era um dos mais idosos da nossa turma. Agobar Garcia de Vasconcelos. Mas a diferença de idades nunca nos distanciou, até pelo contrário. Chegou de Silves com 16 anos, pelo vaticano Cuiabá, em novembro de 36. Foi morar lá na Ponta do Ismael, onde conheceu o Hugo Brabdt, filho do velho Brandt, engenheiro-chefe da Usina. Tentou matrícula bi Dom Bosco para fazer o curso de admissão. O padre Agostinho (cujo centenário a cidade está celebrando este ano) achou lá os seus motivos para recusar o caboclo crescido de Silves. Agobar não desanimou: estudou o admissão com o Hugo no Colégio São Geraldo, fez exame para o Ginásio e passou.
Lá pela metade da segunda série foi que descobri que o Agobar vinha a pé todas as manhãs lá da Ponta do Ismael até o São Raimundo, caminhando pela beira da praia. Isso no tempo de verão. No inverno atravessava o igarapé de catraia. Anos mais tarde, já com os pés fincados no chão da vida, Agobar, com quem sempre gostei de conversar, me revelou que, para ingressar no Ginásio, seu pai teve que solicitar atestado de miserabilidade (tanto para ele, quanto para o Hugo e Orlando, seus irmãos maiores), a fim de obter a gratuidade das taxas.
Quando a mãe, dona Zolina Marques Garcia, chegou a Manaus, foram morar na Xavier de Mendoça e foi ela, professora aposentada, quem chamou a seu cargo a educação dos filhos. Agobar, que sentiu o gosto da banda amarga da vida, não guardou nenhum ressentimento. Bem-sucedido homem de empresa, resguarda a antiga simplicidade brincalhona. Só de uma confidência me recordo, feita com a vagareza de quem pretende uma avaliação correta, a propósito do elitismo que naquele tempo separava pessoas. Mas a condição de inferioridade, concluiu o meu amigo, só me serviu de estímulo. Anos depois, era o preferido do padre Agostinho, na direção da Associação dos Ex-Alunos.
Relação nominal dos alunos matriculados na 5º série no ano de 1941, no Ginásio Amazonense Pedro II.
Primeira turma: Agobar Garcia de Vasconcelos, Ana Vidal Zuani, Antero Ferreira Riça, Candido Honório Soares Ferreira, Celino Menezes Filho, Elias dos Santos Ferreira, Francisco Trigueiro Filho, Hely Bauman das Neves, Hipolito Nina Corrêa, Ildemar Pereira Lima, Jeronimo Jesuino Raposo da Câmara, José Joaquim Ferreira de Machado e Silva, José Lucas Raposo da Câmara, Luiz Portilho Antony, Manoel Braga dos Santos, Marcos Assayag, Maria de Jesus Freitas Almeida, Newton Galvão de Alencar, Nilde Araújo Barbosa, Nvart Ernsta Kramer Rumian, Oiama de Macêdo, Raimundo Castro de Oliveira, Raimundo Farias de Mendoça, Tomazia Fernandes.
Segunda Turma: Aloísio de Siqueira Cavalcante, Amadeu Thiago de Mello, Francisco de Oliveira Régis, Jeovalino de Moura, José de Jesus Ferreira Lopes, Ligier Herculano Barrosos, Maria José da Silva, Otilia de Carvalho Gouvêa, Pedro Simpson, Jonatas Carreira Madeira.
Da chamada Revolução Ginasiana, ocorrida em 1930, acho que já se contou suficiente. Resumo o testemunho de um dos participantes a nível de massa, não de vanguarda, sobre cujos nomes me consta que reinam dúvidas pelas quais não tenho o menor interesse. Sucedeu que o Chefe de Polícia de Manaus, aí por julho de 1930, figura estranha à sociedade local, deu de perseguir os ginasianos, alunos do importante colégio público, único de ensino secundário. Sempre dava com um modo de reprimir os estudantes, na rua, nos bondes, nos cafés. Foram surgindo reações, atritos com os condutores, implicâncias com os guardas.
Um dia os estudantes deram de não deixar os bondes passar pela frente do Ginásio, trajeto obrigatório dos elétricos. Sobre os trilhos, acumulavam pedras e passavam sabão. O chefe de Polícia não conversou: mandou invadir o Ginásio, cujo diretor era o professor Plácido Serrano, que se opôs e resistiu ao ingresso dos policiais, que recuaram, para logo depois voltar com reforços. Foi então que os ginasianos, liderados por Armando Segadilha, Gama e Silva, José Monteiro e Mario Ypiranga Monteiro e outros, Moura Tapajós de permeio, decidiram reagir. No que foram ajudados pelo apoio que receberam do sargento do Exército Prado Lins, instrutor de Educação Física do Ginásio, que acabou por ficar solidário com os alunos.
Foram buscar os fuzis do Tiro de Guerra, que funcionava num dos salões do térreo, em frente ao antigo Jardim da Infância, hoje demolido. Os policiais subiram as escadarias e o pau cantou, mas sem bala, e muitas prisões. A situação se acamou com a interferência de professores como Carlos Mesquita, Plácido Serrano, Agnello Bittencourt, obtendo a liberação dos estudantes detidos.
Já que estou com a mão na massa, entrego mais algumas achegas sobre o episódio, guardados pela memória familiar de Ulysses Bittencourt, que o enriquecem de significação. Para começar, na raiz do conflito havia o posicionamento estudantil frente aos acontecimentos políticos nacionais; e também em relação à política local. Indisfarçável teria sido a marca política nas escaramuças entre estudantes e policiais de 11 de agosto.
Nem todas as balas recolhidas ao Tiro de Guerra eram de festim. Mas não importa, não tivemos mortos. A versão de Ulysses, que tem raiz no testemunho paterno, é que o episódio de certa forma se ligou à vida política de Álvaro Maia, então professor de Moral e Cívica e de Literatura do Ginásio. Ele chegava na ocasião do conflito e logo se distinguiu pelo corajoso empenho de conter os policiais e apaziguar os estudantes.
A novidade está no que veio depois. Na mesma noite, Durval Porto convocou todo o seu secretariado. Não compareceram ao palácio nem Plácido Serrano, diretor do Ginásio, nem Agnello, diretor de Instrução Pública. Na manhã seguinte, o secretário geral do Estado vai à diretoria de Instrução, que funcionava ali atrás da Igreja dos Remédios, para lastimar a ausência do diretor. O professor Agnello dignamente manifestou então o seu desacordo pela maneira como a polícia maltratara os estudantes e como fora desrespeitado o Ginásio: imediatamente entregou ao secretário de Estado sua carta de exoneração, à qual se seguiu a carta solidária de Plácido Serrano.
O Governo de Durval Porto caiu em seguida. O povo revoltado saiu às ruas queimando e saqueando a casa dos políticos “decaídos”. O Chefe de Polícia, que era um Camarão, já tinha deixado a cidade, mas a casa foi apedrejada pela multidão. Homenagem que o professor Agnello nunca esqueceu foi a que o povo lhe prestou, a ele que soube abandonar a tempo o governo caído. Agnello agradeceu e pediu calma, que o povo fosse para casa. O povo foi mas para a casa dos Vieira das Águas, na Miranda Leão, de cujas janelas jogaram na rua até o piano.
Trato de atender, nesta segunda edição, um apelo que me faz, por escrito e em tom dramático, o valente Mario Ypiranga: “Em nome da justiça e da história, peço-te que corrijas aquela história que te foi contada malmente”, a propósito dessa “revolução ginasiana”, que ele considera “arrancada cuja história é mais comprida do que se pensa e que almejava, de início, depor o governador Durval Porto”.
Não posso corrigir as informações que recolhi de fontes várias, faladas e escritas, sobre um episódio que, de resto, se deu quando eu era menino de beira de rio e cujo estudo nunca chamou o meu interesse. Mas tenho grande prazer, além do dever, de deixar as correções por conta do próprio Mario, com a sua incontestável autoridade de haver sido um dos líderes do movimento.
Depois de negar o apoio de Carlos Mesquita, Álvaro Maia e Antônio Teles e contestar a liderança de certos estudantes, me escreve o historiador: “Os seus informantes não citaram os verdadeiros líderes do movimento de 11 e 12 de agosto de 1930 (só eu fui citado): Pedro Madeira, Nelson Cabral (encarregados de assaltar o Palácio Rio Negro, pois o movimento iria começar em junho), drs. Francisco Pereira da Silva, Souza Brasil (em cujas casas nos reuníamos). Álvaro Maia e outros professores não estavam no Ginásio. E principalmente Álvaro Maia jamais interferiu na nossa causa, a não ser a chamado do governo para, com o tenente do Exército (nosso aliado) Plínio, solicitar que depuséssemos as armas. É verdade que houve tiros de festim (havia cunhetes de bala desse tipo para exercícios passivos), mas houve bala de verdade e partimos todas as vidraças do quartel da Polícia Militar, além de ferirmos árvores. Não havia intuito de matar, claro, só reagir e deixar claro que os canhões e metralhadoras voltados para o Ginásio não nos amedrontavam”.
Dez anos depois outro conflito feio se travou entre ginasianos e policiais, que outra vez invadiram o Ginásio. O episódio não ganhou as honras de revolução nem ficou nas páginas dos cronistas da cidade. Mas permanece vivo na memória de quantos participamos dele, por sorte éramos muitos, e quero ter o gosto de transcrever literalmente o relato que o Machadinho dele nos fez, ao Lealzinho e a mim, um domingo no Rio de Janeiro do começo deste ano, que marcou o nosso reencontro, durante o qual voltamos a ser os mesmos companheiros daquela noite de 1940:
– As nossas férias de meio do ano se estendiam por todo o mês de junho e de 15 a 30 o Ginásio promovia nos seus campos de esporte comemorações juninas, eventos artísticos, provas esportivas, quiosque com refresco, doces e tapiocas, além de objetos, patos e porcos assados que eram postos em leilão. Justamente naquele ano tinham sido reiniciadas, por iniciativa do então diretor, professor Machado e Silva, as atividades do grêmio estudantil Humberto de Campos, de cuja direção e redação fazíamos parte tu, o Zé Lucas Raposo da Câmara, o Hipólito Correa e eu. O Grêmio participara bastante da organização daqueles festejos, dedicando uma noite de benemerência aos filhos dos tuberculosos do Dispensário Cardoso Fontes, se estou bem lembrado. Na época era comandante da Polícia do Estado, um coronel vindo de Pernambuco, Gentil Barbato, que deixou triste fama em Manaus pelos seus métodos de repressão violentos e que trouxe para a Polícia de Manaus elementos de sua confiança, escolhidos a dedo, gente de má formação, para usar uma expressão educada daquele tempo. Lá pelas tantas, sem qualquer motivo aparente, mas sob o pretexto de manter a ordem na quermesse, a polícia invade o Ginásio tendo à frente um destacamento de cavalaria. No mesmo instante o diretor do Ginásio parte ao encontro do chefe do destacamento e ordena que os soldados se retirem imediatamente. Do alto do seu cavalo, o sargento respondeu que não lhe acatava as ordens. “Se não acata a autoridade maior aqui dentro, que sou eu, vai acatar a do homem” – e com um solavanco brusco e forte jogou o milico no chão. Aí o pau chinchou feio. Apesar dos cassetes e das baionetas dos soldados, os estudantes, solidários e estimulados pelo exemplo do seu diretor, em quem nós em verdade tínhamos um companheiro mais velho, partimos para o pau, nos valendo de pedras e de tábuas arrancadas aos quiosques e, como éramos também muito mais numerosos, acabamos levando a melhor. Da briga ninguém ficou de fora. Mas é justo destacar a valentia desassombrada do Tarzan, do Adilio Bonatti, do Walter Peruano e do Paulo Jacob.
– Terminada a briga, os policiais capangas do Barbato se retiraram. Fora arrematado um leitão e lá fomos nós saboreá-lo na Leitaria Moderna, na Treze de Maio, na calçada fronteira ao Ginásio, um sobrado em cujos altos morava o Aristóphano Antony, pai da Maria Eneida, a famosa Maria Eneida, nossa colega, irmã do Leandro, prima do Pedro Henrique Verçosa. Acabamos de comer e fomos para a casa, em grupo. Quando chegamos ali na praça São Sebastião, um guarda-noturno, daqueles de uniforme azul, pagos para a vigilância noturna das casas que tinham na porta a placa GN, armado e medroso, veio nos avisar de que lá do outro lado um grupo de soldados estava à espera dos ginasianos, estavam lá atrás das mangueiras. Telefonamos para o Machado, que àquela hora estava no Ponto Chic. Chegou num táxi e foi logo perguntando: “Onde é que eles estão?” Dirigiu-se sozinho ao lugar onde os guardas se escondiam e com a firmeza do seu destemor botou os cabras em debandada.
Três figuras do quadro de funcionários do Ginásio habitam vivos nossa memória. O principal deles, caboclo troncudo, sempre de cara amarrada, era o Eduardo, dito o Cangalha, chefe geral de disciplina do Ginásio. Trazia um passado de beque de futebol. Ficava a um metro da banda muito estreita da porta, que só permitia a entrada de um aluno por vez, de olho em nó de gravata mal dado e em botão desabotoado. Encostado à portinhola e recebendo as cadernetas dos alunos, ficava o Rubim, que tinha residência no próprio terreno do Ginásio e era pai da Maria de Jesus, nossa colega. O terceiro era um bedel, profissão subalterna, agravada pela feiúra do funcionário baixinho e de óculos de lentes espantosamente grossas, cuja timidez se defendia com rompantes rabugentos. Chamava-se Themistocles, mas para todo o Ginásio ele era o Jacarandá.
Perdão, não para todos. Guardo com nitidez a doçura respeitosa com que ele era chamado de “seu Themistocles” pela nossa colega Nevart Ruminan, uma linda alemãzinha, muito estudiosa, filha do professor Rumian, da Escola Solon de Lucena. A Nevart morreu antes de concluir o curso. Destino que também teve a linda Ritinha, que o tifo devorou em 37, filha do Gersino Cunha Mello. Tomara que não seja verídica a notícia que de deram, trazendo uma sombra de dúvida, que também já nos deixou a Nilde, mocinha morena filha de mãe, viúva e lavadeira, a colega predileta da Nevart, a cujo lado se sentava naqueles bancos ingleses tão confortáveis de assento duplo, onde a moça estrangeira ensinava o seu idioma à caboclinha aplicada e meiga, dona de espantosa retentiva para datas e nomes por extenso. Era a Nilde a quem eu recorria, momentos antes das provas parciais, para me ajudar a fixar os anos e os personagens principais envolvidos na Revolução Francesa.
Outras colegas daquele saboroso pedaço do nosso tempo tratei de reencontrar no meio da barafunda com que Manaus apressa e dispersa os seus atuais moradores.
Não consegui dar com o endereço da Lucy Jana; contaram-me que enviuvou. A cidade era sensível à beleza da ginasiana linda, mas ela nos ganhava a todos era com a força iluminada de sua simpatia. Tinha um irmão, o Alamiro, que levava o estudo na flauta, por isso mesmo deixou nos anais da Casa um recorde insuperado: repetiu oito vezes a segunda série, contente da vida, como se nada tivesse acontecido.
Tampouco fui bem-sucedido na perseguição telefônica com a qual pretendia ajuda da memória de Maria Delmira, nossa querida colega. Deixei dezenas de recados, fiquei sem resposta e sem notícia das outras companheiras de turma. Parece que Maria Delmira virou pessoa importante, e tem, além das caseiras, ocupações de envergadura, e não me pôde dar uma demão no esforço de remexer na memória a vida de pessoas mudadas pelo tempo. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Camões sempre acerta; mas espero que se equivoque no caso da colega ocupada.
A Ninise Araujo, em cuja casa da 24 de maio a assustei gostosamente com a minha chegada matinal, estava já de saída. Pediu que eu voltasse, mas aproveitou os curtos minutos para me contar, com o seu antigo sorriso de ginasiana e o mesmo volteio dos braços enquanto fala, o pouco que sabia do que fora feito das nossas colegas; a maioria tinha casado e saído de Manaus. E a Maria Luiza?, quis eu saber. “Nunca mais a vi”, me respondeu com uma sombra de enigma na voz. E a Maria Eneida? “Ficou viúva, já é avó, mas continua sempre em evidência”.
Um bom acaso me deu de presente, ao dia seguinte, num domingo do Bosque ao que fui levado para uma sauna com o Samuca Benchimol, um abraço, mas um abraço desses em que é indisfarçável o carinho e o gosto do encontro, só que veio misturado com um ralho risonho pela demora minha em procura-la. Era a Maria Eneida, uma das mais cortejadas moças nas retretas da praça, boa de dança e de esporte. A torcida masculina exigia aos gritos a inclusão de Maria Eneida no time de vôlei do Ginásio. Alguns pelas virtudes do seu saque (pelo menos ela não errava). A moçada em geral o que queria mesmo era ver a nossa colega de short, que ainda não eram tão curtinhos, mas mostravam livremente o desenho das pernas que Deus lhe deu.
Não sabia do paradeiro da Maria Luiza, morena mais taluda que nós e que tinha um fraco pelos jovens professores chegados do sul, enfatiotados, de casemira, apesar do mormaço, com colete e tudo. Recordamos o respeito que essa colega conquistou da classe inteira com a inteireza de sua atitude, por ocasião de uma falta desrespeitosa a um professor cometida por um aluno (de que adianta agora dar o nome?) no momento em que o mestre, de costas voltadas para a classe, escrevia no quadro-negro: por mero acaso, Maria Luiza surpreendeu o gesto do autor da molecagem.
Eram severas as punições naquele tempo por faltas disciplinares. O caso foi levado à direção e diante dos alunos silenciosos o Eduardo Cangalha exigia exasperado que se apresentasse o autor da indisciplina. Ninguém se movia, ninguém abria a boca. O chefão conhecia o seu gado, sabia dos mais insubordinados, tinha já as suas suspeitas. Interrogou-os em vão, ninguém falou. Eduardo se decidiu pela pergunta geral à classe: “Quem viu quem foi que jogou a bombinha nas costas do Professor?” A classe continuou em silêncio. Foi quando o inspetor, praticamente convencido da autoria da grave falta, partiu para interrogar pessoalmente a colega sentada a seu lado, a Maria dos olhos enormes.
A moça nem pestanejou: não vi nada, não senhor. “Pois então estão todos suspensos, a classe inteira está suspensa por uma semana”. A punição foi relaxada alguns dias depois a pedido do próprio professor, que era um santo, o padre Monteirinho, nosso professor de Latim e que um dia chegou a assumir, assustado e perplexo, o Governo do Estado por um breve período, nos anos do Estado Novo de Vargas. Os pais em geral se tocaram pela união solidária. Tratamos de aproveitar as folgas inesperadas, graças à lealdade da Maria Luiza, a quem revejo subindo as escadarias de mármore, os joelhos nas meias negras.
Da Otilia é que Maria Eneida nem se lembrava mais. Com razão. Otilia retornara ao Ginásio depois de dois a três anos de interrupção de curso, ocasionada por certo caso de amor inconfessável, durante o qual permaneceu reclusa, e de que publicamente resultou num filho e fez à estudante condição de mão solteira, entretanto empenhada, por exigência materna, a não divulgar jamais o nome do pai da criança, figurão de proa da sociedade, famoso pela retidão moral, cujas obras pias os jornais divulgaram, apesar do anonimato em que o generoso doador preferia permanecer. No anonimato ele queria por todos os santos é que permanecessem a paternidade do filho da bela e pobre Otilia, a quem ele seduziu com o mais sórdido dos artifícios.
Pois foi essa Otilia que uma noite, ao comecinho da primeira aula foi entrando com aquela graça infinita do seu corpo moreno e o brilho estrelado dos seus olhos. Para agravar a emoção, que foi generalizada, Otilia não vinha fardada, mas de traje de passeio, um vestido estampado de cambraia, de saia godê, moda do tempo, ajustada à cintura de jeito a lhe realçar a macia perfeição das ancas. Otilia sentou-se num lugar vago do banco da frente, logo ao lado do Tarzan, o jovem mais idoso da turma, Ildemar Pereira Lima, que a todo instante dava uma de canto de olho para a nova colega.
Durante vários meses Otilia foi aluna constante, alegre e aplicada. Morava ali pela banda das Epaminondas, para onde certa noite ela me pediu que eu acompanhasse, até a casa. Durante o caminho, senti a companheira falando frases ligeiras, sem a conversa natural e gostosa que lhe era natural, e com um ar que me pareceu de medo. Deixei-a à porta de sua casa, aberta por sua idosa mãe, que me deixou ver dois cavalheiros sentados, de chapéu à cabeça, ostensivamente à espera da moça, cujos protestos de repulsa ainda consegui escutar atrás da porta que logo se fechou. Nunca mais vi a Otilia.
Tenho que dar à memória, tantos são os episódios que dela se erguem, e tornam a suceder no meio do silêncio da floresta em que escrevo; as pessoas cujos semblantes minuciosamente nítidos estão aqui, fronteiras à minha mesa de trabalho, me sorrindo como bons camaradas. Ou senão com o rosto de músculos contraídos, o olhar rubro de raiva, como esse que revejo do Anisio Gorayeb, aluno de curso mais adiantado, durante uma luta corporal com o Manuel Piaba, que durou o tempo em que os dois quiseram que durasse, porque ninguém se meteu e ninguém ganhou nem perdeu.
Embora fosse espantosa a diferença física entre os dois: o Anisio, um montão de músculos avantajados, o Piaba era magrinho, mas ágil como um bailarino com musculatura de aço. Admirador dos dois nas partidas esportivas do educandário, no basquete como no futebol, estudante meninote que privava da roda deles, senti que naquela tarde minha simpatia de pronto começou a pender pelo Mané Piaba, acaso pelo seu jeito humano de convivência. A luta, que nascera de rixa casual aos poucos foi ganhando os dois para o nível da pura competição, e o justo empate foi celebrado com abraços dos corpos machucados, embora o Anisio erguesse o seu costumeiro brado de guerra: “Viva Anisio Gorayeb, o rei dos saladinos”.
Parece detalhe insignificante: mas sempre me impressionou gratamente a atenção e a atitude marcada de companheirismo que os contemporâneos já em conclusão de curso dedicavam aos alunos das primeiras séries. Durante o intervalo, que durava dez minutos (o Jacarandá era quem batia a campa) os mais velhos paravam para conversar conosco.
Ultrapassava a mera gentileza o aceno de mão com que, num encontro de rua, nos saudavam, por exemplo, o Manuel Alexandre (é verdade que ele, um dos goleiros do nosso time, me sabia seu fã), o José Lindoso (que resistiu, certa manhã, com alegre galhardia, à mofa da turma que o descobriu calçado com sapatos cada pé de cor diferente), o Moysés Israel, o Rodolfo Vale, o Juvenal Leite, o Silvio Montenegro, o Oséas Martins de Almeida (grande empreendedor de atividades artísticas e culturais), o Almir Menezes, o Silvio Tapajós e, deixei para o fim de propósito, o Zé Mario, o negro mais alto e mais alegre do Ginásio, principal cortador do nosso time de vôlei, junto com o Almir e o Mingote, no tempo em que valia a “mão de gato”. O Zé Mario se vestia de branco para ir passear no cais: num encontro casual, só o cumprimento dele, ele rindo com a mão bem alta acenando, fazia crescer na gente o gosto de viver.
O engenheiro Jeovalino de Moura foi menino comigo no Ginásio. Perdeu o pai quando estava na segunda série, foi morar com o padrinho no então quase deserto Japiim, de onde ia a pé para as aulas o meu amigo, que depois foi tão bom comigo, eu já começando a me embrenhar pela selva da literatura, quando me ofereceu moradia no seu quartinho da rua Riachuelo, que também me serviu de iniciação ao universo da Lapa carioca.
Foi de Jeovalino que agora ouvi um episódio ginasiano do qual só me restou na lembrança a cantiga que dele resultou. O personagem é o Mario Costa, morreu faz pouco tempo, conhecido como Mario Broa, Mario bom de briga, sem embargo dos modos serenos, o cabelo liso repartido ao meio, sempre rindo de bom. Uma tarde daquelas de repente surgiu um conflito (dos quais a crônica do Ginásio está cheia) entre uns elementos da Guarda Civil e um grupo de ginasiano. Os do tempo se recordarão de um investigador feroz, de nome Lindolfo, morador da Epaminondas, responsável pela chefia da repressão.
Os ginasianos estavam, não trago a sardinha para a nossa brasa, tranquilamente conversando num bar chamado O Sereia, com o artigo masculino, ali na Ruy Barbosa, quando de imprevisto foi entrando o Lindolfo à frente dos guardas-civis, que ao tempo usavam culote e perneira, e ordenou aos gritos, sem que nem pra que, só de pirraça que ele tinha com os rapazes do Castelo, que fossem logo dando o fora. E avançou para quebrar. Foi quando o Mario Broa partiu sem chamar por ninguém e enfrentou galhardamente os guardas, que acabaram se escapulindo assombrados com a valentia do nosso companheiro. No dia seguinte, o Ginásio em peso repetia a canção inventada na mesma tarde: “Estava sambando / lá no Sereia / veio o Lindolfo / querendo meter a peia. / Mas o Mario Broa, / que já foi do 27, / botou a guarda pra correr, / à ponta de canivete.”
Uma noite inesquecível do Ginásio: a homenagem, idealizada pelo diretor Machado e Silva, aos setenta anos do nosso professor Vivaldo Lima e promovida pelo nosso mensário, O Ginásio, cujos redatores fomos receber o mestre à porta principal do edifício. Chegou sozinho e, ladeado pelos alunos, foi subindo vagaroso os degraus da escadaria, que a hidrocele volumosa demandava esforço. Todo de branco, como em geral preferia, a gravatinha borboleta de laço caído a seu gosto, o velho mestre, já de cabelos completamente brancos mas de coração rico de juventude, parou emocionado quando ouviu os aplausos dos seus alunos, que irromperam espontâneos, prolongados, assim que ele entrou na sala.
Não pudemos realizar o ato no salão nobre da Casa, então em reparos. Nos reunimos na vasta sala de reuniões da Diretoria. Demos ao velho Vivaldo a cabeceira da grande mesa, na qual tiveram assento o diretor e outros professores, rodeados pelo silêncio da juventude. Quem primeiro falou foi o Machado e Silva, que logo de saída imprimiu ao encontro o tom de conversa. O Hipólito e eu dissemos umas quantas palavras simples em nome dos alunos. Então o professor Vivaldo Palma Lima (o povo que se refere hoje ao estádio de futebol da cidade como o Vivaldão não tem nem de longe idéia de quem foi aquele extraordinário brasileiro) começou, com o tom de companheiro mais vivido, que já passara por poucas e boas no seu convívio com os homens, começou a conversar com a gente.
Guardo a força do silêncio com que o escutávamos. Contou coisas de sua mocidade, lembranças de figuras que o marcaram, fez revelações em torno da hipocrisia que manchava a vida política e fez questão de acentuar três sugestões, porque conselhos ele não dava a ninguém. A primeira, que de vez em quando os que morávamos pelo centro da cidade, déssemos umas voltas sem pressa pelos bairros habilitados pela gente pobre de Manaus para que víssemos, e aprendêssemos, como era a vida deles. A segunda, lição que ele confessou custar a aprender, é de que a verdade sempre vale a pena defender, mesmo que no começo a gente pareça perder. Finalmente ele nos conclamou a estar sempre do lado da justiça. Já até pareço um macróbio, disse mestre Vivaldo, e tenho esses culhões que não me ajudam a andar melhor, mas garanto a vocês que ainda tenho forças para lutar e sou capaz de sair correndo para defender a causa da justiça humana.
Estudantes pobres, quase todos só tínhamos uma única farda, de grosso cáqui cinza escuro. Para vários de nós, era o traje de gala, com o qual comparecíamos a aniversário, enterros, casamentos, pobre que era o nosso guarda-roupa dos fatos brancos adequados à circunstância. Na sexta-feira, quando chegávamos para o almoço, as mães dos ginasianos já estavam com a tina de madeira cheia, à espera das fardas que ficavam de molho. Quantas tardes de sábado minha mãe não passou, ela e tantas outras, vergada sobre a mesa, o pesado ferro de brasa rubra na mão, engomando a farda que o filho ginasiano deveria usar na semana seguinte.