Por Mouzar Benedito
Um dia, no início dos anos 1990, Robson Moreira, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, me falou: “Recebi um recado do Jô Amado, pra te dizer que ele está morando num lugar que você não conhece”.
Perguntei qual era e ele disse só o nome da cidade: “Baía da Traição”.
Dei risada e falei: “É no litoral paraibano, um pouco ao norte de João Pessoa”, e descrevi o lugar que eu tinha conhecido havia muitos anos (sempre tive a mania de querer conhecer o Brasil de ponta a ponta), com um recife que parecia uma estrada entrando no mar. E o município era todo uma reserva indígena dos Potiguara, com exceção da pequena faixa litorânea onde havia o povoado, que depois seria uma pequena cidade.
Segundo o Robson me contou, o Jô ficou pasmo quando soube que eu conhecia a Baía da Traição. Ele tinha se casado com a Alice Nakao, funcionária do Banco do Brasil, e num daqueles “planos de demissão voluntária”, propôs a ela que se demitisse e fossem morar em algum lugar do Nordeste, à beira-mar. E ela topou! Puseram sua mudança num fusca e foram para o Nordeste, onde seguiram pela BR-101 e entravam em cada estradinha de terra que viam rumo ao litoral. Quando chegaram à Baía da Traição, decidiram: “É aqui!”.
Para viver lá, abriram um restaurante chamado “Sol Nascente”, nome de duplo sentido: remetia à origem japonesa da Alice e ao fato de o litoral paraibano ser o mais oriental do Brasil.
Virei freguês. Todos os anos ia lá, com a Célia, minha mulher. No início ficávamos hospedados na casinha de um alemão, professor em Belém, que mantinha essa casa na praia, para ir de vez em quando. E o casal Alice e Jô cuidava dela. Depois eles mesmos abriram uma pequena pousada, também à beira-mar, onde nós ficávamos, mas era quase como hóspedes. Eles se negavam a receber nosso pagamento, mesmo que passássemos muitos dias lá. Com muito custo, conseguíamos pagar uma parcela do preço.
E não era só na pousada. Na primeira vez que a Célia e eu passamos uma temporada lá, ainda na casa do alemão, comi tanto camarão e lagosta no Sol Nascente que enjoei. Eu que gostava tanto de camarão, fiquei um bom tempo dispensando pratos com esse “fruto do mar”.
Um dia, passeando por áreas mais pra dentro do continente, vi um pé de fruta-pão. Reconheci as frutas verdes ainda, mas nunca tinha comido. Comentei com a Alice: “Puxa! Gostaria muito de comer fruta-pão pra saber que gosto tem, mas vi um pé em que elas ainda estão verdes”. Bem… Dormindo na casa do alemão, o café da manhã era no Sol Nascente. E no dia seguinte, o que a Alice me serviu? Entre muitas outras coisas, fruta-pão, que comi pela primeira e única vez.
Ela era assim.
No último dia em que estávamos lá, naquela temporada, fui pagar e a Alice apresentou uma conta ridícula. Vamos dizer assim: entre bebidas e comidas, nós devíamos ter consumido o que hoje equivale a mais de mil reais, porque bebemos muito e comemos muito, como dizem, “do bom e do melhor”. Veio a conta. Coisa equivalente a uns duzentos ou trezentos reais. Como?!
Insisti em pagar o valor real, não aceitaram. A Célia sugeriu: “Vai dar um passeio na praia com o Jô que eu me acerto com a Alice”.
Quando voltamos do passeio, a Alice disse brincando ao Jô: “A Célia sugeriu o passeio de vocês achando que ia me convencer a cobrar mais pelo que consumiram aqui”.
Pois é… Durante uns tempos, todos os anos íamos à Baía da Traição passar uns dias, e levávamos muitas pessoas que logo se apaixonavam pelo lugar e pelo casal Alice e Jô. Tanto que, numa das voltas das muitas vezes que estivemos lá, a Célia brincou: “Na próxima encarnação eu quero nascer homem… E me casar com a Alice”.
Por falar nisso, como reserva indígena, o município recebia muitas visitas de antropólogos europeus, principalmente. Quando chegavam lá, sem falar português, tentavam contato com alguém e começavam a falar “enrolado”, qualquer morador os levava para o Sol Nascente, onde se entenderiam com o Jô, que fala fluentemente francês, inglês e espanhol, e se vira em russo, alemão e japonês. Acho que em italiano também. Assim, nas minhas estadas na Baía da Traição, conheci muita gente boa de outras plagas, pois o Sol Nascente era ponto de encontro de toda essa fauna.
O casal tinha também um papel educativo no lugar. Uma mocinha inteligente, mas que não era respeitada na cidade, vítima de preconceitos, foi a primeira a ser levada para trabalhar no Sol Nascente, como ajudante de cozinha, e depois virou cozinheira ótima. Rosinha. E pegaram uns meninos para serem garçons. Tanto a Rosinha quanto eles, além de receberem um dinheiro que não ganhariam em nenhum outro lugar da Baía da Traição, recebiam verdadeiras aulas, aprendiam a se expressar bem, falar corretamente, etc.
E aí? Por que não ficaram lá?
O Sol Nascente, ponto de alegria e camaradagem, incomodava umas pessoas da chamada “elite” regional. Lembro-me de um rapaz daqueles filhos de fazendeiros metidos a coronéis, que ocupou uma mesa e gritou para um dos meninos, que era negro: “Ô, macaco… traz logo uma cerveja pra mim”.
Antes que o menino fizesse qualquer coisa, o Jô foi lá e disse ao bestalhão: “Ele não vai te servir”. O cara quis encrespar, e o Jô complementou: “Ele não gosta de ser chamado de macaco. E nós também não. Você não vai ser servido aqui”. O sujeito saiu xingando e ameaçando. Outras vezes acontecia de algum desses sujeitos acostumados a mandar pegar um CD de música brega e “falar em tom impositivo”: “Põe esse disco aqui”. Não punham, e o dito-cujo ficava furioso.
Até que, lá pelo ano 2000 (não me lembro com exatidão), um dia o casal acordou de madrugada com homens mascarados apontando armas de grosso calibre para seus rostos. Depois de muitas ameaças, roubaram o dinheiro, as melhores bebidas e as melhores comidas que havia no congelador. Pelo linguajar deles, a Alice e o Jô perceberam que eram pessoas com alto grau de instrução. Provavelmente filhos desses coronéis.
Foram à delegacia e o delegado não deu a menor bola. Suspeitaram que ele era cúmplice.
A Alice não suportou, decidiu que não ficaria mais ali. Voltaram para São Paulo. Andaram morando em Campinas e em Taubaté e um dia o Jô me ligou dizendo que a Alice não aguentava mais o trabalho burocrático que tinha arrumado em Taubaté e pensava em abrir o Sol Nascente lá, perguntando o que eu achava.
Falei: “Ô, Jô, Taubaté? Acho que não vale a pena. Por que não abrem em São Luiz do Paraitinga, que é uma cidade legal, aí pertinho?”. Ele nunca tinha ouvido falar dessa cidade. Articulei um encontro do Jô com um amigo jornalista que ainda mora lá, o Luiz Egypto, companheiro dos tempos do jornal Versus. O Jô ainda me perguntou: “Eu me lembro do nome dele, dos tempos da imprensa alternativa, quando o Robson e eu editávamos o jornal Posição, de Vitória, e de vez em quando nos encontrávamos por aí, mas não me lembro da cara do Egypto e ele não deve se lembrar da minha”. Respondi gozando: “Ô, Jô… vocês vão se encontrar num bar de São Luiz do Paraitinga e você vai ser o único cara diferente ali. Não vai ninguém lá. O Egypto vai direto em você”.
E aconteceu. O Jô foi lá, gostou demais da cidade, contou para a Alice e abriram lá o Sol Nascente, com comida japonesa (novidade total ali), nordestina e, depois, luizense também. Fiquei sendo meio responsável pela ida deles para São Luiz.
Em 2003, Márcia Camargos, Vladimir Sacchetta e eu nos encontramos num lançamento de livro do Emir Sader na Livraria Cultura, na avenida Paulista, e surgiu ali a ideia de criar a Sosaci – Sociedade dos Observadores de Saci. Achei que não tinha sentido criar algo assim na cidade de São Paulo, tinha que ser em uma cidade com forte cultura caipira. Onde? Perguntaram. E sugeri: São Luiz do Paraitinga, cidade que, além da cultura caipira, é lindíssima, pequenininha e com muitos bons músicos. Lembrei a eles do grupo Paranga, que juntava filhos e uma nora de Elpídio dos Santos (autor da música conhecida como “Casinha Branca” e muitas outras, era o compositor preferido do Mazzaroppi, que usou muitas canções dele em seus filmes) e os irmãos Nhô e Galvão Frade. Belíssimas músicas compostas por eles mesmos e amigos locais.
“Mas você conhece gente lá?”, perguntaram. Claro que conhecia. Marcamos um encontro no Sol Nascente, eu já sabendo que a Alice e o Jô topariam. Telefonei pra eles e o encontro se realizou num sábado muito frio de julho de 2003, para a criação de uma ONC – Organização Não Capitalista, para estudo, defesa e divulgação da nossa cultura. Compareceram pessoas de São Luiz, Taubaté, São Paulo e Campinas. Já definimos de cara que defenderíamos 31 de outubro como “Dia do Saci”, fazendo contraponto ao Halloween. A proposta não foi minha. Todos concordamos, e pedi uma coisa: que fosse Dia do Saci e seus amigos – Iara, Curupira, Boitatá, Caipora etc.
Em 7 de setembro daquele ano (aniversário do “Grito do Ipiranga”) houve uma festa chamada “Grito do Saci”, anunciando a primeira Festa do Saci e seus amigos, em 31 de outubro. Esta foi um sucesso, com todos os restaurantes da cidade servindo abóbora com carne seca, e foram produzidas camisetas com o nosso lema “Raloím, só se for com carne seca”, com um desenho do Ohi, mostrando o Saci com garfo e faca se preparando para traçar uma abóbora dessas, com cara de espanto, representando a abóbora do raloím (escrevemos assim mesmo).
Nas Festas do Saci, o que eu sempre gostei de ver é que o pessoal que ia a elas, muita gente mesmo, nada tinha a ver com os típicos turistas predadores. Eram pessoas ótimas, que integravam à cultura local, se divertiam sem dar uma de superiores.
Nossas festas sempre tiveram muitas brincadeiras infantis, música de boa qualidade (sertanejo universitário? Nem pensar!), teatro, seminários, bailados, oficinas de artesanato, passeio saciclístico, serestas, etc., etc., etc. Tudo de graça, em praça pública. Ah, lançamentos de livros também. Claro que os livros eram vendidos, mas com preços menores.
Sempre comento que cada vez que vou a São Luiz do Paraitinga volto com novos amigos. E não é só na Festa do Saci. O “turista” que tinha como referência o Sol Nascente, como bar ou restaurante, era sempre gente ótima, bom caráter, interessante. Nada a ver com as “pessoas de bem”, como se autodefinem os que têm um conceito muito troncho do que é ser “de bem”.
Em 2010, uma tragédia: uma enchente sem precedentes derrubou mais de 80 casarões históricos, além da igreja matriz e da capela das Mercês.
O Sol Nascente, nossa sede, ficou com água um metro acima do telhado. E lá se foram nossos arquivos fotográficos, uma exposição de mais de 60 quadros com o tema Saci, de artistas famosos ou não. Todos muito bons. Quase tudo perdido! E também nosso estoque de camisetas que ajudava a entrar algum dinheiro, pois a Sosaci era e é bancada por nós. Em vez de ganhar, pagamos. E adesivos para carros… Sobraram poucas coisas que não estavam lá naquele dia.
Foi uma coisa arrasadora, mas mostrou o quanto havia de gente solidária com a bela cidade de São Luiz do Paraitinga e seus moradores. Choveram doações.
Fomos lá várias vezes logo em seguida à tragédia. Mário Cândido (então presidente da Sosaci) e Ohi foram meus parceiros nessas viagens. Parecia cenário de pós-guerra, com tudo que havia dentro das casas e amontoado no meio das ruas, fedendo, porque havia ratos e outros animais mortos. Horrível! Não fomos lá só para mostrar nossos “sentimentos”.
Como muitas outras pessoas, levamos o que pudemos, incluindo roupas, material de higiene pessoal, comida e bebidas. Faz falta. Livros também. A biblioteca de lá era muito frequentada, muita gente gostava de ler, mas o poder aquisitivo da população era baixo, então propusemos ao Ministério da Cultura que doasse uma biblioteca básica (5 mil exemplares), que complementaríamos com livros nossos, já lidos e bons. Eu tinha uns 800.
Mas muitas barreiras foram criadas pelo governo do estado de São Paulo, comandado por José Serra. Segundo dizem lá, a prefeitura não podia receber nenhuma ajuda do governo federal, do PT, sob pena de retaliações. Verdade ou não, o certo é que não conseguimos instalar a biblioteca lá no prazo que queríamos.
A Alice e o Jô, assim como muitos outros que perderam tudo o que tinham, foram hospedados por amigos solidários em áreas não atingidas pela enchente. Fomos lá algumas vezes de novo. Gente boa, inclusive donos de pousadas – a Alice e o Jô ficaram hospedados parte do tempo numa delas.
O Jô tinha um problema com São Luiz: o clima. Ele gosta de calor, e São Luiz do Paraitinga tem um inverno brabo, frio e úmido. Gostava da cidade mas tinha saudade do calor das praias de Vitória e da Baía da Traição. A enchente arrasadora trouxe mais um problema: ele ficou abalado demais. Numa das minhas idas lá nesse período, descreveu o barulho das quedas de casarões, e principalmente da igreja matriz, como se fossem bombardeios aéreos. “Pá-pá-pá…”. Traumatizantes mesmo!
Quando pôde, foi passar uns tempos com uma irmã doente que precisava de apoio, em Ubatuba. Depois, separado da Alice, foi para Vitória e pouco antes da pandemia veio para São Paulo.
A Alice se negou a sair de lá. Mesmo traumatizada, achava que devia solidariedade ao povo luizense. Ressuscitou o Sol Nascente, que continuou sendo ponto de encontro de amigos e de se fazer novos amigos que apareciam na cidade. Boas conversas, boas comidas, boas bebidas, fraternidade, simpatia, alegria… E centro da Festa do Saci, quando não tivemos apoio da prefeitura (com coisas mínimas, como emprestar um aparelho de som) e precisamos limitar os eventos a poucos espaços.
Vale aqui uma nota: desde o início da Sosaci, a Alice foi uma batalhadora, um trator pra trabalhar. Todos os anos, mesmo quando tínhamos apoio efetivo da prefeitura, ela trabalhava demais para realizar a festa. E oferecia o que podia de recursos, custeando a impressão de adesivos, camisetas e outras coisas, para receber com as vendas, mas nem sempre recuperando o que aplicou. Às vezes nem cobrava despesas de algumas pessoas no restaurante. O Sol Nascente não era “apenas” a sede da Sosaci. Era um QG da festa, com ela se desdobrando. Foi imprescindível para nós esse tempo todo.
No ano passado, não foi possível fazer a festa, fizemos encontros virtuais, divulgamos vídeos, com um pessoal muito bom de Taubaté tomando as rédeas dos acontecimentos, ao lado de companheiros de São Luiz mesmo, e planejamos uma festa que duraria outubro inteiro em 2021, supondo que a Covid-19 estaria ultrapassada.
Mas em vez disso, a Covid recrudesceu. Levou várias pessoas amigas, inclusive lá. Nhô Lâmbis, grande músico, foi um deles. Aí veio a notícia: a Alice está com falta de ar e teve que ser hospitalizada. Vai melhorar, confiamos. Mas precisou vir para um lugar com mais recursos, a Santa Casa de São Paulo. Foi para a UTI. As notícias não eram boas, mas tínhamos esperança.
Não adiantou. A Covid levou a Alice em 14 de abril, deixando-nos um sentimento de vazio, de angústia, tristeza e revolta. Sim… Revolta! Com um governo decente, poderíamos estar todos vacinados desde o ano passado, salvando dezenas de milhares de Alices e Nhôs – isso mesmo: para cada pessoa que perde um amigo ou parente, a pessoa perdida é uma Alice ou um Nhô.
E fica agora a incerteza: é preciso continuar. Vai ter festa? Não sei! A Sosaci deve continuar ativa, mas a Alice vai fazer falta demais! Parar tudo o que foi feito seria uma coisa desoladora, além de uma derrota nossa para os negacionistas desumanos, que não querem um povo amado, mas armado. Um pessoal que prefere as armas aos livros, o ódio à fraternidade, que louva a morte em vez da vida; que é racista, preconceituoso e odeia o meio ambiente, a cultura, a educação e os pobres!
Alice… precisamos criar forças e continuar. Com saudade, mas continuar!