Memória Viva

Lembranças da minha cidade natal (15)

Castro Alves, a voz dos escravos africanos
Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Fato expressivo é que meu pai, apesar de quase sem letras, nunca se opôs às minhas pretensões a fazer literatura. Como que o Carlos Malagrida desejara circunscrever-me aos livros europeus, o velho Pascoal, embora italiano, era pelos poetas e prosadores do Brasil. Vindo ao Rio, consultava um empregado da Garnier, creio que o Jacinto Silva, e levava à Paraíba do Sul toda esta boa gente nacional, que se me tornava logo gente de casa.

E foi assim que me atirei a Gonçalves Dias. Deliciava-me aquilo do nosso céu ter mais estrelas, sem saber que um lusitano já protestara, afirmando que o céu português, dado o seu tamanho, possui mais estrelas que o nosso.

Há uma finura arminhada nos seus melhores cantos líricos, e é explicável a sedução que esse mestiço exerceu em tantas mulheres alvas.

Dizem que sabiá não canta em palmeira, mas o de Gonçalves Dias cantou e ainda ficou, o que é melhor, gorjeando nas almas.

Um pouco mais ruins são em geral as suas passagens épicas e mais tarde, descobrindo uma parenta do poeta, tive ensejo de encontrar nela o fogo que faltava aos “Timbiras”.

Mal entrevi então que Álvares de Azevedo foi febre alta, sonho larvário, loucura. O gênio crepitava nele.

Se quisermos um romântico típico, será impossível escolher outro. Todos os fantasmas combinaram reunir se na “Noite na taverna”.

O mais virginal dos moços falava em bêbados, prostitutas, antropófagos, necrófilos, jogadores, incestuosos, piratas. E até um temporal lhe revolveu a cova…

Criança, entendi bem Casimiro de Abreu, que era também uma criança, mas parece-me assombroso como esse primário, essa alma infantil, ainda hoje enterneça mesmo os velhos e que ele, com os olhos sempre embaciados de lágrimas (já chorava antes do exílio, antes da doença), visse com tanta nitidez as nossas paisagens, as nossas árvores, as nossas águas, tendo notas de localização que os fluminenses reconhecem de pronto.

E o lirista sem técnica, que lia mais em seu próprio coração que nos livros alheios, resiste aos professores afeitos a submergi-lo em comentários eruditos e até a alguns críticos seus comparáveis a novos bacilos de Koch afligindo o pobre tuberculoso.

De Laurindo Rabelo seduziam-me especialmente as anedotas. Mas a seguir constatei que a vida do Poeta Lagartixa esteve longe de ser uma farsa. Ninguém padeceu mais em nossas letras que Laurindo. Quanta desgraça a atingir-lhe pai, irmão, irmã!

Não foi caniço a recurvar-se diante dos fortes, sofreu de paisanos e militares, vagou sempre país a fora, como que saudoso dos caminhos que haviam percorrido os seus antepassados ciganos, e morreu cedo, depois de tantas escaramuças com um destino adverso.

Incompreendido de muitos, esse homem de cabelos em desordem e unhas tarjadas de negro só do orgulho recebia fricções de coragem e, se pretendiam humilhá-lo, não trocava a sua fome por nenhum banquete dos ricos.

Irritando-se com os que vivem placidamente imersos numa ditosa estupidez, o sentimental mudou-se em sarcasta, corrompeu em saliva empeçonhada um talento de lirista que o poderia igualar a Fagundes Varela.

E justifica-se que o pouco lacrimoso Machado de Assis lhe consagrasse palavras quase tão enternecidas como as que Taine consagrou a Musset. Só um ato mau se conhece em Laurindo: o haver composto uma gramática. E, em relação à sua viúva, sobreviveu-lhe anos e anos e, se morreu de saudades, morreu devagarinho…

Para Varela, era dispensável a obra impressa da Garnier, bastando folhear o Tota, que o sabia inteiramente de cor.

Ao que ouvi deste, o cantor de Iná dava idéia de uma figura mítica: humilde e orgulhoso, próximo o distante sempre dos interlocutores.

Nele, talvez o homem, pelas suas aventuras e bizarrices, fosse ainda mais poético que os seus poemas. Não inventou desgraças: viveu-as realmente.

Visível, porém, em Fagundes Varela um jogo de contrastes que desconcertava os demais.

Na Paulicéia conversara com os monges de um convento e o claustro parecia atraí-lo como uma voragem de luz e sombra; queria Deus, mas logo a saudade da alcova da Ritinha Sorocabana o fazia reverter ao Diabo.

Salvou crianças e mulheres num naufrágio e teceu um acróstico insidioso em que ridicularizava Pedro II. Chorava o filho morto na mais sublime elegias e lisonjeava os taverneiros.

Fugia das grandes cidades como quem foge de um cárcere, mas conservou sempre, até nos versos de caráter mais acentuadamente rústico, preciosismos acadêmicos de história e mitologia.

Como que houve nele a sobrevivência espectral dos poucos dias venturosos que desfrutara na meninice.

Se reler hoje Macedo é como ir morar em Itaboraí, terra do prosador, regalei-me, ali por 1900, com esse homem da província que descreveu um Rio bem provinciano, provando como era fácil fazer rir no outro século e estampando, com a maior candidez, passagens escatológicas das “Memórias da rua do Ouvidor” no sisudo “Jornal do Comércio”, derribador de ministérios.

Nenhuma literatura intencional em Manuel Antônio de Almeida, nenhum desejo de tornar-se caso literário: sua narração não é literatura e vale mais que literatura, porque é vida.

E ao conhecê-lo, ainda moleque de rua, eu não me sentia leitor e sim participante de tudo o que ele contava, metendo-me logo entre os moleques que acompanhavam as procissões de meirinhos, milicianos e parteiras no tempo do Vidigal.

Se destruírem o Rio e me deixarem apenas esse livro que fala dele, não perderei muito.

Quanto ao fantasista do “Guarani”, foi longo tempo o meu território. Chamava-lhe eu com ternura “o meu Alencar”.

A poesia de Domingos de Magalhães era prosa e a prosa de Alencar poesia. Foi este um Jeová miúdo a fabricar por aqui pequenos mundos deliciosos.

Em Paraíba, o advogado Macário dava a todos os afilhados os nomes de Iracema e Ubirajara e atacava Pedro II por haver preferido, em lista tríplice de senador, um insignificante parente de Macário ao grande romancista que ele conhecera de perto e comparava fisicamente a um gnomo com enormes barbas.

“Precisa-se de heróis”: eis um anúncio a colocar no Pão de Açúcar. Não temos heróis a não ser nos romances de Alencar.

E Macário questionava com seu colega Ratisbona, outro cearense, que sobrepunha aos índios do nosso patrício os de Fenimore Cooper.

Alencar? Está bem. Ainda hoje o admiro muito. Mas a revelação suprema foi para mim Castro Alves.

Logo me dominou de todo o adolescente baiano. Sem essa alma que era um íris de emoção, o Brasil não me pareceria tão belo. Ele nos mudava em poetas para sempre.

Lê-lo era respirar a luz e o azul das manhãs, sentir as folhas fremindo ao vento, vagar entre asas e gorjeios. E graças a ele, eu, que não tinha nada, tinha tudo, porque tinha a esperança.

Todos os homens e deuses celebrados por Antônio de Castro Alves andavam à noite lá pelo alto e as constelações se me afiguravam diademas para frontes invisíveis…

Mas não desejo impor, autoritariamente, o meu castroalvismo a ninguém. Já agora, não mais pretendo pontificar a respeito de coisa alguma.

Se fiz crítica literária durante quase meio século, hoje o crítico se me afigura um sujeito odioso ou grotesco que vive a autopsiar flores e a depenar cisnes. Não creio em fixidez de julgamentos. A vida é um prisma volubilíssimo. E muito me divertem os cidadãos que dogmatizam: “A minha opinião é que…”

Sem sair do chamado mundo das letras, o mais complicado e o menos habitável dos mundos, quantas reputações não vi eu diluírem-se à maneira desses medicamentos que curam apenas nos primeiros tempos de venda.        1

Entanto, aqueles em que a minha meninice garimpou ouro e diamantes continuam vivos em mim.

Sei que tudo quanto rimei no balcão paterno, quase sempre em papel de embrulho, não vale nada, morreu antes da minha morte. Ninguém lembra que o mau julgador foi precedido por um rimador ingênuo.

Todavia, o que fiz mal feito resultou da doce ilusão de que imitar é igualar, e, não chegando a ser sol, fui, de qualquer modo, humilde velinha a arder no canto do altar deste ou daquele gênio admirado pelo pobre garoto paraibano.

No tocante a Luís Delfino, recordo que não deixava de concordar quando o velho Tota via nele a menos poética das criaturas. Como que tudo se lhe concentrou nos versos e nada sobrou para o homem, para um autor em que tudo é sufocação da abundância nessas estrofes comparáveis às plantas da índia cujos galhos, tocando na terra, formam logo novas árvores.

Mas Cruz e Sousa? “A morte, o espasmo gélido, aflitivo…”: eis um verso seu que resume todo o poeta.

Mulher louca e filho tuberculoso, negro seduzido pelo teatro, pelas atrizes, pelas alvas filhas de alemães que conhecera em Blumenau e Itajaí, gosto dos ornatos de igreja e palácio, coisas de europeu do Mediterrâneo, imagens luxuosas e luxuriosas que não careceram da vinda de d’Annunzio para ser dannunzianas. . .

Finalmente, em Raul Pompéia passa-se sem transição do fogo ao gelo. Parecia ele um fantasma após o seu grande sucesso inicial no belíssimo romance onde a “écriture artiste” dos Goncourt não conseguira asfixiar uma piedade à Alphonse Daudet diante das crianças sofredoras às voltas com pedagogos estúpidos.

Curioso: Pompéia não suportava os grupos e a solidão horrorizava-o, sendo-lhe tudo convite ao suicídio.

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mlsmarcio

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