Memória Viva

Lembranças da minha cidade natal (16)

Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Não. Considerando bem, nunca o vento da aventura me tonteou. Senti em mim sempre uma alma de burguês. O aventureiro da minha gente foi meu irmão Donato. Vindo da Itália, com traços inequivocamente italianos, e especialmente um grande nariz italianíssimo, jamais se preocupou ele em ir ouvir uma ópera e talvez nunca viesse a saber da existência de Bocácio e outros narradores da Península. Só lhe interessavam as histórias e modinhas de mulatos e pretos.

Hoje que falam tanto em folclore, recordo a vivacidade histriônica com que Donato, para divertir o pessoal de Paraíba, imitava um diálogo entre Pai João e Mãe Joana. O sotaque era de marido e mulher que haviam passado pela senzala e os episódios típicos eram de assombrosa verossimilhança.

Nesses momentos, sentia eu nele um grande ator malogrado, um caricaturista verbal em tudo digno da raça dos improvisadores da chamada Commedia dell’Arte

E dos jograis de teatro possuía ele a inquietude, a mobilidade, a fúria cigana de empoeirar-se nas estradas do mundo. Se chegava a Paraíba um circo de cavalinhos, pensava logo em meter-se entre os amarra-cachorros e seguir com o bando.

A certa altura, meu pai encarregou-o de vender uns queijos. Vendeu-os o Donato e desapareceu com os cobres.

Tempos depois recebemos a notícia de que o maluquinho sentara praça na polícia fluminense e já estava servindo em São Pedro da Aldeia.

Neste lugar não havia peste ou guerra e a vida seria das mais cômodas. Todavia, mamãe tomou-se do pavor com que as mães russas ouviam falar da Sibéria. Chorou. E lá teve meu pai de dirigir-se a Niterói para obter, com a interferência de Nilo Peçanha, a baixa do filho trapalhão.

Mais tarde, repetiu-se a fuga e foi ele participar de um conflito de estivadores no Saco do Alferes, recebendo ferimentos que o levaram à Santa Casa da Misericórdia. Aí, encantado no convívio de médicos e enfermeiros, resolveu fazer-se cocheiro do carro que conduzia defuntos sem categoria à cova rasa, o famoso “rabecão”.

Fatigando-se em breve desse encargo fúnebre, abandonou o coche à porta do cemitério de São Francisco de Paula e ei-lo sócio de dois sorveteiros ambulantes, guiando um daqueles veleiros de navegação terrestre que a garotada dos bairros acolhia com um júbilo que nunca inspiraram os navegantes da escola de Sagres.

Desentendeu-se semanas depois com os sócios e foi, no pior cassino da Cidade Nova, puxar fichas com o ancinho junto à roleta. Deu-se uma invasão de policiais e teve ele de carregar até à delegacia a roleta, as fichas, o ancinho.

A seguir, aquietou-se um tanto. Mas ainda assim sem se fixar em dado ponto.

Porque escolhera a função de guarda-freios da Central do Brasil e estava sempre a percorrer as linhas do interior, saltando sobre os carros com agilidade de símio.

Desposou a filha de um português que vendia galinhas pelas ruas de Paraíba, de tamancos e cartola, entulhando-se de rapé à moda fradesca.

Católico, enchia o Donato o quarto de imagens e, com veleidades de elegância, manteve até à morte um amor fetichista aos sapatos, que engraxava todas as manhãs, a embevecer-se nos sóis que o sol suscitava naquelas biqueiras espelhantes.

Violonista, deslumbrara o próprio Catulo, insuscetível de admirar quem quer que fosse num gênero em que se supunha mestre dos mestres, e não perdia noite de lua, a repetir modinhas de cá, indiferente a quantas canções napolitanas lhe propusessem.

Exprimia-se em gíria com um adorável instinto do pitoresco, fabricando metáforas que me enchiam de inveja.

Mais de uma vez, vendo a minha estante de livros, aconselhou-me a atirar ao fogo essa papelada besta ou a vender tudo isso para comprar um violão.

Nunca teve caderneta em caixa econômica, jamais se preocupou com as despesas da semana próxima.

Infelizmente, voltara ao jogo, e não já como profissional, como cúmplice de banqueiros, e sim como jogador e, consequentemente, como vítima.

Uma noite, vi-o perder na Maison-Moderne, do Pascoal Segreto, todo o ordenado recebido na Central e até o produto de um embrulho de maçãs que comprara para os filhos e acabou vendendo ali mesmo, à beira do pinguelim, para continuar requestando a sorte adversa.

Mas isso talvez nos haja salvado a vida, porque, ao retornarmos ao nosso casebre num morro, percebemos que o pardieiro estava prestes a desabar, o que não poderíamos perceber se nos houvéssemos deitado horas antes.

Aí, contra todos os preceitos de moralistas, o vício foi mais generoso que a virtude…

Mamãe, que o adorava, contou-me que, na viagem da Itália para o Brasil, ela enjoara muito, enquanto ele conservava um inalterável apetite, devorando nas refeições a sua parte e a parte materna.

Andara, em rapaz, às voltas com uma vistosa mulata paraibana, de nome Sílvia Gorgonha, que tinha a face cheia de sinais e capengava um pouco.

Morreu o pobre Donato duas vezes.

A primeira num telegrama de pêsames que colegas seus enviaram à nossa casa. Tive de levá-lo a Paraíba, para que mamãe o visse garboso e forte, sendo que ele começou a abusar de seu papel de falso defunto e entrou a exigir presentes, de modo a que papai, não muito admirador seu, decidisse de pronto devolvê-lo ao Rio.

Depois, ocorreu a segunda morte, e esta definitiva. O mais brincalhão, o mais otimista dos homens, extinguiu-se num violento derrame de bílis, aos trinta anos de idade. E ainda lhe encontraram, nas calças que vestira por último, três cédulas de dez mil réis, recolhidas vitoriosamente por ele na derradeira parada junto a um banqueiro de campista…

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