Por Agripino Grieco
Devo uma referência ao meu condiscípulo paraibano Júlio Tirlinto, com quem estudei em 1904 e que me reapareceu aqui no Rio trinta anos depois. Quase em frangalhos, carregava embrulhos informes e falava às pressas, entre risadinhas meio ansiadas e meio irônicas.
Herdara essa alcunha tilintante, de moeda caindo em mármore de botequim, de um pai padeiro, que bebia muito, deixando ir na bebida o que o pão lhe assegurava, e permitindo à uva tornar-se vitoriosa sobre o trigo.
Quanto ao filho, distanciou-se logo do forno e do balcão paternos e levou sempre uma vida errante de romance picaresco.
Coloriu retratos numa praça do Méier, ensinou canto orfeônico em colégios de Teresópolis, e voltou à cidade natal já velhusco, com uma valsa, “Saudades de Paraíba”, do gênero das consagradas a Matão e Ouro Preto, desejoso de enternecer os conterrâneos.
Mas tudo lá havia mudado, e ninguém o reconheceu, como ele não reconheceu ninguém. Chorou ao ver as árvores do largo em que tocara requinta nas retretas do Guerra da Costa. Casou-se, enviuvou e esteve para repetir casório com uma viúva que acabou optando por um professor de samba. Seu filho foi trabalhar na Venezuela e não mais retornou, e sua filha, bem situada na burocracia, foge dele como de um pestoso.
Gordo, a barba por fazer, diz-se refeito de umas dores no ventre que o levaram a ser charcutado várias vezes em hospital. E metera-se, pouco antes de visitar-me, com um grupo de malandros de Copacabana, que o embebedaram e foram abandoná-lo no Realengo, deixando-o sem o relógio, a carteira e a máquina fotográfica…
José Geraldo Bezerra de Meneses nascera em Paraíba do Sul e, em menino, vendo um preto escravo jogar-se ao rio, para fugir aos seus algozes, tornou-se partidário da Abolição, embora se conservasse irredutivelmente monarquista.
Estudante na Paulicéia, ligara-se a um condiscípulo que decorava os pontos de exame cantarolando-os com música de ópera. Perdeu posições para não se separar do pai, um velho de cabeça a John Ruskin. Teve as suas aventuras juvenis e, metendo-se com a mulata Leonor, fez-se pai de um garoto a que deu o nome de uma das personagens simpáticas do “Coração” de De Amicis.
Atirou no bacharel Melo Matos, que o esbofeteara. Gostava muito de vinho, mas, ao casar-se, prometeu à boníssima dona Lucinda, portuguesa, filha do ator Montedônio, que não mais se excederia nas libações. E ainda vejo daqui o prazer voluptuoso com que, numa refeição qualquer, levantava ele o copo e respirava o néctar adorado, de que não mais podia abusar.
Aos domingos, no bairro do Fonseca, em Niterói, espairecia com as irmãs, uma delas viúva do poeta paranaense Dias da Rocha Filho, piraquara adotivo.
Morando em Gragoatá, não abandonou sua casa nem ante a ameaça de bombardeio, num período de revolta, não quis deixar a biblioteca onde livros novos se estragavam ao contato de livros bichados.
Advogado aberrantemente honesto, insurgia-se contra os seus constituintes, à menor suspeita de patifaria destes. Sílvio Romero e Capistrano de Abreu estimavam-no, visitando-o sempre.
Sabia tanto que nos fatigava ao explicar-nos qualquer assunto, tais as minúcias com que se expandia. Custando a ir ao essencial, falava com quem está acutilando e parecia fazer balançar a barca da Cantareira.
Atrapalhava os ingleses de Icaraí com a sua erudição inglesa e os padres se aturdiam ante os seus conhecimentos teológicos.
Usando, invariavelmente, roupa do mesmo feitio, tinha a boca meio torta e os dedos como que iodados pelo cigarro.
Malbaratou-se em tarefas secundárias, sem nada deixar que o imponha aos de hoje. Mas eu posso depor sobre o que ele significou para a nossa cultura.
Foi o bastão de muito cego das letras. Jamais o apanhei em erro, por mínimo que fosse, e o “Bezerra disse” equivalia a sentença inapelável, quase a dogma papalino.
Preferindo ler a escrever, José entrava pela madrugada de livro em punho. Catolicíssimo, detestou desfiles de escoteiros, reuniões de rotarianos, e era doido por procissões.
Diante da desarrumação de sua vida, a esposa foi quem dirigiu a casa onde se sucediam os filhos e os encargos se avolumavam. Dona Lucinda perdoava-lhe evangelicamente os furores nativistas. Bezerra adorava o Laet, mas, sabendo ser também jardineiro dos seus rancores, não ia com outro católico, o Antônio Felício dos Santos.
Nem lhe faltavam momentos paradoxais. Foi germanófilo veemente na guerra de 14 a 18 e, no entanto, passou todos os anos da guerra a ler autores ingleses, especialmente a poetisa Browning, de quem possuía umas quinze edições. Crente ortodoxo, lia Voltaire, chamando-o de canalha, mas indo até o fim do volume, deliciado. Foi ele o instigador dos primeiros trabalhos do sociólogo Oliveira Viana, que aliás nunca se lhe mostrou suficientemente grato.
Ainda nos últimos meses de vida, encontrei-o a recrear-se nos seus dois barbaçudos e cabeludos da poesia norte-americana: Bryant e Longfellow. Sepultaram-no com o hábito de terceiro irmão franciscano. E, a esta altura, penso eu que para retratá-lo seria necessário, não este pobre Grieco, mas o grande pintor El Greco.
O Manduca Sapateiro, homem pior que ninho de vespas, dizia de um sujeito tedioso: “Pega mais que cataplasma.” De outro que chorava ouvindo os sermões do cônego Olimpio de Castro: “Rega com lágrimas as flores de retórica do orador.” A propósito de um madraço: “Para ele toda a semana virou domingo.”
Comentário à abundância de portugueses em Paraíba: “Isto não é Brasil, é Portugal: tudo aqui é Porto, Coimbra, Lisboa.” Sobre o Cláudio, anfitrião de amigos e pouco pontual nos pagamentos: “A generosidade não será dele, mas do comércio local.” Alusão a um boticário maldizente: “Tem mais venenos na língua que nos frascos.”
A uma família prolifera, e em que todos tinham cara diferente, chamava Família Tinhorão. Falando de dois irmãos gêmeos, Jovino e Jovina, ele de ares afeminados e ela bem masculina de atitudes: “Houve confusão de sexos no ventre materno.” A uma velhota de nome Rosa, sempre a expelir gases, deu o nome de Rosa dos Ventos.
Referência à forretice de alguns paraibanos: “Não é de estranhar: nosso município limita com o Estado de Minas.” Enraivecia-se ao ouvir a valsa “Sobre as ondas”, porque ao som dessa valsa o haviam surrado num baile da roça. A determinado professor, que ajudava os demais a produzir literatura e não produzia nada, definiu assim: “Parteira estéril”
Diante de uma providência tardia: “É fazer clister em defunto.” Sentença pessimista: “No Brasil o homem casa-se com a família da mulher e leva a mulher de quebra.” E velho parente seu inspirava-lhe este disparate voluntário: “Tem mau hálito nos pés”.