Memória Viva

Lembranças da minha cidade natal (5)

Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Amava eu o gerânio somente pela pompa do termo, sem saber direito de que planta se tratasse. Todo tanque se me afigurava cheio de nenúfares, devido apenas ao aveludado do nome. Indiferente ao patriotismo oficial, sem nada de cívico, apanhei flechas de foguetes em festas religiosas. No circo, admirava os alamares e as medalhas do diretor, julgava a palavra “clown” saltitante como aqueles que a usam, e acabei atribuindo mais importância aos acrobatas que aos vereadores da Câmara.

Na época – bem o recordo – as valsas da família Strauss faziam dançar meio mundo. Tempo feliz, em que existiam menos sociólogos e mais doceiras!

Homem do campo e rio, e não de praia ou de montanha, se eu avistava um fio de água debaixo de uma ponte ficava em delírio. E um livro que me dessem de presente? Era como se me brindassem com o mais lindo dos polichinelos.

Muitas estrofes de rimadores rasteiros me pareciam admiráveis, porque a poesia estava em mim.

Até o cair da chuva era melodia. Um grilo passava a ser cigarra de fogão.

Apaixonei-me por uma rapariga ida daqui da capital quando a vi meter o narizinho róseo no lenço de seda e ajeitar uns cabelos em que havia a dourada espuma de certos vinhos.

Fiz-lhe os primeiros versos: “Os teus olhos ficaram nos meus olhos/ E a minha boca pede a tua boca…”

Lindo começo de século! A alcoviteira patifíssima que se chamava Primavera, aquele escândalo de rosas rubras, risos, vôos, flamas por toda parte…

Foi-se-me depois a idade lírica e escrevi um soneto contra Deus, soneto que, aliás, tornava sem efeito sempre que transitasse, alta noite, por um sítio deserto.

E isso de garatujar em prosa? Como me veio o prurido de improvisar-me narrador de façanhas rocambolescas?

Devorara eu uma ficção de que alguns episódios decorriam na Paraíba e deslumbrara-me, embora, relendo mais tarde esse livro, o achasse de uma vulgaridade desconcertante.

Era de Teixeira e Sousa, que, sendo prosador medíocre, figura como puxa-fieira do nosso romance, autêntico iniciador do gênero, mas sem possuir outro mérito senão o da ordem cronológica. Hoje o incluo entre os que só se antecipam aos demais para estragar os assuntos.

Em sua narração “Maria, a menina roubada”, pôs ele no papel “Paraíba do Sul” do mesmo modo que poria “São José do Rio Pardo”, não havendo, no volume, nenhum traço definidor da paisagem, da psicologia da região.

De qualquer forma, páginas assim excitaram-me a entrar pelo dramático.

Meu pai tentara fazer escrituração mercantil em sua casa de negócio e eu aproveitei os livros em abandono para inundá-los de historias com assaltos de bandidos e raptos romanescos, enchendo o meu singelo recanto de tipos façanhudos jamais entrevistos por lá. E tudo abria com o mais vetusto dos chavões descritivos: “Era por uma formosa tarde de verão…”

Compreendo agora a bobagem dessas fugas por uma fantasia fácil, mas o jogo de aventuras então me fascinava, de preferência às anedotas dos que voltavam festivos de um folhetim de França Júnior, quando não do “Manual do riso e passatempo” de Pafúncio Semicúpio Pechincha, bastante querido dos provincianos.

Também meu pai – devo acentuá-lo – me transmitia expressivos pormenores a propósito do inglês refratário ao pagamento das suas dívidas por não saber português; do mendigo preto que ia molhar o pão no azeite da lâmpada de São José, e do calabrês que, perseguindo um inimigo, berrava: “Se corres, atiro; se paras, esfaqueio-te; se te jogas no poço, eu te perdôo!”

Da rua recebíamos as definições pitorescas, os admiráveis achados da fala popular: passo de urubu malandro, não embarco em canoa furada, flautear o próximo, charuto quebra-queixo, cara de mamão macho, fealdade de desmamar criança.

Mas eu sobrepunha a essa modesta realidade folclórica a localização de um bando de salteadores no lugarejo denominado Mingu, perto de um riacho que passa fazendo muitos “ss”, assim como quem não tem vontade de se meter no rio Paraíba.

Metáfora que acreditei extremamente ousada era chamar o quarto-minguante de “fatia de lua”.

Introduzi ainda em meus escritos, caluniosamente, imputando-lhe alguns envenenamentos e punhaladas na sombra, um pobre engenheiro italiano que se transviou por lá, cidadão de óculos pretos, gravata branca e dentadura a lembrar teclado velho, sempre com projetos de edifícios enrolados debaixo do braço, mentindo e fumando charutos finos e longos, a exprimir-se devagarinho, com grande suavidade.

Inversamente, concedi honras de heroína perseguida a uma volumosa matrona que fora aqui no Rio companheira de pândegas de Sinhá Flor, a Musa de B. Lopes, e depois se amigara com um mestre de linha escaveirado e afônico, embora se dissesse, a cada instante, parenta de ministros e senadores.

Com uma revoltante parcialidade, depois de difamar o engenheiro italiano, conferi a essa patrícia horrenda encantos incríveis, a dizer que seus pés – aqueles pés disformes! – deixavam, na areia dos caminhos, vestígios de luz, quando ela se movia entre arbustos comparáveis a grandes madrepérolas verdes.

E, de envolta com o homem dos projetos e a companheira de Sinhá Flor, situei nos meus manuscritos vários tísicos e suicidas e um bêbado que desmaiava ao piano mediunizando Chopin, depois de atirar-se, descabelado e pálido, ao ponche flamejante das orgias.

Assim, em troca de fantasmas, perdi as figuras veracíssimas do meu microcosmo paraibano, tão boas para um romance de costumes: o Benedito do Correio, sempre a elogiar os contos caipiras do Valdomiro Silveira, exprimindo-se de olhos entrefechados e com um ar de quem ia rir, muito vermelho e conservando até à morte a barbicha que o fazia assemelhar-se ao francês Raymond Poincaré; o padeiro minhoto do Lavapés, casado com brasileira e triste porque um seu filho jacobino se confessava desejoso de abrir as veias para delas retirar a parte de sangue português do pai; o Reginaldo, representante do jornal da terra, cobrando a assinatura em cereais, frutas, aves, tudo quanto encontrasse; o mulato Francelino, fanfarrão, e a quem um desafeto arrancou parte do cavanhaque marcial, sem que ele reagisse; o maestro Linhares, lanzudo, cara de albino, bom conversador, sempre a contar bandalheiras aos filhos com a mais absoluta naturalidade; o valentão Miguel, famoso por haver raptado a amante mestiça de um advogado cearense; o sacerdote que forrou as paredes da sua casa com as estampas de luxuoso livro de botânica; o Filipão, grande comedor, presente a todos os banquetes da localidade e que uma vez, às cinco da manhã, quando eu tomava o trem para o Rio, me ofertou um prato de fios de ovos trazidos de uma festa de casamento; a velhota dada a descompor quantos garotos a tratassem de Joaquina Perereca, embora, acalmando-se, exibisse a esses mesmos garotos as gravuras, tiradas de revistas, de cenas da revolução contra Floriano, com o célebre canhão “Vovó”, ou da revolta de Canudos, com a figura de Antônio Conselheiro; o enteado do Zé do Lixo, foguista, que eu deixei noivo em 1906 e reencontrei em 1920 noivo imutável de uma enteada capenga do negociante Cardoso; o boêmio Augusto, perpetuamente deitado num banco do jardim do tio, de boca aberta para o alto, como se estivesse tomando gargarejes de sol, enquanto, empoleirada junto dele, uma arara já parecia empalhada, apenas com um leve bater de pálpebras, de quando em quando, sobre aqueles olhos redondos; o boticário Mafra, que brandia o almofariz com a mesma gravidade litúrgica com que os curas brandem o hissope, exagerando ao dizer de um freguês seu: “Engole tantos comprimidos de aspirina que dá idéia de estar comendo pipocas”; e, finalmente, dois jogadores: o Antônio Tomás, alfaiate, que fugia da sua tesoura qual se fugisse da tesoura da Parca e não deixava a roleta onde o Totó, com o ancinho implacável, recolhia moedas e fichas dos vencidos, e o nada vaidoso Narcisinho, que, apesar do nome, nem sequer usava espelhinho de bolso, parecendo feito de cubos amontoados e bem podendo ter fornecido a primeira inspiração à pintura cubista.

E, já que falei em jogo, não esquecerei uma tentativa de corridas de cavalos lá para as bandas do Campo Santo. Mas os jóqueis ressequidos, com suas blusas de chita, pouco interessaram aos bons burgueses do meu sonolento rincão, pensando estes, sensatamente, que, por ocasião do páreo, com a ida ao guichê das pules, à pista, para acompanhar a disparada dos quadrúpedes, e a volta ao guichê, para verificar as cotações obtidas, o jogador acabava correndo mais que o próprio cavalo.

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