Por Agripino Grieco
Agora, devo indicar o que mais me impressionou dentre as histórias que circulavam pela Paraíba sobre antigos fazendeiros da região. Nisto, os maiores esclarecimentos me vieram de meu padrinho José Bezerra, homem-biblioteca, homem-arquivo, o melhor dos homens, que conhecia tudo e não escreveu quase nada, contente em ser o benfeitor oculto de tantos mendigos de informações, que logo o olvidavam.
Trazendo na memória as mil coisas lidas e ouvidas em relação à terra de nós dois, ele como que se propunha ajudar-me nestas reminiscências ao resumir curiosos tipos de decênios antes.
E aproveitou-me segui-lo na digressão a propósito do conselheiro Martinho Campos, que aturdiu o parlamento imperial com os trajes rústicos que não abandonou nunca, mostrando-se criatura feita de um burro à parte, fecunda em esquisitices, e tendo respostas pilhéricas com que logo amordaçava o interlocutor irônico; do barão de São Carlos, dono do lendário solar de Monte Cristo (visível influência do romance de Dumas, lido até pelos venezuelanos e javaneses), cujos herdeiros se engalfinharam numa refrega que, entre o foro de Paraíba e o Supremo Tribunal Federal, se desenrolou por dezenas de anos, de modo a que os litigantes apenas tivessem, antes de chegar ao fim da contenda, não vastos terrenos e sim os sete palmos de terra do cemitério; do sitiante do Caxambu, admirador dos jongos e cateretês bem ritmados, embora receoso dos moradores de um quilombo próximo que se diziam governados por um príncipe africano amigo de ostentar, nas festas rituais do bando, roupas e adereços suntuosos; do ancião que mantinha um harém de califa e expirou, com oito décadas no costado, a afagar as pernas das mucamas, esperando conseguir o que o velho Davi não conseguira da novíssima Abisag, tal a confiança desse fidalgote nos magos e curandeiros que, em troca de frangos e doces, haviam jurado rejuvenescê-lo com afrodisíacos; do proprietário de um solar da Bemposta erigido nas vizinhanças da serra Maria Comprida, inspiradora de lendas que faziam as mulheres tiritassem de medo e punham os dentes das crianças castanholando à hora das narrações noturnas junto ao fogão, e do visconde de Paraíba, avesso a chicotear escravos ou a ferir a colossal gameleira que Pedro II, seu hóspede, admiraria tanto e foi mais tarde assassinada estupidamente para dar lenha à padaria do Canedo.
Mas os nossos literatos? Recanto de gente batalhadora em política e onde as demandas eram a última volúpia dos fazendeiros decrépitos, não chegou ele a possuir o sociável encanto e os fervores intelectuais da vizinha Vassouras, de onde saiu a esposa do visconde de Taunay e onde os jornais pompeavam a colaboração de poetas e prosadores como Lucindo Filho, Rodolfo Leite, Jorge Pinto, Alberto Brandão, Coelho Neto e Raimundo Correia, sendo que alguns destes habitaram demoradamente naquelas casas solarengas, numa bela cidade a que apenas faltam, para torná-la completa, as curvas, as ingazeiras, as ilhotas e as melodias do meu rio Paraíba.
Mas ainda lembro que em nosso torrão estampou crônicas legíveis um Soares de Sousa Júnior, antes de vir destacar-se na capital como confeccionador de romancitos meio salgados. Soares, que se finou aos quarenta e dois anos, rimava escorreitamente e, na sua devoção por Shakespeare, deu a dois rebentos os nomes de Romeu e Julieta.
Mal chegou a estrear na imprensa o mestiço Celso Ribeiro, irmão do tesoureiro da Câmara e de quem uns versos sobre tísicos importavam na amarga antevisão da doença que o levaria.
Muito sensível nos escritos locais de então o influxo de Vítor Hugo. Isso explica o sucesso de uma festa em honra ao gênio, classificado enfaticamente de “Divino Mestre” nos convites.
E assinale-se que a composição endereçada por ele aos piraquaras, e que figura em coletânea de Múcio Teixeira, é perfeitamente apócrifa, tendo sido imitada, estilo e letra, pelo jovem Joaquim Dias da Rocha Filho, descendente de baianos e nascido entre os pinheiros do Paraná.
Joaquim, alma byroniana, traduziu a “Noiva de Ábidos.” Mas soube adoçar-se, deixando os corsários do mais tempestuoso dos modelos para, num lirismo de candidez e ternura, sussurrar coisas suaves à noiva; e ele, que sonhara um túmulo na Inglaterra junto ao do seu primeiro ídolo, dorme hoje em Santo Antônio da Encruzilhada, num túmulo que mão alguma vai florir.
Bastante falavam os paraibanos da agitada juventude do doutor Randolfo Pena. Já o conheci idoso, mas com uma jovialidade que parecia escorrer-lhe, inesgotável, das belas barbas argênteas.
Procedente de família de Minas que veio a dar um presidente da República, trabalhava ele de graça no hospital de Paraíba, e todas as manhãs, dirigindo-se ao casarão edificado num cimo de colina, detinha se a parolar com o velho Pascoal Grieco.
Estivera em Paris quando moço, dizia que para aperfeiçoar os seus estudos médicos, mas na realidade para divertir-se com as costureirinhas nos bailes do Mabille. Tanto que, de volta, vitimou logo um paciente operado por ele, acentuando no momento o jornal da terra que ser bom dançarino não equivalia a ser bom cirurgião.
No correr do tempo, duas filhas do doutor Rodolfo Pena uniram-se a comerciantes portugueses, e a que escolheu um bacharel da estirpe Valadares pagou caro um marido que lhe desbaratou quase todo o dote com atrizes e coristas do Rio.
Sempre que eu passava pelo palacete do milionário, entulhava-me ele de deliciosas frutas e até uma vez me presenteou com uma tradução muito bichada da ”História dos Girondinos” de Lamartine.
Num bom humor não alterado pelas sua geofagia cada vez maior de fazendeiro, comprazia-se em repelir que já se tornara dono do Vaticano e do Quirinal. Chamavam Vaticano à sua vivenda, porque lá residira um católico fanático, defensor intransigente do papado, o bondoso Leandro Bezerra Monteiro. E o Quirinal, também adquirido por ele, era o solar, um pouco distante, dos Quirino da Rocha Werneck, família decadente no sentido monetário.
Todavia, a criatura mais interessante da Paraíba foi, pelo que me contaram dele, o advogado Jerônimo Macário Figueira de Melo, uma espécie de cura diabólico a crismar com terríveis alcunhas todos os amigos e inimigos e atarantando os magistrados novos à maneira do Rodrigo Otávio, que se refere amplamente a ele num dos seus volumes.
Macário, cearense, andara deblaterando com os Breves e Morais de Mangaratiba e fora depois residir na minha cidade, onde inúmeras bizarrices o tornaram célebre. Atribuíam-lhe manhas e artimanhas de causídico invencível.
Interrogado pelo juiz, num processo, se sabia ler e escrever, respondeu que lia e escrevia mal, de óculos. Arengando no júri, bisava e trisava as palavras, o que lhe estendia infinitamente a parlenda.
Provou, mandando recorrer a exame químico aqui ao Rio, que a fabricação da tinta usada em dado documento era posterior à data do documento, sendo este, portanto, antedatado. Uma testemunha não podia ter visto a agressão que dizia haver seguido de perto, porque entre a morada da testemunha e o local do delito existia altíssima montanha.
Consumidor de Júlio Verne e Paulo de Kock, escapou o Jerônimo Macário da bomba de dinamite que pretendiam despedaçá-lo, e fez erigir uma capela na parte do seu prédio atingida pela explosão, aí gravando a frase: “Só Deus é grande”.
Passou por lá Silva Jardim, em propaganda democrática, e, como quisessem apedrejá-lo em praça pública, abriu-lhe Macário, se bem que monarquista irredutível, a sua casa, para que o orador, garantido por ele, se dirigisse aos paraibanos.
Malbaratou contos e contos de réis nos “a pedidos” do “Jornal do Comércio”, atacando confrades, e, ao morrer, a folha devolveu à família do polemista uma farta importância, adiantada para as publicações
O prazer do sarcasta em acanalhar os demais refluiu para o próprio Jerônimo Macário Figueira de Melo, quando um magistrado lhe perguntou como se chamava e ele articulou ao de manso que Jerônimo Má Cara Figura de… Completava o nome, vernaculizado, o detalhe escatológico da batalha de Waterloo.
Mas encerremos este capítulo com um curioso episódio: em dezembro de 1892 os oposicionistas da comarca, desejosos de derribar o governador Francisco Portela, constituíram uma junta de governo provísório, sob a chefia do político Porciúncula, arvoraram Paraíba em capital do Estado e, arrancando trilhos da Central, procuraram interromper o tráfego ferroviário nas proximidades, a fim de evitar a chegada de tropas inimigas.
Pobre cidade que foi metrópole estadual quarenta e oito horas, à semelhança daquele filho de mercador que, por pilhéria do califa autêntico, foi durante um dia califa de Bagdá! Pobre capital de brincadeira!