Memória Viva

Lembranças da minha cidade natal (7)

Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Bem andou o meu padrinho José Geraldo Bezerra de Meneses não mais retornando a Paraíba depois de se transferir para o Rio. Deixou, assim, de entristecer-se como eu. Porque, quando vou até lá, não reencontro nada, ninguém. Mudaram os caminhos, mudaram as casas, mudaram as caras.

Aproximando-me de Paraíba, não sei bem de que localidade me aproximo e tenho ímpetos de gritar ao motorista que se enganou. Desço do carro e perco-me entre estrangeiros, ainda que me digam eles haverem nascido ali. Não me sinto conterrâneo, contemporâneo de nenhum desses senhores.

Pudesse eu raspar tudo aquilo e fazer reaparecer a minha velha cidade encoberta por todas essas novas fachadas de prédios, de criaturas!

A minha alegria se ressurgissem diante de mim, crescendo sobre tanta coisa intrusa, o teatrinho do Zé Ferreira, onde representavam as peças caipiras de Martins Pena num cenário que ostentava, berrantemente pintado em negro e vermelho, o Vesúvio; a igreja protestante, repleta de metodistas vindos todos os sábados, em hora e tanto de caminhada, do Rio Abaixo, para ouvir o pastor Pedro Batista, mulato gordo, careca e de olhos azuis, que confortava os pobres lavradores com a promessa de terras futuras, de que seriam donos no Céu, com três ou quatro colheitas por ano e sem pagamento de impostos; a loja maçônica, misterioso reduto onde, ainda infante, fui eleito “lobinho”, num estímulo a tornar-me “irmão” chegando à idade adulta; o quiosque de esquina, todo perfurado uma noite, sem que houvesse ferido algum, pelas balas do legendário Trinta-Mortes.

A alegria, porém, seria maior se eu reencontrasse o José Geraldo da minha meninice.

Era o Zezé um nativista fogoso, chamejante. Mas nesse homem, que recebera dos condiscípulos da paulicéia o apelido de José Exagerado, o patriotismo local superava qualquer outro. Paraíba do Sul era tudo para ele.

Dizia não trocar por Versalhes ou Florença aquela cidadezinha mal calçada, empoeirada ou lamacenta, com belas árvores e belos outeiros, mas com edifícios em que os arquitetos haviam sido misérrimos mestres de obras.

Quase chegava a afirmar que o Éden não carecia do Tigre o do Eufrates e ficava, sim, entre o Paraíba e o Paraibuna.

Tupinólogo que era e etimologista dos mais seguros, via-se forçado a reconhecer que o vocábulo Paraíba quer dizer rio mau, inavegável, ajustando-se  a um tal rio cheio de rochas e redemoinhos perigosíssimos..

Quando lhe falavam em “rio da escravidão”, relembrando os horrores da senzala e do eito, desenrolados nas vizinhanças de suas águas, para indignação dos abolicionistas à José do Patrocínio, José Geraldo ainda parecia sentir um ímpeto de furor retrospectivo em relação aos martirizadores de escravos que conhecera na infância.

Mas logo desconversava e punha-se, com finura de advogado, a repetir o que prosadores e poetas haviam dito do deus líquido da região: Alencar, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Azevedo Cruz.

Entusiasta de Silva Xavier, evidentemente não pelos méritos odontológicos deste, mas pela dignidade com que se conduziu diante dos beleguins da rainha maluca, só descansou à hora em que o distrito paraibano de Sant’Ana de Cebolas, ligado à tradição do herói, passou a chamar-se, por proposta sua, Sant’Ana de Tiradentes, e a Câmara oficializou a bandeira dos conspiradores de Vila Rica como pavilhão municipal.

Não esqueço a vibração com que ele, a mim pouco entendido nesses detalhes, descrevia a sugestiva bandeira: branca, com um triângulo equilátero, verde, ao centro, emblema da Santíssima Trindade, em substituição às quintas lusitanas, e o lema latino escolhido pelos montanheses e que procede de Virgílio.

A propósito de quintas lusitanas: insistia José Geraldo em já existir uma língua brasileira (que erro desse mestre de filologia!), indignava-se contra quantos queriam escrever à moda lisboeta ou portuense e, tendo pele rósea, olhos azulados e cabelos quase louros, declarava-se caboclo genuíno, extasiando-se ao ver estampas que representassem índios de batoque no beiço.

O ótimo Zezé advogou honestamente ali, e lembro haver eu encontrado em seu escritório um descendente do marquês de São João Marcos, do fidalgo que iniciara a fundação de Paraíba, construindo (começavam sempre assim aqueles povoados) uma capela, consagrada a Nossa Senhora da Conceição e aos apóstolos São Pedro e São Paulo.

Fugia o remanescente da gloriosa estirpe ao torvelinho das grandes cidades e, como que movido ainda pelo gosto da aventura que impelira o Caçador de Esmeraldas, seu antepassado, a estuprar sertões, pensava em fazer-se cacique de tribo lá para as bandas da serra do Roncador.

Estudara farmácia, mas acabara abandonando boiões e frascos de boticas civilizadas para recorrer apenas ao que classificava de botica do selvagem, conhecendo mais do que ninguém todas as plantas do pouco dispendioso herbanário que é a floresta e movendo-se através das selvas mais intricadas sem se transviar nunca, orientado pela segura carta topográfica do instinto.

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