Memória Viva

Lembranças de minha cidade natal (23)

Postado por mlsmarcio

Por Agripino Grieco

Meu cunhado José Ghiaroni deixou cedo os parentes na Itália e passou a correr meio mundo. Sua mãe, a aferir por um retrato que ele me mostrou, era belíssima. Do pai falava com certo rancor, como de um carrasco da sua sensibilidade de menino.

Alto, robusto, possuía o José algo de Máximo Górki no feitio da cabeça e os mesmos instintos de vida errante do escritor russo.

Deu-me a ler, ali por 1910, o esboço de um seu livro de memórias, e tive a impressão de um romance de aventuras, com leves toques entre o pitoresco e o picaresco.

Tornara-se mecânico, mais por instinto que em consequência de técnica esforçada.

Era dos que adivinham coisas, acertando de preferência quando não obedecem a estritas leis científicas.

Pena é que fosse mudável de temperamento e quase sempre incapaz de persistir até à realização definitiva.

Esteve em Paris, encantando com seu frenesi de idéias o cavalheiresco diplomata Sousa Dantas, e em Buenos Aires meteu-se logo em rodas de poetas e romancistas, sendo que o maior destes o converteu em herói de uma narração que despertou grande interesse por lá.

Gostava imenso de declamar Stecchetti e guardou até à morte, legando-o a um seu filho, o modesto exemplar dos versos do falso tísico de Bolonha, exemplar que eu comprara num sebo e lhe oferecera.

Tivera o olho esquerdo avariado por uma fagulha ao trabalhar numa forja, mas conservava intatos os dentes de lobo com que se atirava a todos os manjares numa fúria pantagruélica.

Andarilho, era homem para vir em horas, apesar dos pés espalhados, de Barra a Belém, não por miséria e sim por prazer esportivo.

Galgava montanhas altíssimas com uma rapidez que eu, bem mais jovem, não teria ao subir colinas suaves.

Atirou às águas do Paraíba muitos dos seus inventos falhados, insinuando então meu pai que isso complicaria ainda mais um rio dado como inavegável.

Mas algumas excelentes coisas deixou ele ultimadas e que outros, industriais industriosos, aproveitaram, especialmente um novo processo de ornamentação em couros que garantiu polpuda fortuna a dois patrícios seus.

Dizia ele, brincando, ter inventado um aparelho para medir maluquice, e acrescentava que pouca gente (nem ele!) desejaria submeter-se às provas desse aparelho.

O que nunca vi foi alguém que tivesse capacidade superior à do Ghiaroni ao catequizar hoteleiros para refeições a crédito. Um deles, sabendo-o amigo das boas canjas, despojou todo um galinheiro seu a fim de nutri-lo durante meses.

Num restaurante da rua da Assembléia, encontrei o José em companhia de outros italianos, figuras típicas da colônia: um bebedor de absinto que se declarava falsamente sócio da firma Ansaldo; o gravador Cattaneo, de falas doces; o cenógrafo Osvaldo, colaborador do Marroig em préstitos carnavalescos; o cientista Morone, que ainda sobrepunha a alquimia à química e a astrologia à astronomia.

Curioso é que meu cunhado, apesar de todas essas peregrinações meio sonambúlicas pelo planeta, retornasse sempre à família, como se, em meio a tantas peripécias, se conservasse invariavelmente burguês.

Parecia ter nascido para marujo ou desbravador de desertos, mas no fundo era apenas um pobre homem fascinado pela mulher e pelos filhos.

Gostava da mudança de cenários, de tipos, e acabava regressando sempre ao casinholo de Paraíba, onde nunca se entendeu bem com seu sogro, que era inação irredutível, enquanto José Ghiaroni expandia aos gritos o seu horror a tudo quanto fosse sociedade secreta.

Homem bizarro este filho da cidade de Brescia! Vi-o certo dia derrubar, com um soco apenas, o atleta Molinari, campeão de boxe, e vi-lhe também as lágrimas quando uns cegos espanhóis executavam na rua trechos da “Favorita” de Donizetti…

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