Em 1750, a Espanha reconhece a falência do Tratado de Tordesilhas e assina o de Madri, que dá direito de posse a quem, de fato, tivesse ocupado as áreas em disputa. Nesta época Portugal já tinha uma ideia razoável da importância da Amazônia. O primeiro capitão-geral da Província do Grão-Pará a ser nomeado depois do Tratado de Madri manda fundar a Capitania de São José do Rio Negro, em 3 de março de 1775, origem do Estado do Amazonas, e golpe final nas pretensões espanholas de retomar a Amazônia.
A grande figura deste período é Manuel da Gama Lobo d’Almada, governador português vindo da África. Militar de espírito progressista, Lobo d’Almada tratou com vigor os espanhóis nas disputas surgidas na comissão de limites nomeada pelo Tratado de Madri, introduziu o gado na região, estabeleceu fábricas de tecidos, olaria, ancoradouro e estaleiro para construção de embarcações em Manaus. E, mais importante que tudo isso, pela primeira vez tratou os indígenas com humanidade.
A fama de Lobo d’Almada, contudo, despertou inveja entre os governantes de Belém, aos quais a Capitania do Rio Negro era subordinada e, apesar de bom administrador, foi acusado de corrupção e morreu em desgraça. Seus sucessores mergulharam a nova capitania em decadência física e moral. No começo do século 19, o nome de Lobo d’Almada é publicamente reabilitado. Mas então a história da Amazônia não é apenas a de uma briga pela posse da terra. Ideias mais avançadas e interesses maiores entravam em cena. E o Pará é, inicialmente, o palco dos novos acontecimentos.
Em agosto de 1823, o Brasil já era independente de Portugal. A Amazônia não. No dia 10 chega a Belém do Pará o almirante inglês John Pascoe Greenfeld trazendo as notícias da independência e exigindo das autoridades portuguesas locais o juramento de obediência à coroa brasileira. O fato vai disparar acontecimentos que resultam na Cabanagem, o “mais expressivo movimento de massas de quantos têm assinalado a evolução política, econômica e social do Brasil”, segundo o tenente-coronel Gustavo de Morais Rego Reis, historiador e ex-integrante do Estado-Maior das Forças Armadas brasileiras.
A pronta submissão dos portugueses de Belém poderia ter parecido suficiente para acalmar os ânimos da população brasileira exaltada com a independência. Mas essa excitação era muito mais poderosa. A população da Província do Grão-Pará (quase toda a atual Região Norte), estimada em não mais de 100 mil pessoas, excluindo-se os índios ainda isolados, era dividida nitidamente. De um lado, a população branca, onde se destacavam portugueses e seus descendentes, grandes proprietários de terras e de escravos, donos da maioria dos cargos públicos. De outro, a maioria: caboclos humildes e índios mansos, moradores da beira dos rios e do interior.
Depois do violento período de ocupação a que a região fora submetida, essa população de descendentes dos primitivos habitantes da terra parecia viver em paz com o governo branco. No fundo, porém, como os acontecimentos iriam revelar, tinha por ele o ódio acumulado nos três séculos de exploração e massacre de que fora vítima, direta ou indiretamente.
A independência e a derrota política dos portugueses desencadeia na capital uma série de brigas entre as facções brancas. E acaba despertando aquele ódio acumulado, quando uma das facções, tentando representar idéias mais avançadas de liberdade, convoca para apoiá-la a massa humilde dos campos, os moradores do interior, os que viviam em cabanas de palhas, os cabanos.
Eduardo Francisco Nogueira, cearense da freguesia de Aracati, tinha ido para o Pará com treze anos, fugindo da grande seca de 1827. A história o conhece como Angelim, nome de uma madeira amazônica “forte e rija, como o seu caráter e decisão”, segundo os companheiros que o apelidaram. Era um moço aloirado, de olhos verdes, que fora comerciante malsucedido e fazendeiro sem escravos.
Em 1835, estava envolvido numa das muitas lutas que seus amigos de idéias moveram contra sucessivos presidentes da província, por considerá-los favoráveis aos portugueses. No dia 2 de agosto, para depor o presidente da província, tinha sob comando pessoal ou de amigos entre 2 mil e 3 mil cabanos. O presidente era português e as notícias da rebelião levaram-no a pedir o apoio dos comandantes dos navios estrangeiros ancorados no porto de Belém. Este gesto só contribuiu para dividir ainda mais os campos de luta. De um lado ficaram os naturais da terra, pobres e incultos; de outro, os europeus, os ricos e as classes mais esclarecidas.
Os dois exércitos inimigos eram espelho desta divisão. Enquanto as fileiras do marechal eram formadas por mercenários alemães de uma antiga tropa imperial que ele trouxera do Rio de Janeiro e reforçada por portugueses e ingleses dos navios de guerra no porto, as de Angelim eram de camponeses sem soldo e rações. E para dar um aspecto de farda às suas rudes roupagens, eles tingiam em caldeirões de água fervida com cascas de um arbusto, o murici, que lhes transmitiam sua cor avermelhada.
No dia 22 de agosto, depois de uma série de lutas do tipo guerrilha contra as forças do governo, Angelim e suas forças tinham ocupado a cidade, e o marechal português se retirava com 5 mil refugiados para os onze vasos de guerra ancorados ao largo. Estes, uma vez carregados, se despediram com nove dias de fogo, nos quais dispararam 22 mil tiros de artilharia sobre Belém.
O bombardeio não afetou o entusiasmo do exército camponês. Angelim foi aclamado presidente da província. Estava, porém, diante de graves problemas: a revolta mobilizara interesses e ódios das camadas mais exploradas da sociedade e que não eram exatamente os seus. Sem saber como ou para onde dirigi-la e sem que essa massa tivesse seus próprios líderes, a revolução espalhou-se pela Amazônia. Dos seus navios, o marechal narrava ao poder central “a revolta dos escravos”, “espantosa carnificina nos brancos” e pedia reforços para sufocar a revolução.
Os reforços chegam a 9 de abril de 1836 com os sete navios de guerra do brigadeiro Francisco Soares Andréia. E a Cabanagem entra em seu período mais longo e sangrento, o da repressão. As tropas de Angelim deixam Belém em março e se dispersam. Ele e outros líderes são presos em outubro. E o brigadeiro começa a “pacificação”: suspende as garantias individuais, militariza as províncias, despreza todas as formalidades legais de processo e prisão para impor a lei e a ordem. “É sabido o estado de furiosa anarquia a que chegou esta malfadada província, arrastada ao abismo pela liberdade, ou antes, pela licença de imprensa, pela impunidade seguida e sistemática de todos os crimes, especialmente dos que se encaminhavam para a subversão da ordem (…)”
O barão de Guajará, historiador da época, explicava: “Pareciam de rigor exagerado estas medidas, mas para os grandes males que flagelavam a província só remédios enérgicos podiam convir. Havia muito tempo que a subversão moral contaminava a sociedade paraense, perturbando de contínuo o sossego geral, a ação benéfica da lei e da autoridade. A população vivia em completa desordem e entregava-se à devastação, ao morticínio, ao roubo, a todos os horrores da mais desenfreada anarquia”.
Foram três anos de repressão cruel. Conta o barão, que não gostava dos cabanos (seu pai foi morto por eles): “Houve quem considerasse padrão de glória trazer rosário de orelhas secas de cabanos”. O mesmo barão estimou em mais de 30 mil mortos as vítimas da Cabanagem, a maioria no período repressivo. Quando a pacificação acabou, a província tinha sua população civilizada reduzida em quase um terço.
Em 1840, Angelim é mandado para o Rio de Janeiro, em exílio de dez anos. Em 1851, volta ao Pará. Em julho de 1882, ele morre, depois de trinta anos de vida pacata em Belém. Nesta época, o centro da história da Amazônia sai de Belém para o desconhecido Acre. O motivo desse deslocamento é, basicamente, uma árvore produtora de goma elástica, velha conhecida dos primitivos habitantes do Novo Mundo. “Uma árvore chamada pelos naturais de Hhevé”, escreveu o francês Charles Marie de La Condamine à Academia de Ciências de Paris, anunciando a “Hevea brasiliensis”, ou seringueira.