Memória Viva

Manaus350: O primeiro ciclo da borracha

Rubber tapper scoring the bark of a wild rubber tree, with latex oozing out. Alto Juruá Extractive Reserve, Acre, Brazil Project number: BR0090
Postado por Simão Pessoa

A partir da terrível seca que assolou o nordeste brasileiro em 1877, grandes contingentes de mão de obra deslocaram-se para o interior da Amazônia intensificando a exploração da borracha, até então praticamente restrita ao Pará. O Amazonas tornou-se a alternativa de sobrevivência dos migrantes nordestinos e converteu-se no Eldorado de exploradores de diferentes procedências, atraídos pelas perspectivas de enriquecimento fácil. O seringal era o destino de quase todos os nordestinos. Alguns buscavam ocupação em Manaus, fixando-se quase sempre nas áreas periféricas às margens dos igarapés e ajudando a formar os arrabaldes distantes – Cachoeirinha, São Raimundo, Tocos, Educandos, Colônia Oliveira Machado.

A vida econômica da região começa a prosperar com a exportação de castanha, cumaru, cacau, guaraná, urucum, couro e o látex extraído da seringueira. Nessa época, a borracha natural ainda era utilizada apenas na fabricação de sondas, brinquedos e artefatos. O advento da vulcanização coincide com a descoberta dos grandes seringais nativos no rio Purus. A cidade cresce, lentamente, impulsionada pelo desenvolvimento do comércio extrativista da região e começa a experimentar anos de prosperidade, acentuadamente após 1888, quando o francês Dunlop, utilizando novos experimentos com a borracha, descobre o pneumático para bicicletas, que mais tarde seria aplicado nos automóveis pelos irmãos norte-americanos Michelin.

No Rio de Janeiro é proclamada a República Federativa do Brasil, em 15 de novembro de 1889, extinguindo-se o Império. A Província do Amazonas passa a ser Estado do Amazonas, tendo como capital a cidade de Manaus. A borracha, matéria-prima das indústrias mundiais, é cada vez mais requisitada e o Amazonas, como principal produtor, orienta sua economia para atender à crescente demanda de mercado. Trabalhadores de diferentes nacionalidades – brasileiros, portugueses, espanhóis, italianos, alemães, sírios, libaneses, judeus – formavam os fortes elos da cadeia produtiva que caracterizaria o ciclo da borracha no Amazonas, fazendo o intercâmbio das atividades econômicas entre Manaus e os seringais.

Advogados, médicos, jornalistas, professores, engenheiros, quase todos formados nas faculdades do Nordeste, contribuíram para fortalecer a nossa elite cultural e política, que se tornou ainda mais expressiva a partir da proclamação da República. Com a instituição da nova forma de governo, oficiais da escola positivista que marcou o pensamento republicano, destacados para ocupar importantes cargos, radicaram-se em Manaus, o mesmo acontecendo com executivos e técnicos de empresas inglesas e americanas concessionárias de serviços públicos, importadores, exportadores, construtores, artistas e operários europeus contratados para trabalhar nas grandes obras de arquitetura e urbanismo que mudaram a fisionomia de Manaus.

Quando foi surpreendida pelos grandes lucros da borracha, Manaus era pouco mais do que uma aldeia com foros de cidade e sem expressão econômica. Mas reunia alguns fatores que lhe permitiriam assumir a posição de mediadora das relações de comércio e navegação entre os seringais e os principais portos do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos, e tornar-se o centro dos negócios de exportação de borracha na banda ocidental da Amazônia.

Sua localização estratégica no centro geográfico da Amazônia e na confluência do rio Negro com o rio Solimões, e a condição de capital da Província do Amazonas, recentemente conquistada, lhe permitia tomar decisões administrativas antes reservadas ao governo do Grão-Pará e centralizadas na cidade de Belém.

Além disso, Manaus contava com uma linha regular de navegação a vapor, ligando a cidade a Belém e aos altos dos rios Negro, Madeira, Purus e Solimões, chegando até o porto de Nauta, no Peru. Além disso, D. Pedro II havia aberto os portos do rio Amazonas à navegação internacional.

O sistema de exploração econômica da borracha remunerou regiamente o capital internacional que o estimulou e controlou, mantendo subordinado aos seus interesses as cotações da matéria-prima brasileira nas bolsas de valores de Londres e de Nova York, bem como o grande leque de oportunidades que enriqueceram os investidores regionais – seringalistas, importadores, exportadores, donos de casas aviadoras, corretores de câmbio e prestadores de outros serviços.

Ao seringueiro, com exceções muito raras, restou a ilusão das libras esterlinas que brilhavam à luz das porongas, nas suas madrugadas de sonho e sacrifício. A parcela de lucros que se conseguiu reter na região concentrou-se maciçamente em Belém e Manaus, para onde também convergiram as oportunidades de educação, saúde e mobilidade social.

No rendoso negócio da borracha, o Brasil era um sócio exigente. Da região amazônica saiu dinheiro para pagar o serviço da dívida externa, salvar lavouras de café, construir estradas de ferro, iluminar o Rio de Janeiro e lá fazer campanhas de saúde pública e obras de saneamento.

Diz o professor Roberto Santos, na sua “História Econômica da Amazônia”: “Em 1913, o deputado federal Luciano Pereira, representante do Estado do Amazonas, denunciava à Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, que, desde 1852, a região amazônica havia entregue ao governo federal mais de 1 milhão de contos de réis, enquanto as despesas da União na Amazônia não haviam excedido 250 mil contos. A proporção era de 4 para 1 entre receita e despesa, sendo esta última realizada principalmente em vista dos próprios serviços federais de arrecadação”.

Entre 1851 e 1912, período que aproximadamente corresponde ao referido pelo deputado Luciano Pereira, as exportações de borracha da Amazônia totalizaram 4.262.371 contos de réis. Infere-se, portanto, que a União drenou para fora da Amazônia cerca de 75% do valor das exportações realizadas pela região em 61 anos de trabalho, o que levou o mesmo parlamentar a fazer novas denúncias à Câmara dos Deputados em 1914, transcritas também por Roberto Santos:

“Se o Governo Federal imagina que a Amazônia deve fazer parte do Brasil apenas para lhe pagar impostos, não deverá espantar-se se os habitantes desta região vierem a achar um dia que semelhante honra lhes está saindo muito cara e tentarem constituir-se em nação independente, para poder, desta forma, aplicar em seu próprio benefício os sacrifícios que fazem atualmente para pagar os caprichos da duplicação da linha da Serra do Mar, da iluminação feérica do Rio de Janeiro, das vilas militares e operárias, etc. Se na Federação brasileira os benefícios são somente para alguns, e os encargos para outros, é mais justo, mais moral, mais decente terminar com esta Federação, de modo que cada Estado viva por si próprio e como puder”.

Favorecida pelos surpreendentes lucros da borracha, Manaus fez uma grande revolução arquitetônica e urbanística. Drenou e aterrou igarapés, construiu pontes metálicas, fez grandes investimentos em serviços básicos, passando a usufruir dos recursos que a moderna tecnologia oferecia ao mundo civilizado daquele tempo – iluminação e bondes elétricos, magnífico porto flutuante, água tratada e sistema de esgotos. A imponência da arquitetura oficial e dos casarões senhoriais marcava o cenário de uma cidade cosmopolita onde se misturavam hábitos, fisionomias e interesses muito diferentes.

“Em que pese o cosmopolitismo desta Manaus, onde em cada esquina range o português emperrado ou rosna rispidamente o inglês e canta o italiano, a nossa gente ainda os suplanta com as suas belas qualidades nativas de coração”. A afirmativa é do escritor Euclides da Cunha, que viveu em Manaus entre 1904 e 1905, e descreveu-a como “uma grande cidade estritamente comercial, de aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses de sapatos brancos (…), meio caipira meio européia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e o cosmopolitismo exagerado põe ao lado do yankee espigado (…) o seringueiro achamboado”.

A praça do Comércio era o centro comercial e financeiro da cidade. Ao seu redor ficavam as grandes casas aviadoras, os bancos, as corretoras, as firmas inglesas que controlavam as importações, as exportações, a navegação e os serviços públicos. No canto da rua Demétrio Ribeiro ficava o “Café dos Terríveis”, e no canto da rua Tamandaré, a “Bolsa Universal”, pontos de encontro dos boêmios e dos homens de sucesso. Ao lado da “Booth Steamship”, do mesmo grupo da Manáos Harbour, concessionária dos serviços do porto, ficava a estação dos bondes da Manáos Tramways & Light Company. Ao rigor do horário britânico, os bondes cortavam as ruas e avenidas da cidade – amplas, arborizadas, calcetadas com pedras portuguesas, iluminadas com lampiões de arco voltaico.

Em 1892, inicia-se o governo de Eduardo Ribeiro, que teria um papel importante na transformação da cidade, através da elaboração e execução de um plano diretor para coordenar o seu crescimento. Esse período (1890-1910) é conhecido como fase áurea da borracha porque a cidade ganha o serviço de transporte coletivo de bondes elétricos, telefonia, eletricidade e água encanada, além de um porto flutuante, que passa a receber navios dos mais variados calados e de diversas bandeiras.

A “Paris da Selva”, como passou a ser conhecida, inicia os anos de 1900 com uma população em torno de 20 mil habitantes, avenidas retas e longas, ruas calçadas com granito e pedras de liós importadas de Portugal, praças e jardins bem cuidados, belas fontes e monumentos, um teatro suntuoso, hotéis, cassinos, estabelecimentos bancários, palacetes e todos os requintes de uma cidade moderna. Por trás dos indicadores do progresso, acomodava-se uma relação de extrema dependência da economia amazonense aos negócios da borracha.

A partir da década de 1910, a economia do Amazonas entrou em declínio, deixando exposta a sua extrema fragilidade. Apoiada na exportação da borracha natural, a região não tinha meios para competir com o sistema de produção racional dos seringais plantados pelos ingleses em suas colônias asiáticas, que conquistava o mercado internacional com produção em larga escala e preço cada vez mais baixo. As alternativas econômicas, circunscritas ao extrativismo, não iam além da exploração de outros produtos primários (madeiras, óleos e fibras vegetais, castanha, pescado e peles de animais silvestres), exportados a baixos preços e em grau mínimo de beneficiamento, devido à escassez de capitais e de recursos tecnológicos.

O cenário econômico-social era cruel, resultando em falência generalizada, desemprego galopante, crise moral e instabilidade política. Seringueiros desencantados superlotavam os porões dos navios do Lloyd, tentando regressar ao nordeste. As finanças estaduais apresentavam saldos negativos desoladores agravados por dívidas enormes, resultante da imprevidência e da insensatez de governantes que não souberam fixar limites para os gastos públicos e contraíram vultuosos empréstimos externos, durante o período em que as receitas da borracha excediam todas as expectativas.

Manaus só conseguiu resistir aos efeitos cruéis da estagnação econômica porque o seu lastro cultural e a sua consciência política começaram a se formar bem antes da sua estreita e curta convivência com a riqueza. Em 1909, quando surgiram os primeiros sinais de crise, foi criada a primeira universidade brasileira denominada “Universidade Livre de Manáos”.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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