Memória Viva

Manaus350: O segundo ciclo da borracha

Soldados da Borracha desembarcando em Xapuri (AC)
Postado por Simão Pessoa

No final do século 19, quando ocorreu na Amazônia o primeiro movimento de imigração vindo do Nordeste do Brasil provocado pelo início da demanda das indústrias norte-americanas e europeias pela borracha, ocorreu um novo choque de civilizações entre os índios isolados e os novos invasores. Aproveitando-se dessas escaramuças, os grandes seringalistas aproveitaram para se apropriarem de áreas enormes de floresta visando extrair a matéria-prima para a borracha – o látex das seringueiras.

Os índios nas áreas dos rios Juruá e Purus tentaram defender as terras deles, mas, tendo só arco e flecha, não conseguiram. Os novos imigrantes fizeram as chamadas “correrias”: eles juntavam uns 50 homens armados com espingardas e “corriam” nas margens dos rios, assaltando as aldeias indígenas e colocando, literalmente, os nativos pra correr.

Sendo geralmente solteiros, os nordestinos matavam os homens e raptavam as mulheres e crianças indígenas para viver com eles, no papel de escravas sexuais ou empregadas domésticas. Assim foram dizimadas milhares de tribos. Muitos índios também morreram de doenças contagiosas, como tuberculose e sarampo, que não existiam antes na região e foram trazidas pelos novos imigrantes. A mão de obra dos índios escravizados foi explorada para recolher o látex e construir “estradas de seringas”. Esse ciclo da borracha que fez enriquecer as cidades de Manaus e Belém foi encerrado nas primeiras décadas do século 20.

Nesse meio tempo, os ingleses tinham plantado na Malásia imensas extensões de sementes de seringueiras supostamente contrabandeadas, desenvolvendo técnicas de seringal de cultivo que levaram à ruína o sistema dos seringais nativos, onde áreas imensas de florestas eram exploradas de maneira primitiva, com grande sacrifício humano e altos custos.

No ano 1913, a produção da Malásia superou pela primeira vez a do Brasil. Em seguida, muitos seringais foram abandonados e muitos seringueiros voltaram ao Nordeste. Os que ficaram na região começaram a se dirigir para as sedes dos municípios, iniciando a favelização deles. O segundo ciclo da borracha ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses, que eram aliados dos alemães, ocuparam os seringais da Malásia, privando os países aliados daquela fonte de matéria-prima.

Em dezembro de 1941, logo após o ataque japonês à base americana de Pearl Harbour, no Havaí, os Estados Unidos declararam guerra aos japoneses, que já dominavam o sudeste asiático. A 2ª Guerra Mundial estava entrando em sua fase mais crítica. O presidente Getúlio Vargas, depois de muitas pressões, decide apoiar os países aliados (Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e França). Preocupados com as matérias-primas estratégicas, entre elas a borracha vegetal, que estava sendo cultivada pelos países do Sudeste Asiático (sob domínio do Japão), e percebendo que poderiam ter seu suprimento cortado, os Estados Unidos criaram alternativas para evitar o colapso eminente do abastecimento do látex.

Assim, vários acordos foram assinados entre o Brasil e os Estados Unidos, os chamados “Acordos de Washington” (1942-1946), que exigiam, entre outras coisas, que o Brasil abastecesse as nações aliadas com toda a produção do insumo, bem como todo o excedente, durante cinco anos. Para isso, o governo brasileiro precisaria aumentar o contingente de seringueiros na Amazônia brasileira, de onde provinha toda a produção nacional. Uma campanha nacional foi criada para recrutar os milhares de homens que seriam necessários para suprir a meta de exportação do látex para os Estados Unidos.

Como o interesse dos brasileiros não foi a que o governo esperava, o presidente Getúlio Vargas resolveu, então, equiparar todos aqueles que tivessem interesse de ir para a Amazônia aos militares convocados para a 2ª Guerra Mundial. Assim foi criada a Comissão Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (CAETA), por meio do Decreto-Lei n.º 5.831 de 14 de setembro de 1943, e o Serviço Especial de Saúde Pública, que ficaria responsável pelo recrutamento desses soldados.

Aproximadamente 65 mil “Soldados da Borracha” participaram dessa batalha, recrutados em sua maior parte no Nordeste (30 mil só do Ceará), no interior da Amazônia e nas demais regiões do país, atendendo ao apelo do governo brasileiro. Esses “soldados” enfrentaram toda a sorte de obstáculos, tais como a difícil aclimação, o despreparo no trato com a seringa, a desorganização dos seringais e das linhas de suprimento, a falta de transporte e de assistência médica, decorrentes, sobretudo, da falta de organização e da desordem administrativa dos órgãos oficiais na condução das operações. Eles não enfrentaram alemães nem japoneses. Lutaram contra os males tropicais, a fome, a escravidão e o abandono. Uma reportagem publicada na época, pelo jornal New Chronicle, de Londres, já denunciava que 31 mil migrantes morreram nesse esforço para conquistar matéria-prima para o arsenal do Tio Sam. Só seis mil conseguiram voltar para casa.

Os nordestinos arregimentados não tinham a menor ideia do que era o trabalho nos seringais. Adoeciam e morriam com facilidade. Demoravam a se acostumar à solidão e à lei da mata. A Campanha da Borracha uniu o útil ao agradável. Em um ano de seca, encontrou no Nordeste um exército de flagelados pronto para partir, ou melhor, fugir. Nos postos de arregimentação, um exame físico e uma ficha selavam o compromisso. Para abrigar tanta gente – às vezes mil voluntários em um único dia –, o jeito foi construir alojamentos, como a hospedaria-modelo, de nome “Getúlio Vargas”, em Fortaleza. Lá, eles passavam a viver até o dia da viagem, sob um forte regime militar.

A missão do exército de Getúlio Vargas não era segredo para ninguém: salvar os aliados da derrota para os países do Eixo. A propaganda dirigida e veiculada nos meios de comunicação trazia promessas mirabolantes e era chamariz para os desavisados. No discurso, os voluntários para a extração da seringa eram tão importantes quantos os aviadores e marinheiros que lutavam no litoral contra a pirataria submarina. Nas esquinas do país, retratos de seringueiros tirando ouro branco das árvores com um simples corte. “Tudo pela Vitória”, “Terra da Fortuna”, eram as palavras de ordem. Mas foi Getúlio Vargas, em discursos pelo rádio, que melhor convenceu os recalcitrantes: “Brasileiros! A solidariedade de vossos sentimentos me dá a certeza prévia da vitória”.

Para garantir a adesão, se prometia um prêmio para o seringueiro campeão. O maior fabricante de borracha em um ano levaria 35 mil cruzeiros. Os voluntários ganhavam um enxoval improvisado – uma calça de mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alparcatas de rabicho, uma caneca de flandres, um prato fundo, um talher, uma rede, uma carteira de cigarros Colomy e um saco de estopa no lugar da mala. Eles iam em carrocerias de caminhões, em vagões de trem de carga ou na terceira classe de um navio até Belém e de lá rumavam para os vales do Purus e Juruá.

A viagem do exército da borracha podia demorar mais de três meses, incluindo aí paradas à espera de transporte. Pior que o desconforto, só o perigo de ir a pique no meio do mar. Afinal, aqueles eram dias possíveis de ataque de submarino alemão. Para prevenir, além da companhia de caça-minas e aviões torpedeadores, os nordestinos recebiam colete salva-vidas. Em caso de naufrágio, havia nos bolsos internos uma pequena provisão de bolachas e água. Em caso de captura, uma pílula de cianureto para escapar da vergonha de uma prisão inimiga.

Um arigó que se preze traz cicatriz de briga com onça, flecha de índio, bala de patrão ruim e histórias de malária, febre amarela, beribéri, icterícia e ferimentos da árdua atividade na selva. Cearenses, paraibanos, pernambucanos, baianos e maranhenses aprenderam, no susto, a escapar dos perigos insuspeitáveis da floresta amazônica. Mutucas, meruins, piuns, borrachudos e carapanãs fizeram banquete dos novatos. Dos portos de desembarque, a tropa foi entregue aos patrões seringalistas.

Nada valia do que foi prometido por Getúlio Vargas: cuidados de pai e fortuna fácil. A lei era da bala, surras, ameaças, mortes. O patrão controlava a comida, a roupa, o transporte, o remédio. O exército cativo era enviado para os seringais para extrair o máximo que pudesse de borracha. Só no ano de 1945, os arigós aumentaram o estoque de borracha natural dos aliados de 93.650 para 118.715 toneladas. Castigo para desertor era a morte. Alegria só nos fins de semana, nas festas de barracões, quando, na falta de mulher, dançava homem com homem. As danças folclóricas nordestinas começaram ali.

A Rubber Development Company (RDC) era uma empresa norte-americana localizada em Manaus, que comprava toda a produção amazonense de borracha. Esta fábrica de beneficiamento de borracha funcionava na antiga ilha do Monte Cristo, hoje aterrada e situada no final das ruas dos Andradas e Barés. Nessa época, imensos aviões americanos, os anfíbios “Clippers” ou “Catalinas”, pousavam ou aquatizavam no Rio Negro, entrando pelo Igarapé dos Educandos, até a ilha do Monte Cristo, onde carregavam toda a produção de borracha e levavam para os Estados Unidos.

É evidente que esses sacrifícios e esforços não foram em vão. A meta brasileira de suprir os aliados com borracha amazônica foi cumprida. Criaram-se instrumentos institucionais válidos, como o Banco da Amazônia, o Instituto do Norte, o Serviço Especial de Saúde Pública, os territórios federais de Guaporé (Rondônia), Rio Branco (Roraima) e Amapá, além da construção do aeroporto de Ponta Pelada, em Manaus.

Até então, a capital amazonense recebia apenas vôos comerciais de “Catalinas” (um tipo de avião anfíbio, batizado pela população de “Pata Choca”, devido seu estranho formato), da Panair do Brasil, que aquatizavam em uma enseada existente no bairro de Educandos. A feira-livre que surgiu em torno do “aeroporto improvisado” ficou conhecida como “Feira da Panair”.

Em 1946, o governo federal transfere de Rio Branco (AC) para Manaus a Escola de Iniciação Agrícola do Amazonas, que, posteriormente, passou a ser chamada de Ginásio Agrícola do Amazonas. Localizado nas proximidades do aeroporto de Ponta Pelada, em uma parede de pedra às margens do rio Negro, o colégio logo foi batizado pela população de “Paredão”, e a rodovia que dava acesso ao mesmo ficou conhecida como “Estrada do Paredão”, atual avenida Presidente Kennedy.

Até então, a expansão urbana da cidade na zona sul estava concentrada na Cachoeirinha, em Educandos, e na “Boca do Imboca”. Os novos imigrantes começam a ocupar os terrenos disponíveis ao longo da “Estrada do Paredão”, dando início a uma nova comunidade. O padre Antônio Plácido, então pároco da igreja de Educandos, foi chamado pelos invasores para oficializar o nome do bairro de Santa Luzia, que passou a ser a padroeira do lugar. A cidade começou a se expandir para a região leste.

Muitos anos depois, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada para apurar a situação dos trabalhadores enviados à Amazônia no período de 1942 a 1945. A CPI da Borracha foi dissolvida sem conclusão. O que a CPI não disse em seu relatório é que, com o fim da guerra e a fabricação da borracha sintética, a extração desvairada de látex era dispensável e os aliados não precisavam mais do Brasil, muito menos dos arigós. Eles ficaram perdidos na mata quando a guerra acabou, esperando um resgate que não veio nunca. Manaus voltou a experimentar o mesmo marasmo econômico das três décadas anteriores.

Diante da terrível crise estrutural da economia e sem meios para revertê-la, a Amazônia buscou o apoio institucional do governo federal, propondo a formulação de políticas e a elaboração de planos e projetos que dariam suporte às tentativas de recuperação e valorização da economia regional. No dia 6 de janeiro de 1953, o presidente Getúlio Vargas criava a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), de acordo com o artigo 199, parágrafo único, da Constituição Federal de 18 de setembro de 1946, que resultou da aprovação de projeto de lei do deputado federal amazonense Leopoldo Peres, destinando 3% do orçamento anual da União Federal para promover a valorização econômica da Amazônia. A SPVEA nunca saiu do papel.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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