Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e pesquisadora do CNPq, Patrícia Sampaio fez doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Suas áreas de pesquisa são história indígena e do indigenismo no Brasil e da escravidão africana na Amazônia. Ela tem se valido de blogs e sites para publicar uma série de histórias consideradas pouco convencionais. Sua proposta é recuperar a vida de personagens anônimos, pessoas comuns que, aparentemente, nada fizeram de excepcional; apenas existiram. Aqui, ela conta a participação dos cabanos na história de Manaus:
Era domingo e a população de Manaus se preparava para as obrigações próprias do dia santificado. Não esperavam pela surpresa inaudita. Do porto, emergiam as figuras dos 800 cabanos que desembarcavam para tomar a cidade comandados por um certo Francisco Bernardo de Sena. Era 6 de março de 1836. Poucos sabem que Manaus foi ocupada duas vezes durante a Cabanagem, rebelião popular multifacetada, de grandes proporções e ainda muito subestimada, ocorrida na Amazônia do século XIX.
A tropa cabana que desembarcou em Manaus fazia parte de uma força muito mais ampla, comandada por Apolinário Maparajuba, que estava em plena movimentação rio acima, apesar das tentativas de bloqueio feitas pelas forças legais no Baixo Amazonas. Francisco Bernardo, homem negro e experimentado em muitos combates, era uma liderança importante na hierarquia de comando cabano e tinha sob suas ordens cerca de 2.000 homens. A história pouco conhecida dos bastidores desta ocupação é de impressionar.
As estratégias cabanas que prepararam a tomada de Manaus repetiram táticas bem-sucedidas e utilizadas em outros lugares. Eles entravam na cidade, misturavam-se discretamente aos moradores, integravam-se ao trabalho nas roças e plantações. Em caso de dúvidas quanto às suas origens, fingiam-se de vítimas das investidas cabanas argumentando que ali estavam em busca de proteção. A aparência física lhes garantia trânsito livre e a credibilidade necessária: eram índios, negros, mestiços de todas as cores que compunham a maioria da população do Pará, “a gente vil e de cor” como quis a crônica tradicional.
Foi assim que Francisco Bernardo esteve em Manaus. Disfarçado (“fingia-se de humilde”), transitou livremente pela cidade estudando o terreno e a disponibilidade de tropas aquarteladas. Naquela manhã de março, não teve dificuldade: ocupou o quartel e a fortaleza, posicionou seus homens em locais estratégicos em terra e deixou parte da tropa em armas nas embarcações, formando um semicírculo em frente à cidade. A ocupação foi tranquila e não houve resistência dos moradores. No dia seguinte, os cabanos dirigiram-se à Câmara para apresentar manifesto em favor do governo de Eduardo Angelim e, em sessão solene, nomearam novos ocupantes para os cargos públicos; todos eram da própria vila.
Durante os seis meses em que Bernardo e sua tropa ficaram em Manaus, até a crônica mais oficial reconheceu seu extremo zelo com o uso dos recursos públicos e habilidade no manejo da língua; era bom com as palavras e, ao contrário da maioria dos moradores, sabia ler e escrever. Porém, Bernardo cometeu um erro; confiou demais no Taqueirinha. Quem era o sujeito? Entre os vários moradores que se aproximaram dos cabanos, este logo conseguiu sua confiança substituindo Bernardo em várias ocasiões. Porém, sua lealdade – como a de outros – era pura dissimulação. Em junho, desentendimentos causados pela prisão de dois homens resultaram em uma descarga da tropa. Bernardo morreu e Taqueirinha, um dos protagonistas do distúrbio, foi imediatamente nomeado pela Câmara para substituí-lo, em nome da legalidade, sendo coberto de elogios enquanto o cabano passou a ser chamado de monstro e facínora.
Alguns cronistas responsabilizaram Taqueirinha e outros moradores pelo conluio na morte do cabano e parece não haver espaço para dúvidas quanto a isso. Com liderança desse quilate, não causa surpresa que, em agosto, os últimos cabanos fossem expulsos de Manaus.
A força desta história dimensiona o enorme silêncio que ainda envolve experiências de homens e mulheres negros na Amazônia onde o senso comum, o preconceito e a carência de pesquisas cristalizaram a idéia da importância reduzida dessas populações na região. Talvez isso explique porque, hoje, Taqueirinha é nome de uma rua em Manaus, localizada no centro histórico da cidade, mas poucos sabem da existência do Bernardo e, menos ainda do Benedito, o soldado negro executado na mesma praça, responsável pelo tiro que matou Bernardo e condenado como único culpado pela morte do comandante cabano. Já chegou o tempo de contar outras histórias.