Na cultura popular brasileira, a linha que separa o sagrado do profano é muito tênue e se esgarça com facilidade. A história do pernambucano Hilário Jovino Ferreira (1850-1933) é um bom exemplo disso. Hilário migrou de Salvador, na Bahia, para o Morro da Conceição, no Rio de Janeiro, em 1872, onde logo se juntou a um rancho, o Dois de Ouros, que saía no dia 6 de janeiro, Dia de Reis, conforme a tradição local daquela época.
Após um desentendimento entre integrantes do Dois de Ouros, Hilário fundou seu próprio rancho, Rei de Ouros, mas esse ele pôs para sair no carnaval, coisa que já se fazia em Salvador, onde fora criado, além de ter estabelecido os contornos originais de mestre-sala e porta-bandeira. Isso modificou a história do nosso carnaval e a febre de ranchos que surgiram para brincarem no carnaval – e não na Folia de Reis – só veio a consolidar a tradição que se faria presente nos dias de hoje.
Em outras palavras, um elemento de uma festa sacra, a de Reis, migrou para uma festa profana, o Carnaval, e inventou um popularíssimo futuro para essa outra a partir do surgimento das escolas de samba, que foram a evolução natural dos ranchos primitivos. Aliás, nas escolas de samba as mulheres cantoras são chamadas de pastoras. Suas vozes dão leveza ao samba. Nos primórdios, as mulheres, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra.
Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. No Rio de Janeiro, a Portela foi uma das primeiras escolas de samba a manter viva essa tradição, com quatro pastoras que entraram para a história do carnaval carioca: Tia Surica, Neide Santana, Áurea Maria e Jane Carla.
No final de 1934, o compositor Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga, também conhecido como “João de Barro”) propôs a Noel Rosa numa mesa do Café Papagaio, no Rio de Janeiro: “Noel, vamos fazer uma música com aquele ritmo das pastorinhas que desfilam em Vila Isabel na noite de Santos Reis?” Proposta aceita, pediram lápis, papel e cafezinho e em pouco mais de meia hora compuseram “Linda Pequena” com participação de ambos tanto na letra como na melodia. Não obteve muito sucesso inicialmente, mas Braguinha fez pequenas alterações na letra e no título, mudando “moreninhas” por “pastorinhas” e “pequena” por “pastora” e o verso “pequena que tens a cor morena” por “morena da cor de Madalena” mudando o título para “Pastorinhas”.
A nova versão foi gravada no final de 1937 por Silvio Caldas, tendo alcançado grande sucesso, inclusive como forte candidata ao título de melhor marcha para o carnaval de 1938. Fato curioso foi o resultado inicial desse concurso promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro: a vencedora inicialmente foi “Touradas em Madrid”, de Braguinha e Alberto Ribeiro, com “Pastorinhas” em segundo lugar, mas houve protestos com a alegação de que “Touradas em Madrid” seria um “paso doble” e não uma “marchinha”.
Após muita discussão a vencedora foi “Pastorinhas”, do mesmo Braguinha e Noel, que até hoje é grande sucesso de carnaval e de público: “A estrela d’alva / No céu desponta / E a lua anda tonta / Com tamanho esplendor / E as pastorinhas / Pra consolo da lua / Vão cantando na rua / Lindos versos de amor / Linda pastora / Morena da cor de Madalena / Tu não tens pena / De mim que vivo tonto com o teu olhar / Linda criança / Tu não me sais da lembrança / Meu coração não se cansa / De sempre e sempre te amar.”
Os autos de Natal portugueses, com a representação do nascimento do Menino Jesus, remontam à Idade Média, quando as cidades e aldeias se mobilizavam para contar essa história com parte importante de sua população. A chegada dos pastoris ao Brasil obedece ao sentimento religioso da antiga metrópole colonial. Em Pernambuco, por exemplo, a manifestação cultural chegou cedo, como aponta a pesquisadora de cultura popular Maria Alice Amorim. “O pastoril traz vários elementos do Auto do Presépio, teatro popular português. Conforme escreveu Pereira da Costa, registros dão conta da existência de pastoril entre nós desde os primórdios da colonização portuguesa, datando do final do século 16 um registro no Convento Franciscano de Olinda”. Os estados de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte também têm representantes do folguedo.
As marchas, loas e cantigas, chamadas de jornadas, em homenagem ao Menino Jesus e à chegada dos três Reis Magos tinham fins de catequese e são cantadas por pastorinhas, originalmente crianças e adolescentes, divididas nos cordões azul e encarnado. Muitas vezes, são encenados no fim da tarde ou início da noite, na frente de igrejas ou em escolas. A subversão desses traços é que compõe o pastoril profano, que tem origem controversa, apontada por alguns pesquisadores como uma tradição bem mais recente, do século 19.
As divisões entre ambos e a atração exercida pelo pastoril profano, que se reveste de um papel de crítica aos costumes sociais, religiosos e políticos também é abordada pela pesquisadora. “O pastoril sagrado apresenta fragmentos de cantos e entrechos dramáticos desse auto popular medieval, de caráter religioso, e a nossa versão bem abrasileirada, picante, irreverente do pastoril é chamada de profana exatamente por se tratar de uma paródia galhofeira daquela festa bem-comportada e com fins religiosos bem explícitos. A galhofa fica por conta do velho do pastoril, safado e escrachado, que comanda a Diana e as pastoras dos dois cordões – o azul e o encarnado – com piadas e cantigas de duplo sentido, mais a dança lasciva das pastoras, que não são crianças nem adolescentes e muito menos têm ar angelical”.
“Simbolicamente, o Pastoril Infantil ou a Lapinha pregava e sugeria o ideal da Imaculada Conceição. O Pastoril-de-Ponta de Rua (profano), ao contrário, defendia o ideal revolucionário do prazer e do sexo sem concepção”, descreve Luiz Gonzaga de Mello no livro “O Pastoril Profano de Pernambuco”. Não faltavam nomes para nomear o pastoril profano: “Pastoril de Jornadas Soltas”, “Pastoril de Cebola”, “Pastoril de Velho”, “Pastoril de Mulheres”, “Pastoril de Ponta-de-Rua” ou “Pastoril de Mulé-de-Vida”. Muitos pastoris adultos ficaram conhecidos pelo nome do velho que os comandava, como o Pastoril do Velho Futrica, Pastoril do Velho Cebola, Pastoril do Velho Barroso, Pastoril do Velho Dengoso, Pastoril do Velho Rabeca, Pastoril do Velho Xaveco, Pastoril do Velho Balalaica, Pastoril do Velho Xumbrega e Pastoril do Velho Mangaba. No caso dos velhos do pastoril, as suas habilidades são múltiplas: cantar, dançar, compor e contar piadas, como palhaços populares talhados para fazer críticas libertinas aos costumes. Esses sátiros do povo já foram bem mais comuns na paisagem humana do Nordeste, mas ainda há quem tome coragem e resista na picardia.
Antônio Coutinho, de 81 anos, nascido em Bezerros, no Agreste, tem voz mansa e gestos de cavalheiro que podem enganar quem não o conhece como o Velho Xaveco, um dos poucos ainda em atividade no Recife. Ferroviário aposentado e ex-forrozeiro, se vestiu definitivamente como o personagem em 1987 e se apresenta onde é chamado, seja por prefeituras ou particulares da capital e interior. O dom para a poesia, especialmente sonetos, o transformou em compositor e a experiência como percussionista na infância o ajudou a fazer uma transição mais suave para um universo mais picante, com a cantoria e as piadas de duplo sentido próprias desses personagens populares. Em sua carreira, lançou dois LPs: “Eu já fui bom nisso” (1991) e “Pacu pequeno, pacu grande” (1995).
Nos últimos anos, o Velho Xaveco se apresenta com cinco pastoras-bailarinas e duas backing vocals, além de seis músicos, com violão, percussão, zabumba, saxofone e Nido do Acordeom. Suas “jornadas”, ou músicas, copiam parcialmente a estrutura do pastoril religioso, mas diferem muito no conteúdo, com trocadilhos e lorotas, além de referência à cobra, símbolo fálico usado como bengala e tratado por ele como “amuleto do véio”. “Um velho de pastoril precisa ser compositor, poeta, produtor, diretor e cantor, mas vale a pena, porque as pessoas gostam de rir. Os temas são atualizados, mas a disposição é a mesma. Hoje, uma das minhas canções favoritas é O Velhinho Quer Tomar Viagra”, afirma.
Ainda assim, o artista popular enumera as dificuldades e diz que elas quase tiram seu gosto para a brincadeira. “A invasão de outras músicas como o funk e o sertanejo deixaram a cultura popular de lado. Não se ouve mais pastoril no rádio ou na TV. Abelardo Barbosa, o Chacrinha, por exemplo, conhecia e copiou a estrutura do pastoril profano. Suas pastoras eram as chacretes e ele se intitulava o Velho Guerreiro. Até 2007, eu tinha uma atividade intensa no Recife e na Zona da Mata o ano inteiro, em festas de santos. A violência e a crise econômica fizeram as viagens minguarem. No pastoril profano é melhor nos apresentarmos a partir das 22h, por conta das piadas mais pesadas, sem a presença de crianças na plateia, mas agora estou até rejeitando alguns trabalhos à noite por conta da bandidagem”, desabafa.
Outro sintoma dos “novos tempos”, para o Velho Xaveco, é o tratamento dispensado à mulher e aos homossexuais nas canções, nas danças e no figurino. Só para lembrar, as pastoras vestem trajes muito mais sumários e são bem mais libidinosas do que na versão religiosa do pastoril. “Não denigro o sexo feminino nas minhas piadas. Minha tendência para escrever é calcada na cidadania. Deixei de fazer brincadeiras e cantar músicas sobre gays. Procuro exercer a aceitação”, diz ele.
Cria e apadrinhado do Velho Xaveco, Silas Araújo, de 41 anos, é um caso raro: tornou-se, há apenas seis anos, o Véi Lumbrigueta. A ligação entre ambos começou de forma inusitada. Ascensorista em um prédio no bairro da Boa Vista, o brincante reconheceu Antônio Coutinho dentro do elevador onde trabalha e ambos começaram a conversar. A partir daí, Silas, que já era ator e palhaço na Bomba do Hemetério, onde vive desde a infância, começou a compor e montou seu grupo de pastoras. Começou com a esposa, a prima e uma amiga e, hoje, são cinco mulheres. Seu acompanhamento musical é feito pela Orquestra Lumbriguetofônica, com quatro músicos, com um repertório de cirandas, cocos e marchinhas. “Sou despachado, mas, ao mesmo tempo, é preciso prestar atenção. Não dá para ter muita picardia quando tem criança vendo. Só conto piadas mais fortes depois das 22h e sem crianças no ambiente”.
Um dos diferenciais do Véi Lumbigueta está em seus adereços. Em vez de uma cobra, ele escolheu uma macaca para acompanhá-lo. O Velho Xaveco e o Velho Faceta são suas maiores referências e Silas misturou essas influências à métrica do cordel e aos causos sertanejos. “O pastoril é especial porque traz alegria sem precisar de uma grande produção. Para mim, ele vai durar para sempre, mas, infelizmente, sem o valor merecido. Só como véio, já não me apresento há dois meses. A falta de renovação existe e é triste, mas tem gente boa por aí sem condições de divulgar o próprio trabalho. As pessoas gostam de palhaços e precisam sorrir. Acredito que as pessoas brincam de pastoril até mesmo sem saber, assim como eu fazia. Isso não é apenas uma moda, é muito mais profundo”.
Outro observador atento da situação dos pastoris é o ator, palhaço e músico Walmir Chagas, artista com 40 anos de carreira e criador do Véio Mangaba, personagem icônico das artes cênicas pernambucanas. Esta recriação inspirada na tradição popular já vai completar 22 anos e ajudou a aproximar a classe média desse tipo de manifestação cultural. Sua experiência o deixa em posição confortável para opinar sobre as condições de sobrevivência desse folguedo profano. “De pastoril autêntico na capital, só existia o Velho Dengoso, de Chão de Estrelas. Essa posição pode parecer radical, mas não quero desvalorizar o trabalho de ninguém. A falta de locais e de condições para se apresentar desestimula os artistas. Com o tempo, acaba. Meu pai perguntava: ‘Recife é pobre por que não tem dinheiro, ou não tem dinheiro porque é pobre?’. Uma coisa alimenta a outra. Você não se dedica porque não há mercado. Poderia ser criada uma escola para ensinar a arte do pastoril”.
A importância de manter a existência do pastoril, segundo Walmir Chagas, reside em sua facilidade em falar a língua do povo e alcançar, dessa forma, camadas impossíveis de outra forma. “Eu entendo o começo, meio e fim do pastoril como uma crítica social. Você fala, por exemplo, sobre uma besteira que o político fez. O meu pastoril mesmo é muito assim. A arte, a educação e a informação estão de braços dados. A gente tem de reportar as coisas boas e ruins. As pessoas ficam rindo da vida dura que a gente leva”.
O legado do Velho Faceta é reverenciado até hoje pelos admiradores da cultura popular e pelos velhos de pastoril profano ainda em atividade. O primeiro e mais antigo foi Constantino Leite Moisakis (1925-1986), de pai russo, que faleceu aos 61 anos, e viveu em Goiana (PE). Ele foi irmão de criação do Velho Barroso (José Menezes). Contrariando a vontade de seu pai, Constantino tornou-se “velho” de pastora na adolescência e até a sua morte trabalhou para manter acesa essa tradição típica de Pernambuco. Constantino vendia mungunzá nas ruas de sua cidade natal e não conseguiu gravar nenhum registro em LP ou CD de suas letras e músicas. Fazia apresentações do seu pastoril exibindo-se para plateias de intelectuais e universitários, mas logo foi esquecido. Morreu na pobreza.
O segundo Velho Faceta foi Jonas Francisco Pereira (1925-1983) que nasceu em Carpina (PE), mas morou durante muitos anos em Abreu e Lima (PE). Foi ele quem lançou discos com o repertório do Pastoril Profano. A indignação de Constantino (o primeiro Velho Faceta) recaiu justamente pelo fato de Jonas ter sido um dos seus músicos e, por esta proximidade, ter copiado as músicas e o nome de seu personagem. Pequeno agricultor em Carpina, Jonas Francisco era tocador de viola, mestre de maracatu e tirador de coco, mas ganhou fama mesmo como animador de pastoril, arte à qual se dedicou em 1955, quando já vivia em Itapissuna, na região metropolitana de Recife. O segundo Velho Faceta teve a sorte de ser visto e ter seu trabalho reconhecido graças ao teatrólogo e estudioso da cultura popular Hermilo Borba Filho, que o apresentou à gravadora Bandeirantes, por onde gravou seus três únicos discos em LPs, nos anos 70 e, com isso, difundiu seu trabalho para outros públicos.
Foi esse segundo Velho Faceta que teve sua atividade reverenciada graças a um pequeno texto de Hermilo Borba Filho, escrito em 11 de janeiro de 1973 e publicado na contracapa do primeiro disco do brincante: “Já que não podemos salvar, como pessoas humanas, estes músicos, estes coreógrafos, estes bailarinos, estes atores, estes cantores, estes poetas, pelo menos tentemos salvar sua arte, dentro de roteiros honestos. Uma coisa esquisita vai acontecer: o espetáculo morre, mas a música e os versos viverão. Isso vai acontecer com o Bumba, o Mamulengo, o Pastoril, o Fandango, o Coco, o Reisado, a Chegança, a Taieira, o Bambelô, a Ciranda, o Maracatu, os Caboclinhos e a Cavalhada”.
Ao defender o formato mais tradicional do pastoril profano, o Velho Faceta se tornou modelo para os “véios” seguintes e também foi usado como referência na cultura pop. Um exemplo emblemático é o do grupo Os Trapalhões, que fez uma versão da música “O casamento da filha do Velho Faceta”, com o nome “Papai, eu quero me casar”. Chico Science e Nação Zumbi também prestaram homenagem ao Velho Faceta ao usar um sample da música “Boa noite”, do Velho Faceta, no início do clássico “A cidade”, no álbum “Da lama ao caos”. Chacrinha também gravou duas músicas compostas por ele: “Bacurinha” e “É mais embaixo”.
O multiartista pernambucano Antonio Nóbrega é um dos vários artistas que foram influenciados pelo Velho Faceta. Nos anos 90, ele criou o seu palhaço popular, Tonheta, a partir de imitações feitas do decano do pastoril, como anotou em seu site oficial. “Esse Toinho que aqui vos escreve, tinha o hábito de frequentar as apresentações do Pastoril do Velho Faceta, realizadas pelo verão no Janga. Foi esse Velho Faceta – segundo uns, Constantino Leite Moisakis, e segundo outros, Jones Francisco Pereira – que durante vários anos acompanhei em andanças e apresentações”.
Um dos animadores populares mais conhecidos da comunidade de Chão de Estrelas, no Recife, José Justino da Silva, o Velho Dengoso, era um dos representantes do pastoril profano mais emblemáticos do Recife. Sua trajetória ilustra o surgimento dos mestres de pastoril clássicos: sua atividade começou no Pastoril do Morcego, no Bairro de Peixinhos, quando tinha 13 anos. Suas habilidades múltiplas foram se aperfeiçoando ao longo das décadas como cantor, mamulengueiro, coquista, cirandeiro, compositor e também animador de boi. Em 2006, o Velho Dengoso foi homenageado pelo Festival de Teatro de Rua do Recife, e gravou um DVD em 2013.
O Velho Dengoso faleceu em setembro de 2018, aos 65 anos. Segundo o jornalista Alexandre Paiva, que trabalhou como produtor do Velho Dengoso entre 2009 e 2015, o artista se dedicava à brincadeira desde os 11 anos de idade e era o último representante do pastoril-de ponta-de-rua verdadeiramente original de Pernambuco. “Pelo que eu pesquisei ele era o único artista vivo em atividade, neste segmento. Ele era o último”, garantiu. Em nota oficial, a secretaria de Cultura do Recife, Leda Alves, lamentou a morte do mestre: “Agora somo nós que precisamos dar o derradeiro adeus ao Velho Dengoso, que tanta alegria semeou, provocando riso e semeando alegria e brincadeira”.