Por Ruy Castro
Quando entrar numa loja de discos decente, vá à estante de jazz e confira. O pianista Bill Evans estará ocupando uma gaveta só para ele. Ou mais de uma porque, neste momento, o catálogo internacional deve constar de mais de cem CDS em seu nome. Nem Oscar Peterson, no apogeu de sua popularidade, chegou a tanto. E pensar que os jazzistas que descobriram Bill Evans, em meados dos anos 50, achavam-se sozinhos no universo, como os únicos detentores do segredo.
O inglês Peter Pettinger, primeiro biógrafo de Evans, foi um deles. Em seu livro “Bill Evans: How my heart sings” (Yale University Press, New Haven, 346 págs.), ele conta como, aos treze anos, em 1958, descobriu em Londres os primeiros discos do pianista e sua vida mudou. Na tentativa de captura de mais discos, conheceu outros fãs de Evans e verificou, horrorizado, que eles também o consideravam sua propriedade individual. Só depois Pettinger concluiu que isso é normal em artistas que parecem comunicar-se num nível tão pessoal. Era como se Bill Evans fosse mesmo propriedade exclusiva de cada um de seus fãs – os quais, de qualquer maneira, não eram tantos naquela época. Hoje devem ser centenas de milhares no mundo inteiro.
Peter Pettinger é de uma deliciosa sinceridade. Ele fala de sua emoção ao saber que, em fins dos anos 60, Evans iria a Londres para tocar no famoso clube Ronnie Scott’s. Pois Pettinger foi ouvi-lo todas as noites e, mesmo vendo-o sozinho e desenturmado no fundo do palco, ao fim de cada show, nunca teve coragem de dirigir-lhe a palavra. Anos depois, o próprio Pettinger passou a ir a Nova York, sempre cronometrando as viagens com a certeza de que Evans estaria tocando no Village Vanguard, seu pouso mais constante. E mais uma vez, embora estivesse sempre na fila do gargarejo – e à vista de Evans, que devia acha-lo esquisitíssimo – continuou com medo de ir falar com o herói. O máximo a que se atreveu foi pedir uma música quando, certa noite, Evans abriu essa possibilidade para a plateia. Ao abrir a boca, a voz de Pettinger saiu alta e em falsete, como se um ventríloquo estivesse falando por ele. Evans espiou-o com o rabo do olho, intrigado, mas atendeu-o. Finalmente Pettinger convenceu-se de que “não queria” ou “não precisava” falar com Evans. A música bastava. E ficamos combinados assim.
O próprio Pettinger tornar-se-ia depois um concertista internacional de piano e grande especialista em Bartók, mas sua adoração por Bill Evans nunca diminuiu. Seu livro é o livro de um músico, não exatamente de um biógrafo. Noventa por cento dele se concentra na obra de Evans, com um minucioso apanhado cronológico dos passos profissionais do artista, sua evolução técnica e estilística, os grupos de que participou como coadjuvante ou líder, as influências (Nat “King” Cole foi o pianista que Evans mais admirou) e as horas que dedicava sozinho ao piano – como passar um dia lendo Bach à primeira vista para desenvolver sua tonalidade. E cada faixa de cada disco é esmiuçada musicalmente, o que muitas vezes exige que o livro seja lido com uma pilha de Bill Evans no prato de um CD-player de cabeceira.
Mas Pettinger oferece também um relato paralelo da vida de Bill Evans, colhido com amigos e parentes – relato esse que, embora comparativamente curto, tem muitos momentos emocionantes. De seu nascimento em New Jersey, em 1929, até sua morte, em 1980, Evans foi um homem sensível, introspectivo, de óculos desde criança e – o próprio Pettinger admite, com outras palavras – dedicado a morrer um pouco todos os dias.
Um de seus sonhos era ir ao País de Gales, terra de seu pai, e à Rússia, de onde a família Soroka, de sua mãe, saíra no começo do século. Por algum motivo, Gales parecia mais remoto que a Rússia e, por duas vezes, Evans quase foi a Moscou, onde tinha uma legião de admiradores. Na primeira vez, chegou a voltar do aeroporto Kennedy. Na segunda, pouco antes de morrer, já estava de malas prontas quando soube que a União Soviética invadira o Afeganistão. Cancelou a viagem e escreveu uma carta à revista Down Beat na esperança de que fosse lida em Moscou. Na carta, Evans dizia lamentar a existência de uma sociedade em que uma pessoa tivesse de sofrer por suas opiniões e que o episódio do Afeganistão era a gota d’água. E torcia para que, em dias mais felizes, pudesse conhecer a terra de seus avós. Mas morreu poucos meses depois.
Evans foi um prodígio do violino, do piccolo, da flauta e, a partir dos oito anos, do piano. Sua capacidade de ler música à primeira vista era um motivo de assombro para os professores. Foi alimentado com os clássicos, mas o rádio era uma realidade inescapável em qualquer cidade americana em fins dos anos 30 – e o que saía do rádio era o som das grandes orquestras: Tommy Dorsey, Glenn Miller, Harry James. Foi isso que o entusiasmou. Em pouco tempo já tocava o boogie-woogie mais rápido da cidade na orquestra da escola. Passou a ir a Nova York para penetrar nos clubes da rua 52 com uma carteira de estudante falsificada e, com isso, ouviu todo mundo ao vivo: Earl Hines, Bud Powell, o “King” Cole Trio.
Em 1950, seu conterrâneo, o guitarrista Mundell Lowe, armou um trio ao estilo do de Nat Cole com o jovem Evans (21 anos) e um contrabaixista. Sua primeira apresentação foi numa boate em Calumet, cidade natal de Dean Martin, em Illinois. Para se avaliar o nível cultural da cidade, o palco teve de ser cercado por uma tela de galinheiro, para o trio não ser alvejado pelas garrafas de cerveja que os caipiras, avessos a jazz, atiravam em músicos como eles. De 1951 a 1954 Evans esteve no Exército e, ameaçado de ser mandado para a Coréia, passou um bom tempo longe do piano. Em compensação, viu um bocado de desenhos animados na caserna, de onde tirou sua permanente admiração pelas canções dos filmes de Walt Disney, entre as quais “Someday my prince will come”, de Branca de Neve e os sete anões – de que, por sugestão de Bill, Miles Davis faria uma grande gravação em 1961.
Evans recuperou rapidamente o terreno perdido na caserna, trabalhando com todo mundo (de Tony Scott a Charles Mingus, de Zoot Sims a Helen Merrill) até 1958, quando foi convidado por Miles Davis a substituir o grande pianista Red Garland em seu novo conjunto. Que time: Miles, John Coltrane ao sax-tenor, “Cannonball” Adderley ao sax-alto, Bill Evans ao piano, Paul Chambers ao contrabaixo e, à bateria, Jimmy Cobb no ligar de Philly Joe Jones, demitido pelo mesmo problema que Garland – heroína. Já então, tocar com Miles Davis era o melhor emprego com que um músico de jazz poderia sonhar – o mais bem pago, o de mais prestígio e exposição. E olhe que Evans tinha um problema grave – não aos ouvidos, mas aos olhos dos fãs de Miles: era branco.
Peter Pettinger, em seu livro, refere-se a um show de Miles em Washington, gravado ao vivo e lançado no CD Four-play, que registra o clima geral daquelas apresentações: aplausos para os solos de todo mundo do conjunto, menos para os de Bill Evans. As plateias negras e também as brancas não o perdoavam por ter tomado o lugar de Red Garland. Mas Miles não queria saber de racismo contra um branco em seu conjunto e o manteve. Infelizmente, Evans, tentando “integrar-se”, tomou a pior decisão de sua vida: passou ele também a injetar heroína. Desde Charlie Parker, a romântica e ingênua ideia de que heroína e genialidade eram sinônimos tornara-se um clichê do jazz. Os músicos que iam morrendo pelo caminho, incluindo Parker, não assustavam os novos usuários. Segundo Pettinger, Evans não queria ser apenas um dos renitentes drogados da banda de Miles, para desgosto deste. Evans queria ser o mais drogado. Até que Evans pediu demissão e formou seus próprios trios.
A partir daí, Pettinger relata amorosamente a extraordinária evolução da carreira de Evans e como ele, curvado sobre o piano e quase sem olhar para a plateia, seguiu conquistando multidões com a força apenas de seu gênio. E, ao mesmo tempo, narra os recorrentes problemas de saúde do artista, provocados pela droga, que o impediram de atingir alturas ainda maiores. Houve ocasiões em que Evans só podia tocar com a mão esquerda, porque a direita estava paralisada por tantas injeções. Sabendo-se tudo que ele injetou (nos últimos anos, cocaína), é um milagre que tenha trabalhado tanto, gravado de forma tão descomunal e granjeado tamanha admiração. Mas o maior milagre, dizem todos, foi ter chegado aos 51 anos.
Década após década, os amigos que o admiravam e amavam foram testemunhas impotentes de sua morte anunciada. Um desses, o letrista Gene Lees, resumiu: “Foi o suicídio mais lento da História”.
(Texto publicado no jornal OESP em 12 de dezembro de 1998 e depois incluído no livro “Tempestade de Ritmos”, da Editora Companhia das Letras)