Musicoterapia

Galeria dos Bambas: Aniceto do Império

Postado por Simão Pessoa

Por Tárik de Souza

A sala ainda está pelos tijolos numa casinha de Nova Iguaçu, mas o negro forte, de cabelos grisalhos e mãos calejadas, faz questão de receber-me “à altura da minha possibilidade”. Sessenta e cinco anos, voz encorpada quando canta, de timbre semelhante a de Clementina de Jesus e Xangô da Mangueira, ele é um personagem não menos ilustre do mundo do samba: Aniceto do Império.

Um pouco mais arredio, talvez. Certamente mais injustiçado. Cita pelo menos três produtos afamadíssimos na praça do samba que lhe prometeram um disco, e nada. “O Partido Alto de Aniceto e Campolino” saiu agora, pelo Museu da Imagem e do Som, produzido por Elton Mendeiros.

Nove faixas compostas por Aniceto, três por um partideiro mais jovem, Nilton Campolino. Aniceto não se aborrece com a divisão. Ao contrário, elogia o trabalho de Elton (“fiquei em dívida com a sinceridade dele”), mas faz questão absoluta de considerar ainda não gravado seu primeiro disco individual, aos 49 anos de samba.

O rigor e a severidade aliás são inseparáveis de Aniceto desde os primeiros tempos, quando percorria os morros e subúrbios acompanhando Paulo Benjamin de Oliveira, o célebre Paulo da Portela. “O Paulo me gostava muito porque eu brinco, sou pândego, mas quero respeito. Ele era muito metódico, não admitia abuso, não admitia saliência.”

É solene a própria linguagem de Aniceto, acusada de pernóstica pelos companheiros do samba, e algo semelhante à do compadre Mano Décio da Viola. Ele usa termos escolhidos, flexiona exaustivamente os pronomes, adjetiva com pompa e ênfase: “Aceito o cotidiano até certo ponto, prefiro o vernáculo”.

E rememora os ataques que sofria, ele, que passou pelos empregos de trefilador, estampador, lavador e hoje é arrumador aposentado pelo Cais do Porto, como vários outros companheiros da fundação da Escola de Samba Império Serrano, Molequinho, Mocorongo, Fuleiro, todos implicavam com sua mania de escandir os “is” de palavras como cadeira, frigideira, pronunciadas por eles, como é uso corrente, cadera, frigidera.

Filho de Aniceto de Menezes e Silva, um pai tão rígido quanto o de outro companheiro falecido, Silas de Oliveira, Aniceto era obrigado a fugir de casa para frequentar as rodas de samba na praça de Rocha Miranda, ou no Grêmio Recreativo Mama na Burra de Turiaçu.

A partir dos 16 anos e meio (ele faz questão da fração), Aniceto acumulou o trabalho e o samba – este apenas às noites de quinta, sábado e domingo. “Mas na segunda-feira eu ia trabalhar, como também na sexta.”

Aconteciam então as coisas como a que me descreve à minúcia: ele caiu num valão de rua, em Turiaçu, no caminho para o trabalho. Só então, acordou. Costumava dormir enquanto andava, já que passara a noite na farra.

O pai já começava a tornar-se mais liberal, diante do filho compenetrado, mas ainda assim exigia que ele estudasse em vez de trabalhar. “Acabou pagando um explicador para mim, porque eu não parava em escola nenhuma, tinha muita facilidade em aprender e passar adiante da classe.” Chegou somente até o quarto ano primário, “mas o primário daquele tempo correspondia ao ginasial de hoje”.

Rigoroso até como autocrítico, Aniceto fala com uma certa desconfiança do gênero que o tornou conhecido, o partido alto. “Estão todos hoje cantando samba menor e dizendo que é partido alto, eu sou um dos errados. E sabe por quê? Porque não gosto de viver isolado, é muito triste o isolamento, então eu acompanho a onda.”

Define algumas regras básicas da especialidade que, segundo um dos partideiros mais antigos, o falecido Donga, “que me pegou no colo”, teria em Aniceto apenas “um dos que mais se aproximam”. O partido alto, para Aniceto, “tem hora de começar e não de terminar”; “é um tema que vem sendo desenvolvido”.

O samba menor (que seria, segundo as minhas deduções, um partido enlatado para o disco) pode ser cantado por uma pessoa apenas. O partido alto exige a presença dinâmica do coro. Daí Aniceto reconhecer, em seu próprio disco, alguns sambas menores rotulados de partidos (“Quem tem tem / Vacilação não dá pé”).

“O samba menor foi um recurso que apareceu na época que o Paulo da Portela ficou em evidência, para adaptar o samba aos coristas”, me explica ele. “O partido é raiz, filho do jongo, de origem religiosa.”

Pergunto se o caxambu também teria contribuído para gerar o partido alto e Aniceto discorda inclusive da indagação. “A pergunta foi mal formulada, o caxambu é apenas um instrumento, o tambor grande usado no jongo, que tem ainda um tambor menor, o candongueiro, e às vezes usa um terceiro tambor, cujo nome não me recordo.”

Volto a insistir: “Mas não existe um ritmo, um gênero chamado caxambu?” Ele fulmina: “Isso é mitificação dos sábios. Eu como burro discordo sem receio deles. O caxambu é o instrumento, o jongo a dança”.

Súbito, mergulhado em histórias que lhe vieram de antepassados a respeito do jongo (é sobrinho do famoso Hilário Jovino dos ranchos e de um sambista de raiz, Veríssimo, além de ter convivido com as ligações africanas da música brasileira primitiva), Aniceto transforma-se. O português escorreito (mais tarde ele cantaria alguns partidos que fez em italiano, japonês e esboços em castelhano) cede lugar a um acento de preto velho, que ele pontua impecavelmente. História ou lenda?

– Aconteceu aqui mesmo no Estado do Rio, há muitos anos; era uma conversa entre pai e filho, na hora do jantar. Disse o menino: “Ê pai, o candoguero tá chamando, pai”. Diz o pai: “É mureque, ucê não vai jongá não qui ucê more”. Dias antes, o garoto havia participado de um jongo e amarrado dois velhos. E os velhos ficaram revoltados com ele. O pai, que era turumbamba (Aniceto: “quer dizer reza forte, o mais poderoso que tem”), disse a ele: “Cê num joga que ucê morre”. Mas ele não tava acreditando: “Pai, ó o candoguero” (Aniceto: “Apesar de ser um tamborzinho menor, o candoguero vai mais longe que o caxambu”). “Oia pai, eu morre, mas eu jonga”. E retrucou o pai: “Ucê qui sabe, mureque”. O filho acabou de comer, deu duas dobras nas calças e foi. Quando chegou lá encontrou os dois velhos, que começaram a cobrar a participação dele. Porque o jongo é o seguinte: ele tem uma fogueira que deve ser acesa, e é sustentáculo dele. Quem chega, pede licença. Com o barulho que os velhos faziam, veio também o dono da casa exigir que o novato pedisse licença no jongo. Aí o garoto sentou no tambor. Automaticamente está cortado o ponto. Isso só faz quem se garante, e o menino não era turumbamba, mas cantou: “Se eu saravá eu morre, se eu não saravá eu morre, é mió num saravá, é mió num saravá”.

– Mas o resultado foi funesto: ele saiu relinchando, andando de quatro pés e caiu no meio da estrada. Quando o dia clareou, chamaram o pai dele por diversas vezes: “Seu filho tá caído no meio da estrada”. E ele: “Eu sabo”. Quando deu seis horas, ele saiu de casa e foi ver o filho. Chegou e disse logo: “Levanta mureque, toma bença seu pai”. Ele levantou de um salto e tomou a benção. “Outraveis, pai só vai atrás de ucê se obedece pai. Cê é mio fio tem que obedecer a ieu que é pai de ucê”.

Aniceto comenta que o garoto da história teve que tomar banho e trocar de roupa antes de poder entrar em casa. Foi ainda obrigado a pedir licença antes de atravessar a porteira, de volta para casa. Ele me recomenda: “O senhor nunca passe em porteira, mesmo lá na Cidade do Rio de Janeiro, mesmo na Zona Sul. Nunca passe sem pedir licença primeiro, porque toda porteira tem qualquer coisa, tem o seu dendê”.

Cercado de filhas atenciosas, o hospitaleiro Aniceto, carioca do Estácio (“Brasil ainda é Rio de Janeiro”), me exibe um gravador onde vai registrando pouco a pouco as 500 composições anotadas em vários cadernos escolares repletos de caligrafia caprichada. “Não toco nenhum instrumento; antes de conseguir comprar o gravador, perdi muita coisa.”

Na maioria das músicas, Aniceto canta acompanhando-se batucando na mesa da sala: “Saíram uma fortuna ter que editar tudo”. No máximo umas 10 foram gravadas, a maioria por ele mesmo, em discos que reuniam vários partideiros. Mesmo usando uma classificação mais complacente, Aniceto não estaria satisfeito com esses “arranjos” comerciais; num dos discos rotulados de partido alto, havia um samba-enredo “e até mesmo um hino religioso”, lamenta.

O compositor também é rigoroso nos detalhes da história de sua Escola, o Império Serrano. Apesar da amizade com o compadre, não hesita em excluir Mano Décio da Viola da fundação da Escola, citando o título do samba “Alergia à Mentira”. “Sou, mesmo, alérgico a ela.” E parte para a sua especialidade, a descrição das cenas, e farta reprodução dos diálogos, como se estivesse num palco.

– Eu pertencia à Escola Rainha das Pretas, no Largo do Neco. Afastei-me, porque estava muito perto da minha casa, na Rua Buriti, e o velho me controlava muito. De quando em vez, eu estava na Prazer da Serrinha, mas não era compromissado com a direção, não tinha que envergar indumentária no carnaval. Havia muito descontentamento, porque o Alfredo Costa, o popular Alfredinho, não era o diretor, era o dono da Serrinha. Ele e mais um grupinho de parentes, os mais chegados. Nós nos sentíamos muito humilhados e fomos nos afastando. Afastou-se Fuleiro, Molequinho, João Geraldinho, afastei-me, nós ficamos sem diversão. E gostávamos do carnaval.

Confiram o resto da nossa conversa:

Em que consistia uma Escola de Samba naquele tempo?

Em dar festas durante o ano e desfilar no carnaval. A mesma coisa de hoje, com a diferença que naquela época era o samba legítimo. Agora é muito mitificado, muito cafona. Naquela época, havia sambistas e não havia instrumentos elétricos para se divulgar, não. Era no peito e na raça. Quem fosse fraco que se estourasse. Certa vez fui visitar minha comadre Sinoca, outra das fundadoras do Império, na véspera do carnaval. Ela me deixou esperando na porta, porque comandava a ala Baianas da Cidade Alta e nem eu mesmo podia ver as fantasias que estavam sendo confeccionadas na casa dela. Só me recebeu quando todas as costureiras se esconderam no quarto.

Mas e a fundação do Império, como foi?

Reunimo-nos todos, o Antônio Fuleiro, o Sebastião de Oliveira, o Molequinho, o irmão dele, João Grandinho, o Mocorongo e vários outros e fundamos o Império para podermos brincar. O Mano Décio foi convidado. Prometeu. Mas na hora agá, saiu pela Serrinha. E como se identifica o fundador de uma Escola? É aquele que desfila no primeiro carnaval.

Como foi o impacto do aparecimento da Império?

Naquela época, em 47, o carnaval era feito sob rigoroso sigilo, ninguém sabia como o Império ia se apresentar. Quando o Império surgiu, o carnaval estava combalido. O Império deu aquele impulso, reformulou o carnaval, ganhou todo mundo. Nasceu sendo campeão e chegou a tetra.

E por quê? Primeiro: bateria uniformizada. Naquela época era o seguinte: vai como pode, um em manga de camisa, outro com paletó caindo, puxava o paletó, continuava a bater o surdo, botava o paletó debaixo do braço. Descalço, de chinelo, alpargata, tênis. E o Império não surgiu assim. Todo mundo de tênis, calça branca, blusãozinho verde. Esse blusão poderia ser de papel, mas tinha que estar nas cores. Puxador de corda, idem. Empurrador de enredo, dos carros alegóricos, a mesma coisa. Não quero dizer – meu Jesus do Sacramento! – que o enredo do Império fosse melhor que os outros, que o samba fosse melhor, mas acontece que veio dentro das hermenêuticas devidas, tudo uniformizado e a comissão gostou. Foi dando nota máxima. Aquilo criou uma revolta.

Tinha muita gente que não desfilava no carnaval e passou a desfilar, lá mesmo na Serrinha. Aquelas famílias mais zelosas, mais ciosas pelo moral – “minha filha não desfila em escola de samba” – ao saber que o Império separava os homens das mulheres dentro da sede, passaram a dar mais liberdade. No Império pode ir: não ficava nem filha com pai, irmão com irmã; era cada um de um lado. Uma campanha violenta. Os pais iam lá verificar e isso foi mais um empurrão que o Império recebeu.

Mas por que havia essa divisão sexual?

Se muita gente ia para a macumba para arranjar namorada, por que não arranjar dentro da escola? Nós não éramos contra os namoros, mas lá dentro não podia ficar namorando. Nem próximo um ao outro, quanto mais agarrado.

Voltando à repercussão da estréia do Império. Como reagiram as outras escolas?

O Império, no começo, se reunia na Rua da Balaiada, última casa à esquerda, no alto do morro. No primeiro ano, lá pelo segundo dia de carnaval, nós fomos visitar a Portela e fomos recebidos pelo orador oficial, o Alvaiade. Ele disse que o Império estava bonzinho, mas precisava melhorar, quem sabe um dia, etc., etc. Isso antes do resultado. Daí, eu que era o orador oficial do Império subi no mesmo caixote improvisado e fiz o meu discurso de que o Império não estava disputando o primeiro lugar. Que chegasse em 25º, desde que a Serrinha viesse em 25º. Nosso negócio era a Serrinha. Mas nós ganhamos, para a surpresa geral.

A rivalidade foi crescendo, foi ficando feroz. O Natal da Portela subia o morro para provocar a gente. Chegaram a subir juntas, numa só corda, Mangueira e Portela, procurando pelos integrantes do Império. E vinha um mangueirense e me diz: “Não sai na rua não porque aquele carro de entrega de café tem um verdadeiro arsenal dentro. Eles estão querendo apanhar vocês”. Iam sair só os homens, mas as mulheres se revoltaram. Nós também somos imperianas. E o presidente, para evitar uma carnificina, não deixou sair ninguém.

O Império nunca desfilou com um samba seu?

Não, eu não sou da ala dos compositores. Samba de quadra eu fiz para lá quando Dalva de Oliveira candidatou-se a Rainha do Rádio e foi visitar a escola. Perguntei aos membros da ala se não iam fazer uma homenagem. Eu fiz, mas não tive o apoio deles. Ainda tive uma campanha contra mim iniciada pelo Antônio dos Santos, o Fuleiro, que os meus filhos tomam a benção e chamam de tio. Aliás, eu estou meio triste com o Fuleiro, porque ele foi para a Imperatriz Leopoldinense. Ele é um dos homens que queimou muita roupa com a corda suja de lama, junto comigo. Ele puxando de um lado, eu de outro. Ele, Molequinho, Mocorongo, perdemos muita calça assim.

Mas o senhor também se afastou…

Afastei-me porque intercedi numa briga que houve entre o Império e a Mangueira. Consegui levar uns representantes da Mangueira lá, depois que uma moça foi agredida na Mangueira. Eu queria que as duas escolas fizessem as pazes. Mas não fui ouvido, aí desci com os mangueirenses e me afastei da escola.

O senhor ainda paga as mensalidades?

Não. Porque eu quero o meu número de matrícula. Eles sumiram com o livro da fundação. Então eu disse, se eu não vou ter a minha condição que me enche de prazer, de glória, de satisfação, não pago. Mas sempre que chego sou bem recebido, nunca fui barrado na porta.

E nunca pensou em sair por outra escola?

Como diz o jongueiro, eu sou um ouriço sem banda, eu ando muito, fui muito assediado na Mangueira. Três mulheres e um homem, a Neuma, a Isaura, a Irene e o Ferreira. Queriam de todo jeito que eu desfilasse pela escola. Mas eu disse: tenho um coração dentro do peito que pulsa pelo Império Serrano. Lutei tanto para vencê-los, agora vou me unir a vocês? E a Neuma: “Gostei dele, ele tem ideal”.

(Publicado no Jornal do Brasil, em 20 de junho de 1977)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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