Musicoterapia

I Get No Kick From Cocaine…

O fabuloso Cole Porter
Postado por Simão Pessoa

Por Luis Fernando Verissimo

A letra da música de Cole Porter foi mudada, trocaram “cocaine” por “champagne”, mas na época em que ele a escreveu a cocaína era chique e seu uso era comum na alta, em mais de um sentido, sociedade americana. Não sei quem a supria então, provavelmente a maior parte vinha da Turquia e do Oriente. O tráfico de narcóticos ainda não era um grande problema nos Estados Unidos e o seu uso não escandalizava muito. Pelo menos a música de Porter foi cantada no original durante muito tempo.

Em Hollywood e no mundo dos espetáculos e da música – principalmente no mundo do jazz – a maconha e a heroína transitavam mais ou menos às claras, eram uma questão policial mas não uma emergência nacional. Foi quando as drogas se popularizaram, e as revoluções culturais que começaram na década de 50 descontraíram uma jovem classe média com dinheiro para se pirar também, que o problema passou a crescer até se tornar esse pesadelo do qual os americanos estão tentando, sem sucesso, acordar.

A América do Sul se transformou no principal fornecedor de tóxicos para os Estados Unidos e a situação repete, como farsa trágica, uma história clássica de espoliação: a metrópole sugando matérias-primas de regiões primitivas em troca de proveito nenhum para os países produtores. Com a diferença, que seria até uma retribuição merecidamente irônica se não envolvesse tanta dor e morte, que agora a metrópole luta para parar o comércio da matéria que a envenena, além de oficialmente não lucrar com ele.

Mais uma vez é o contraste entre a voraz prosperidade americana e o atraso do resto que determina a história econômica e os costumes da região. Os cartéis de bandidos que dominam a produção da coca são paródias negras dos oligopólios que se formaram, em aliança com o capital estrangeiro, nos países espoliados. Aquele secretário americano que defendeu a intervenção militar do seu país em qualquer lugar do mundo onde se produz cocaína para vender nos Estados Unidos está ecoando, pelo avesso, a velha doutrina Monroe que justificava a intervenção em qualquer lugar do hemisfério para defender mercados e interesses americanos.

O ditador panamenho Noriega só é diferente dos muitos títeres que os americanos criaram e sustentaram na América Central porque encontrou quem paga melhor, no caso os traficantes de drogas, e trocou as alianças. A corrupção de Somoza era igual a dele. Mas Somoza era o que a sra. Fitzpatrick, a Passionária do conservadorismo americano, chamaria de tirano do nosso lado. Os negócios de Somoza com os americanos eram “legítimos”. Noriega só desceu um pouco na escala social. Faz negócios com bandidos sem disfarces.

Falando nele… Cole Porter era de Peru, uma pequena cidade de Indiana, no interior do interior dos Estados Unidos. Não sei quanto tempo ficou na cidade. Formou-se em Yale e estudou música em Harvard e é pouco provável que tenha voltado a Peru a não ser para rápidas tarefas sentimentais, como receber um prêmio da sua velha escola ou enterrar uma tia.

Entre todos os grandes compositores populares americanos da sua época de nenhum se poderá dizer que é um produto menos típico de Peru, Indiana – ou de qualquer outro lugar que simbolize o coração árido do país – do que Cole Porter. Já disseram que George Gershwin escreveu a trilha sonora de Nova York mas a letra e a música de Cole Porter iam mais longe, eram o acompanhamento de um estilo de vida, de uma atitude, de tudo que a Costa Leste tinha de diferente de Peru.

Porter poderia dizer de Gershwin o que George Vidal disse de Norman Mailer. Para Vidal, Mailer era um privilegiado. Nascera pobre e judeu, estava feito na vida. Enquanto ele, rico, aristocrático e cristão, precisou vencer todas estas dificuldades para se tornar um escritor. Gershwin, nascido no Brooklyn, estava lutando para sobreviver no comércio da música de Nova York, o “Tin Pan Alley”, enquanto Porter fazia canções satíricas para os shows de seus colegas em Yale ou Harvard, as escolas preparatórias para o poder no “establishment” do Leste. Por isto Gershwin foi mais valorizado. Pelo menos sempre se disse que a música de Gershwin era mais importante e a de Porter apenas mais brilhante. Mas estas comparações perdem um pouco de sentido no detalhe. Mailer, por exemplo, também estudou em Harvard, embora diga que estava tão bêbado que não se lembra. E Gershwin, apesar da sua origem mais humilde, teve mais formação musical do que Porter, tanto que foi musicalmente bem mais ambicioso, incursionando pela ópera e sinfonia, enquanto Porter nunca foi além da canção popular.

O cinema difundiu as músicas de Porter, Gershwin, Jerome Kern, etc., feitas para o teatro, pelo mundo. Mas o cinema também lhes pregou algumas peças. Nada mais falso do que a versão hollywoodiana do processo de criação musical. Um dos exemplos inesquecíveis disso é da própria biografia cinematográfica de Cole Porter – Cary Grant era um improvável Porter – quando ele, vítima de um bloqueio que o impedia de compor e de uma arrasante crise amorosa, ouve, em sequência, tambores distantes, o tique-taque do relógio na parede e o ruído da chuva na vidraça e começa a tirar no piano a introdução de “Night And Day”: “Like the beat, beat, beat of the tom-tom, when the jungle shadows fall: like the tick, tick, tock of the stately clock…” Pior do que isso só a cena da biografia de Strauss em que o compositor ouve, num bosque de Viena, as patas dos cavalos e o canto dos passarinhos lhe ditarem a primeira estrofe de uma valsa. Não fazem mais cinema como antigamente, felizmente.

Mais do que nas de outros compositores, nas letras de Porter estão refletidas as preferências e angústias de uma época, e a experiência urbana de uma determinada classe com todo o seu humor e cinismo, desde a ricaça que, de vestido prateado, canta seu lamento por um amor perdidos das “profundezas do nonagésimo andar”, de um prédio onde até a mulher do faxineiro, numa tradução livre, tem amor o ano inteiro, enquanto casais “punem o parquet” no El Morocco ou pedem mais no Clube 21, até o professor Munch, um distraído moço que comeu a sua mulher e se divorciou do seu almoço. Na música “You’re The Top”, do musical “Anything Goes”, em que dois amantes declaram que o outro é o máximo, tem-se uma lista de tudo que os americanos dos anos 30 consideravam o melhor do mundo.

Cole Porter também poderia dizer de George Gershwin que ele teve a vantagem injusta de morrer antes. Gershwin morreu em 1937. Porter em 1984. Não se sabe o que teria acontecido com a reputação de Gershwin se vivesse tanto quanto Porter, mas ele se livrou de uma época em que revelação e escândalo passaram a ser tão valorizados quanto o talento. Quando o escritor Truman Capote publicou seu famoso primeiro capítulo de “Answered prayers”, preces atendidas, na revista “Esquire”, com fofocas sobre a preferência sexual de Porter, entre outros, houve reação, não porque já não fosse comum contar tudo sobre todo mundo mas porque, embora seu homossexualismo não fosse segredo, Porter tinha conseguido viver livre de inconfidências públicas até sua velhice e não merecia isso.

Além de homossexual, era toxicômano. Na sua música “Well, Did You Evah” – Bing Crosby e Frank Sinatra a cantam no filme “High Society” – há um trecho que diz: “Have your heard that Mimsie Starr just got pinched in the Astor Bar?” (Você ouviu contar que a Mimsie Starr foi beliscada no Aston Bar?) A primeira sílaba de “Astor” devia ser prolongada, dando a impressão de que o beliscão tinha sido na “ass”, bunda, da Mimsie. Era um verso que em tempos mais inocentes os americanos chamavam de “risque”, ousado, apimentado. Com todas as suas referências à cocaína e aos costumes de ricos entediados, Porter era de uma época em que certas coisas não eram ditas, só eram sugeridas e com graça. Teve a má sorte de viver até uma época em que tudo é dito, com metade da graça.

(texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e depois incluído no livro “América”, de 1994)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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