Por Tárik de Souza
Como toda pessoa em viagem, o homem do apartamento 909, do Hotel Glória no Rio, se move com certo desconforto em sua residência provisória. Preocupa-se: conversa há meia hora e ainda não oferecera nada ao visitante (“Lá em casa, isso não teria acontecido”). Solícito, cumprimenta e despede-se do garçom com um sorriso. De quando, em quando, suas novas imagens da cidade que não vê há quase oito anos confundem-se com as lembranças recentes, de países mais ou menos próximos. Serenamente, em momentos, interrompe a conversa, pega o violão e canta, finalizando invariavelmente num tom modesto e natural: “Você gosta? Gostou realmente?”. Entre o céu do papa da bossa nova e o dia-a-dia simples, quase terra-a-terra, do cantor e compositor João Gilberto existem bem menos nuvens do que se possa imaginar.Certa vez ele teria provocado o suicídio em um gato, trancado dentro do seu apartamento. Depois de horas e horas da mesma música ao violão, o gato teria pulado pela janela. João Gilberto soube dessa história no México, pela cantora Leni Andrade, numa roda de amigos mexicanos. Desculpou-se, constrangido: “No pasa nada. En Brasil nosotros, somos así, nos gusta jugar”. Outros casos, como o de um telefonema internacional com Caymmi respondido com pequenas batidas de lápis no aparelho (duas significando sim, uma significando não), não chegam a aborrecê-lo, mas também não o estusiasmam. Por causa deles, às vezes ganha fama de profissional irresponsável: em Guadalajara, depois de perder o avião que o levaria para um show, alugou uma pequena avioneta, tentando cumprir os horários, mas, quando chegou, sua apresentação tinha sido cancelada, porque pensavam que ele não aparecesse mais.
Em suas primeiras semanas no Brasil, foi um profissional discreto mais atento. Assinou por seis exibições em seis meses no programa Som Livre Exportação. Músicas novas? Compôs uma valsa alegre no México, ainda sem nome e letra (“Pode servir de ligação entre um número e outro do show. Já pensou? Todo mundo cantando, fazendo coro”). Além disso, visitou amigos, passeou pela cidade e procurou replantar suas raízes, preocupado em oferecer bons frutos ao público que espera sempre por novidades com pouca paciência.
João, você…
Você vai ligar o gravador? Olha, não ligue, não. Vou lhe explicar por quê. Eu preferia que ao invés de entrevista você fizesse uma reportagem. Sabe por quê? Ih, rapaz. Sabe que muitas entrevistas que eu dei, me arrependi do que tinha falado? Eu mudo muito de idéia. As coisas mudam muito, a música, os lugares… Então eu preferia que você fizesse uma reportagem, quer dizer, escrevesse o que achou de mim, da nossa conversa. Aí, a coisa fica mais certa, mais exata: eu estou sendo observado assim, num determinado lugar. E eu acho que o público fica mais informado.
Depois dessas frases, João Gilberto fica um pouco em silêncio, como que examinando no ar o que tinha dito. Sua preocupação com a valorização das palavras combina com seu comportamento musical enxuto, quase ascético. Parece sempre envolvido numa obstinada e paciente procura da perfeição e da simplicidade. Um de seus mais fiéis retratistas musicais, o crítico John Wilson, do New York Times, captou com rara felicidade esse clima que rodeia João e sua arte: num artigo elogioso, sobre uma apresentação do cantor em Nova Iorque, usou as palavras do próprio João Gilberto: “Talvez eu queria voltar aos tempos da minha infância. Depois dessa época, aprendi muitas coisas que aparecem em minha música. Hoje, vou me refinando, purificando minha música até que consiga atingir a verdade mais simples. Como quando eu era criança”. Este delicado trabalho, quando apresentado, também exige uma determinada participação do espectador. João Gilberto precisa de silêncio e não raro recusa-se a tocar em boates, porque sabe que este público geralmente não dá tanta importância à música.
– Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desenho limpo da música.
João faz um gesto e silencia por instantes. Espera que o ruído longínquo de um automóvel desapareça. Cuidadosamente, pega o violão, toca em algumas cordas: o som isolado vibra por todo o apartamento. Ele sorri, vitorioso.
Esta depuração, este aperfeiçoamento de som está presente em seu último elepê, gravado no México?
Isso é uma coisa que eu ainda não sei dizer. O elepê do México foi mais um disco de amizade, um disco que fiz com muito carinho. Ele fala das coisas e das pessoas do México. Foi feito por um produtor meu amigo, e o arranjador foi Oscar Castro Neves, com que eu gostaria de gravar outra vez. Ele foi sobretudo uma necessidade que tive de provar a mim mesmo, depois dos problemas que tive com a voz e com a mão, de que podia voltar a gravar. Mas fazer um disco mesmo, com continuidade, dentro daqueles que fiz no início da minha carreira, isso só no Brasil. Só tendo recebido todas aquelas informações daqui, da rua, do carnaval, sentindo o pessoa, sofrendo as influências perto das minhas raízes.
Por outro lado, João não sabe dizer com certeza por que se afastou tanto tempo dessas raízes. Vontade de ir, preguiça de voltar, uma experiência diferente, e sem dúvida um enriquecimento pessoal muito grande. Ele acompanhou de perto as idas e vindas da bossa nova no exterior, suas duas vitórias e seu fracasso final.
Em 1962, foi convidado justamente com Tom Jobim e Vinicius de Moraes para exibir-se no Carnegie Hall. Na famosa apresentação da bossa nova ao público americano, porém, compareceram mais de dez artistas, que se apresentaram desordenadamente no palco (“Foi uma coisa muito errada. Aquele público vê todo dia Ella Fitzgerald, Segóvia, eles conhecem”). O resultado foi um primeiro revés da música brasileira que mereceu algumas críticas regulares e um sonoro “Bossa Nova Go Home”, do mesmo John Wilson do New York Times. “A sensação que eu tive”, conta João, “foi que não tinha ficado nada depois da festa. Nem os copos no chão, ou as cinzas no tapete.”
João tinha sido convidado para gravar seu primeiro elepê com Stan Getz (“Foi quase todo gravado em uma noite, os estúdios de lá vivem lotados”) e o destino do disco, depois do fracasso do Carnegie Hall, acabou sendo os porões da gravadora Verve. “Um lugar onde eles põe os discos em que não acreditam comercialmente. Só quando falha um lançamento é que eles editam”. Pouco depois, João partia para uma temporada em algumas cidades da Europa, e embarcou sem esperança de ver lançado seu disco. Ao mesmo tempo, se agravava um problema muscular que quase o impedia de dedilhar o violão com a mão direita. Gastou muito, consultando vários médicos da Europa, e voltou ao EUA, depois de um ano, sem dinheiro e disposto a se desfazer de todos os seus direitos, entre composições e gravações, por 5 mil dólares (25 mil cruzeiros).
– Quis mesmo vender minha participação no elepê Getz/Gilberto para a Verve por mil dólares, mas o disco ainda estava no porão e eles não acreditavam na bossa nova. Apesar das dificuldades, resolvi continuar nos Estados Unidos. Eu pensava que a qualquer momento aqueles músicos, um deles o John Lewis, do Modern Jazz Quartet, ou o pianista Gary Mc Farland, ou o arranjador Gil Evans poderiam precisar de um músico brasileiro, para saber como era o Brasil, a nossa música – afinal ela não era tão ruim assim e eu estava lá.
E o que você sentia nessa época, quando se apresentava?
Eu sentia que tinha que corresponder. Pedia a Deus que me libertasse de todos os problemas, que me fizesse bem descontraído, para que a música passasse por mim sem encontrar barreiras. Que eu fosse apenas um veículo. Queria que o público visse ali não o João Gilberto, mas o Brasil; que eles sentissem, a partir de mim, tudo que eu trazia de experiências vividas. Eu queria ser acima de tudo, naquele momento, um brasileiro.
Repentinamente, porém, as coisas começaram a mudar. Por insistência do produtor Creed Taylor, que sempre acreditou na gravação que fez com João Gilberto, Stan Getz e Astrud, mulher de João na época, o elepê foi finalmente lançado.
E o sucesso começou. Várias revistas e jornais se interessaram pelo disco e começaram a divulgá-lo e ele acabou entrando na parada de sucesso. Em 1964, foi um dos vinte e cinco elepês, mais vendidos do ano nos EUA e, em 1965, classificou-se entre os quinze primeiros discos de ouro – 1 milhão de cópias vendidas. João usou boa parte do dinheiro no tratamento da mão, que acabou sendo curada pelo médico John Utereker e seus auxiliares Guilholm Bloch e Saul Goldgfarb dico John Utereker e seus auxiliares Guilholm Bloch e Saul Goldfarb – nomes que ele colocou no título de uma música, “muito ruim, ainda em cima da emoção”. Na verdade, o espasmo muscular – uma espécie de contração normal para quem, como João, às vezes toca violão seis horas seguidas – era também mais uma consequência de seus métodos rigorosos. “Sentia a dor e vinha o desespero de não poder mais dedilhar o violão e aí me empenhava mais, tentando ver se passava a dificuldade.”
Dos prêmios que recebeu com o elepê, não gosta de falar. “Tenho até vergonha. Dos seis Grammys (espécie de Oscar do disco) que o elepê ganhou, me couberam pessoalmente dois, como intérprete e violinista, mas já nem me lembro onde estão. A última vez que vi uma das estatuetas, por sinal muito bonitas, ela estava sem cabeça, jogada num armário.” A estas vitórias do despreocupado João correspondeu também a fase de fastígio da bossa nos EUA. Além do sucesso de músicos americanos que deturpavam e vulgarizavam a bossa nova, tentando arremedar seu ritmo, ele lembra da febre do rótulo bossa nova e da batida que virou propaganda “de tudo quanto foi produto lançado no mercado americano”.
Esta repercussão desfavorável, no entanto, não chegou a abalar o prestígio pessoal de João Gilberto, que desde 1965 fica todo ano entre os violonistas mais votados no plebiscito americano da revista Playboy. Além do virtuosismo do músico, de seu cuidado profissional e do indiscutível papel de renovador da música brasileira, João Gilberto tem outros trunfos talvez ainda mais fortes. Menos que na batida da bateria exagerada, pouco correta, usada depois pelos americanos, seu irresistível balanço repousa em sua própria concepção musical.
Na década de 50, quando começou a se apresentar no conjunto vocal Namorados da Lua, João Gilberto formava também suas primeiras dúvidas. Achava quase tudo que se fazia na música brasileira, “aquelas orquestronas, uma coisa muito feia”. Com o arranjador do grupo, Milton Alexandre da Silva, aprendeu algumas harmonizações novas, a maioria delas ainda importada dos conjuntos vocais americanos.
– Eu estava então muito descontente com aqueles vibratos dos cantores – Mariiina moreeena Mariiiina você se pintooooou – e achava que não era nada disso. Acabei me desligando também do conjunto e passei a trabalhar sozinho. Uma das músicas que despertaram, que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi Rosa Morena, do Caymmi. Sentia que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música. Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos e ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a estrutura da música, sem precisar alterar nada. Outra coisa com que eu não concordava era as mudanças que os cantores faziam em algumas palavras, fazendo o acento ritmo cair em cima delas para criar um balanço maior. Eu acho que as palavras deveriam ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando. Qualquer mudança acaba alterando o que o letrista quis dizer com seus versos. Outra vantagem dessa preocupação é que, às vezes, você pode adiantar um pouco a frase e fazer às vezes com que caibam duas ou mais num compasso fixo. Com isso, pode-se criar uma rima de ritmo. Uma frase musical rima com a outra sem que a música seja artificialmente alterada.
Esta concepção, aparentemente simples, exige muito do cantor. João explica que é necessário abandonar os vícios normais de construção de frase para chegar à espontaneidade.
– Geralmente, o cantor se preocupa com a voz emitida da garganta e sobe muito, deixando o violão – ou qualquer outro instrumento de acompanhamento – falando sozinho lá embaixo. É preciso que a voz encaixe no violão com a precisão de um golpe de caratê, e a letra não perca sua coerência poética.
Tal concentração exige também uma preparação física. Durante algum tempo – pouco antes de vir ao Brasil por seis meses em 1968 – João Gilberto estava preocupado com sua voz, achando que não conseguiria a tranquilidade necessária à emissão certa. “O problema é que eu concentrava todo o esforço na garganta e ela acabava não funcionando. Fiz umas consultas com o Pedro Bloch e com ele aprendi muita coisa que inclusive é possível usar na música. Ele me ensinou a usar a respiração de uma forma que ela não interferisse na pronúncia das palavras. Cada letra, inclusive, conforme pronunciada, usando mais a garganta ou o nariz, pode dar um efeito diferente dentro da música”.
Além dessa preocupação com a interpretação, como é feita a escolha das músicas? Por que sempre aparecem composições antigas?
Não tenho muita preocupação com a escolha do repertório. Algumas músicas eu estou tocando na época, outras – as antigas – de repente surgem assim boiando na memória. Acontece que vivi com intensidade esse momento anterior da música brasileira e conheci e admirava muita gente.
Em São Paulo, costumava ir à casa do colecionador de discos Miécio Caffé e ficava até de madrugada ouvindo velhos 78 rotações do cantor Orlando Silva. “Ele foi o maior cantor do mundo em sua época. Sabia falar as frases com naturalidade e não exagerava em nenhum ponto da música”. João Gilberto faz uma pausa, pega o violão e canta imitando a suavidade de Orlando Silva: “Lábios que eu beijei/ mãos que eu afaguei”. Outras lembranças levam João a Nélson Cavaquinho (cantarola a música Rugas) e Geraldo Pereira. Certa vez passava por uma das ruas da Lapa, quando o compositor Geraldo Pereira, que o conhecia, chamou-o para dentro de um bar.
– O Geraldo era aquele malandro alto, forte. Mas não era daqueles tipos agressivos: “Que é que há? Como é que é?”. Era um malandro bem suave, falava manso, tinha aquela ginga certa de quem não tem pressa e sabe das coisas. Mas nem por isso ele perdia o velho estilo dos valentes da Lapa. Enquanto a gente estava tomando alguma coisa no bar, passaram alguns sujeitos que ficaram olhando para nós. Ele reagiu logo: “Que é que vocês estão olhando? Isto aqui é gente minha”.
Além de amigo, Geraldo Pereira foi também uma espécie de descoberta de João Gilberto. Em seu elepê João Gilberto, João gravou a música Bolinha de Papel, um samba leve e cheio de ricas divisões de ritmo que chamou a atenção dos novos músicos para o veterano compositor. “Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador”, comenta João.
Nos elepês de João Gilberto – que ele prefere não chamar de bossa nova, “era apenas a minha maneira de tocar” – coexistem pacificamente autores de várias fases da música brasileira. “Na verdade”, diz ele, “o problema de ritmo é muito relativo”. Pega novamente o violão e exemplifica. Toca a música O Sapo, de João Donato, gravado em seu disco do México, num ritmo próximo do samba, em acordes em seu disco do México, num ritmo próximo do samba, em acordes pausados numa cadência neutra quase perceptível. “Viu? Desta vez eu esperei e o samba não entrou na música.” Todos os ritmos, segundo João, têm pontos básicos em comum e é muito fácil transformá-los conforme o momento ou as sequências do violão. Mesmo assim há quem situe sua obra num plano que teoricamente seria seguido ou continuado por Caetano Veloso.
Você se identifica de alguma maneira com o Caetano?
Não sei bem. Eu vejo mais o Caetano como um pensamento. Sabe, para mim, o Caetano Veloso é um pensamento. Acho que existe alguma identidade, porque no fundo o Caetano em música procura o mesmo que eu. Tem as mesmas preocupações.
Que ligação a sua música, como a dele, tem com a Bahia? Você foi criado em Juazeiro, não é?
Morei lá mais ou menos até os onze anos…( João pára, põe a mão na boca e abre um sorriso como se estivesse lembrando). Já sei. Você está querendo que eu conte a minha vida, não é?
É isso mesmo.
Eu pediria a você que não contasse. Sabe por quê? É que eu ainda não cheguei direito. Preciso tomar mais contato com o ambiente, sentir como está a música brasileira. Como estão as coisas, o público. Tenho receio de ocupar espaço demais. Quero sentir o meu lugar dentro destas coisas.
Mas você já tem algum plano nesse sentido?
Tenho sim. O que eu quero fazer é pegar o Tom Jobim pelo braço e sair com ele fazendo shows em faculdades, sentindo a repercussão, conversando com o pessoal. Mas, por favor, não publique isso que o Tom é capaz de ler, pegar um avião e ir se esconder no Japão.
(Veja, 12/05/71)