Verso & Prosa

Novos empregos?

Postado por Simão Pessoa

Por Yuval Noah Harari

A perda de muitos trabalhos tradicionais, da arte aos serviços de saúde, será parcialmente compensada pela criação de novos trabalhos humanos. Um clínico geral que diagnostica doenças conhecidas e administra tratamentos de rotina provavelmente será substituído pela IA médica. Mas, justamente por causa disso, haverá muito mais dinheiro para pagar médicos e assistentes de laboratório humanos que façam pesquisas inovadoras e desenvolvam novos medicamentos ou procedimentos cirúrgicos.

A IA poderia ajudar a criar novos empregos humanos de outra maneira. Em vez de os humanos competirem com a IA, poderiam concentrar-se nos serviços à IA e na sua alavancagem. Por exemplo, a substituição de pilotos humanos por drones eliminou alguns empregos, mas criou muitas oportunidades novas em manutenção, controle remoto, análise de dados e segurança cibernética.

As Forças Armadas dos Estados Unidos precisam de trinta pessoas para operar cada drone Predator ou Reaper sobrevoando a Síria, enquanto a análise das informações coletadas por ele ocupa pelo menos mais oitenta pessoas. Em 2015 a Força Aérea dos Estados Unidos não contava com uma quantidade suficiente de humanos treinados para preencher todas essas posições, e enfrentava, ironicamente, uma crise para tripular suas aeronaves não tripuladas.

Se for assim, é possível que o mercado de trabalho em 2050 se caracterize pela cooperação, e não pela competição, entre humanos e IA. Em campos que vão do policiamento à atividade bancária, equipes formadas por humanos e IA poderiam superar o desempenho tanto de humanos quanto de computadores.

Depois que o programa de jogar xadrez da IBM Deep Blue derrotou Gary Kasparov em 1997, os humanos não pararam de jogar xadrez. Ao contrário, graças a treinadores de IA, mestres do xadrez humanos ficaram ainda melhores, e ao menos por um período equipes formadas por humanos e IA, conhecidas como “centauros”, venceram no xadrez tanto humanos como computadores. A IA poderia, da mesma forma, ajudar a formar os melhores detetives, investidores e soldados da história.

O problema com todos esses novos empregos, no entanto, é que eles provavelmente exigirão altos níveis de especialização, e não resolverão, portanto, os problemas dos trabalhadores não qualificados que estão desempregados. A criação de novos empregos humanos pode mostrar-se mais fácil do que retreinar humanos para preencher esses empregos. Em ciclos de automação anteriores, as pessoas podiam passar de um trabalho padronizado de baixa qualificação a outro com facilidade.

Em 1920, um trabalhador agrícola dispensado devido à mecanização da agricultura era capaz de achar um novo emprego numa fábrica de tratores. Em 1980, um operário de fábrica desempregado poderia trabalhar como caixa num supermercado. Essas mudanças de ocupação eram possíveis porque a mudança do campo para a fábrica e da fábrica para o supermercado só exigiam um retreinamento limitado.

Em 2050, porém, um caixa ou um operário da indústria têxtil que perder seu emprego para um robô dificilmente estará apto a começar a trabalhar como oncologista, como operador de drone ou como parte de uma equipe humanos-IA num banco. Não terão as habilidades necessárias.

Na Primeira Guerra Mundial fazia sentido enviar milhões de recrutas despreparados para carregar metralhadoras e morrer aos milhares. Suas habilidades individuais tinham pouca importância. Hoje, apesar da escassez de operadores de drone e de analistas de dados, a Força Aérea dos Estados Unidos não está disposta a preencher essas lacunas com ex-funcionários do Walmart. Não quer correr o risco de um recruta inexperiente confundir uma festa de casamento no Afeganistão com uma conferência de alto nível do Talibã.

Como consequência, apesar do aparecimento de muitos novos empregos humanos, poderíamos assim mesmo testemunhar o surgimento de uma nova classe de “inúteis”. Poderíamos de fato ficar com o que há de pior nos dois mundos, sofrendo ao mesmo tempo de altos níveis de desemprego e de escassez de trabalho especializado.

Muita gente poderia compartilhar do destino não dos condutores de carroça do século XIX – que passaram a ser taxistas –, mas dos cavalos do século XIX, que foram progressivamente expulsos do mercado de trabalho.

Além disso, nenhum dos empregos humanos que sobrarem estará livre da ameaça da automação, porque o aprendizado de máquina e a robótica continuarão a se aprimorar. Um caixa do Walmart de quarenta anos de idade desempregado que graças a esforços sobre-humanos consegue se reinventar como piloto de drone poderá ter de se reinventar novamente dez anos depois, quando a pilotagem de drones poderá também ter sido automatizada.

Essa volatilidade também dificultará a organização de sindicatos e a garantia de direitos trabalhistas. Se hoje muitos novos empregos em economias avançadas já envolvem trabalho temporário sem proteção, trabalho de freelancer e tarefas isoladas realizadas só uma vez, como sindicalizar uma profissão que prolifera e desaparece em uma década?

Da mesma forma, equipes centauros formadas por humanos e computadores provavelmente serão caracterizadas por um constante cabo de guerra entre humanos e computadores, em vez de se acomodarem numa parceria duradoura. Equipes formadas apenas por humanos – como a de Sherlock Holmes e dr. Watson – normalmente desenvolvem hierarquias e rotinas permanentes que duram décadas.

Mas um detetive humano que fizer uma equipe com o sistema Watson de computadores da IBM (que se tornou famoso depois de vencer o programa de perguntas Jeopardy!) vai descobrir que toda rotina é um convite à ruptura, e toda hierarquia um convite à revolução. O parceiro de ontem pode se metamorfosear no superintendente de amanhã, e todos os protocolos e manuais terão de ser reescritos a cada ano.

Um olhar mais atento ao mundo do xadrez poderia indicar para onde as coisas estão se dirigindo no longo prazo. É verdade que durante vários anos após a derrota de Kasparov para o Deep Blue a cooperação humano-computador floresceu no xadrez. Mas em anos recentes os computadores ficaram tão bons no xadrez que seus colaboradores humanos perderam o valor, e logo poderão se tornar totalmente irrelevantes.

Em 7 de dezembro de 2017 um marco crucial foi atingido não quando um computador derrotou um humano no xadrez – isso não era novidade –, mas quando o programa AlphaZero, do Google, derrotou o programa Stockfish 8.

Stockfish 8 foi o computador campeão mundial de xadrez de 2016. Tinha acesso a séculos de experiência humana acumulada no xadrez, bem como a décadas de experiências de computadores. Era capaz de calcular 70 milhões de posições por segundo.

Em contraste, o AlphaZero calculava apenas 80 mil posições por segundo, e seus criadores humanos jamais lhe ensinaram estratégias de xadrez – nem mesmo aberturas ordinárias. Em vez disso, o AlphaZero jogava contra si mesmo, utilizando os mais recentes princípios de autoaprendizado de máquina.

Não obstante, em cem partidas contra o Stockfish 8, o AlphaZero venceu 28 e empatou 72. Não perdeu nenhuma. Como o AlphaZero não tinha aprendido nada de qualquer humano, muitos dos movimentos e estratégias vencedores pareciam não convencionais aos olhos humanos. Agora podem ser considerados criativos, se não simplesmente geniais.

Dá para imaginar quanto tempo o AlphaZero levou para aprender xadrez do zero, preparar-se para o jogo contra o Stockfish e desenvolver seus instintos de gênio? Quatro horas. Não é um erro de digitação. Durante séculos, o xadrez foi considerado uma das glórias supremas da inteligência humana. O AlphaZero passou da ignorância total à maestria criativa em quatro horas, sem a ajuda de qualquer orientação humana.

O AlphaZero não é o único software imaginativo que existe. Agora, muitos programas vencem rotineiramente jogadores humanos de xadrez não só em capacidade de cálculo, mas até mesmo em “criatividade”. Em torneios de xadrez só para humanos, os juízes estão sempre de olho em jogadores que tentam trapacear com a ajuda de computadores.

Um dos modos de pegar essas trapaças é monitorar o nível de originalidade demonstrado pelos jogadores. Se fizerem um movimento muito criativo no tabuleiro, os juízes em geral vão suspeitar de que não pode ser um movimento humano – deve ser um movimento feito por um computador.

Pelo menos no xadrez, a criatividade já é marca registrada de computadores, e não de humanos! Se o xadrez é o nosso canário das minas de carvão, estamos devidamente avisados que o canário está morrendo. O que está ocorrendo hoje com equipes de jogadores de xadrez formadas por humanos e IA poderia ocorrer no futuro com equipes humanos-IA em policiamento, medicina e atividade bancária.

Consequentemente, a criação de novos empregos e o retreinamento de pessoas para ocupá-los serão um processo recorrente. A revolução da IA não será um único divisor de águas após o qual o mercado de trabalho vai se acomodar num novo equilíbrio. Será, sim, uma torrente de rupturas cada vez maiores.

Já hoje poucos empregados esperam permanecer no mesmo emprego por toda a vida. Em 2050 não apenas a ideia de “um emprego para a vida inteira” mas até mesmo a ideia de “uma profissão para a vida inteira” parecerão antidiluvianas.

Mesmo se fosse possível inventar novos empregos e retreinar a força de trabalho constantemente, cabe a nós perguntar se um humano mediano terá a energia e a resistência necessárias para uma vida de tantas mudanças. Mudanças são sempre estressantes, e o mundo frenético do início do século XXI gerou uma epidemia global de estresse.

Será que as pessoas serão capazes de lidar com a volatilidade do mercado de trabalho e das carreiras individuais? Provavelmente vamos precisar de técnicas de redução de estresse ainda mais eficazes – desde medicamentos, passando por psicoterapia e meditação – para evitar que a mente do Sapiens entre em colapso.

Uma classe “inútil” pode surgir em 2050 devido não apenas à falta absoluta de emprego ou de educação adequada, mas também devido à falta de energia mental.

A maior parte disso é apenas especulação, claro. No momento em que escrevo – início de 2018 –, a automação acabou com muitos setores da economia, mas não resultou em desemprego massivo. Na verdade, em muitos países, como os Estados Unidos, o nível de desemprego é um dos mais baixos da história.

Ninguém sabe com certeza qual impacto o aprendizado de máquina e a automação terão em diversas profissões, e é dificílimo estimar o cronograma dos desenvolvimentos mais importantes, em especial quando dependem tanto de decisões políticas e tradições culturais quanto de inovações puramente tecnológicas.

Assim, mesmo depois que veículos autodirigidos provarem ser mais seguros e mais baratos do que motoristas humanos, políticos e consumidores poderão impedir essa mudança durante anos, talvez décadas.

Contudo, não podemos ser complacentes. É perigoso simplesmente supor que surgirão novos empregos para compensar quaisquer perdas. O fato de isso ter acontecido em ciclos anteriores de automação não é garantia nenhuma de que vai acontecer de novo nas condições muito diferentes do século XXI.

As potenciais rupturas social e política são tão alarmantes que, mesmo que a probabilidade de desemprego sistêmico em massa seja baixa, devemos levá-la a sério.

No século XIX a Revolução Industrial criou novas condições e problemas com os quais nenhum dos modelos sociais, econômicos e políticos existentes era capaz de lidar. O feudalismo, o monarquismo e as religiões tradicionais não estavam adaptados para administrar metrópoles industriais, o êxodo de milhões de trabalhadores ou a natureza instável da economia moderna.

Consequentemente, o gênero humano teve de desenvolver modelos totalmente novos – democracias liberais, ditaduras comunistas e regimes fascistas – e foi preciso mais de um século de guerras e revoluções terríveis para pôr esses modelos à prova, separar o joio do trigo e implementar as melhores soluções.

O trabalho infantil nas minas de carvão dickensianas, a Primeira Guerra Mundial e a Grande Fome Ucraniana de 1932-3 representam apenas uma pequena parte do tributo pago pelo gênero humano por esse aprendizado.

No século XXI, o desafio apresentado ao gênero humano pela tecnologia da informação e pela biotecnologia é indubitavelmente muito maior do que o desafio que representaram, em época anterior, os motores a vapor, as ferrovias e a eletricidade. E, considerando o imenso poder destrutivo de nossa civilização, não podemos mais nos dar ao luxo de ter mais modelos fracassados, guerras mundiais e revoluções sangrentas.

Desta vez, os modelos fracassados podem resultar em guerras nucleares, monstruosidades geradas pela engenharia genética e um colapso completo da biosfera. Portanto, temos de fazer melhor do que fizemos ao enfrentar a Revolução Industrial.

(Do livro “21 lições para o século 21”. Lição 2: “Trabalho”)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment