Por Moacyr Luz
Existe uma máxima – de quem é, não faço a mínima ideia –, afirmando que o lar é o seu segundo bar. Poderia ser: o lar é o meu primeiro bar, visto que tenho uma coleção invejável de cachaças mineiras e de outras plagas. Mas como o assunto é butiquim, eu busco o gelo, quer dizer, a deixa, e tento entender essa relação familiar que o bar exerce sobre muitos.
O sujeito vai transformando as pessoas do bar em parentes definitivos, preocupa-se com o vermelho no cheque do outro, com a empregada do amigo íntimo que está grávida do porteiro e quer morar no quartinho dos fundos e, em casos extremos, organiza o livro que vai listar doações para a compra das pétalas, da coroa e do caixão de quem foi dessa para melhor, fulano que sempre frequentou o ambiente.
Já presenciei cenas em que o respeito ao lugar onde o dito sentava garantiu a preservação da cadeira e instalação de uma placa o dizendo: “Este local está proibido de ser ocupado pelos próximos dez anos.” Fora a atenção especial à viúva toda vez que ela foi comprar refrigerante de dois litros, gelado.
Dei quase uma volta completa na aléia para preservar os vivos. Mas vamos seguir.
O bar afixou na parede o telefone da Defesa Civil para os casos de chuvas torrenciais, marquise derrubada e outras possibilidades normais de butiquim mal conservado, já que a féria vem há muito cruzando o oceano.
Mas Ernesto – eterno candidato derrotado a vereador e responsável por incontáveis telefonemas para podar árvores, resgatar gatos no tronco, encontrar a chave perdida em bueiro e outras dificuldades cotidianas – avisou, bebendo um cafezinho no balcão no copo americano, que a Defesa Civil também atende a casos médicos e o escambau.
– Deixa bem à mostra! – gritou um alcoólico assumido, achando se o mais lúcido dos fariseus.
Não durou uma semana. O grupo estava reunido em torno de uma travessa de peito assado, só na gordura, e um pedia a abrideira – “Genebra que é bom pro estômago”, “pede Underberg”, “pede bagaceira que tá com bom preço…” –, quando um assíduo botou a mão no peito dele.
Era falta de ar. Engasgou, tá na cara…. Bateram nas costas dele, mas o cara não melhorava. Ernesto, que organizava um abaixo-assinado pedindo a volta de um gari antigo, viu a cena e de cara acionou o 193, com requintes de histeria. E não demorou para, cantando pneus e sirenes, a ambulância manobrar na fachada do lugar.
A cena foi dantesca: os enfermeiros saltaram já com a maca aberta, mas hesitaram no frente a frente com a mesa, os comensais e o peito assado:
– Chamem mais ambulâncias que tá todo mundo morrendo!!
Só sobrou do atestado um ex-bêbado, atual faz-tudo da rua, sujeito fiel.
Papo reto com Jards Macalé
Outro fundamental artista brasileiro. Formamos um grupo chamado Dobrando a Carioca, que rendeu mais de oitenta shows. E aqui vale uma confidência: o sujeito é o mais pontual da temporada. Quando não havia pressa de voltar, ficávamos até o último voo para encontrar um bar onde eu considerasse que a cerveja estivesse gelada. Nessas tardes à toa, surgiu a ideia de gravar um disco sobre Moreira da Silva, a cara do Rio. Ficou muito bonito.
Você acharia importante ter ambulâncias iguais às patamos fazendo ronda nos butiquins?
Uma ronda constante, a serviço dos párias, dos bêbados e dos excluídos. Confesso que tenho uma amiga em Penedo, chefe das ambulâncias do local, a quem já pedi: “Me bota numa ambulância, me bota numa ambulância!”
O sujeito está contigo no butiquim e começa a passar mal: você termina o chope ou resolve logo?
Primeiro, naturalmente, atendo a pessoa. Sendo mulher, bonita ou feia, faço respiração boca-a-boca, disposto até a prestar os socorros posteriores.
Você confia mais no seu santo padroeiro ou na Defesa Civil na hora de pedir uma sardinha no balcão?
Pergunta difícil. Prefiro rezar pro santo padroeiro: “Me salve dessa sardinha!”
Acha possível o sujeito se apaixonar pela enfermeira no trajeto para o hospital?
Eu já sou apaixonado por enfermeiras. A trajetória serviria apenas para a consumação dessa paixão.
Você está dentro da ambulância e, então, começa a melhorar… Pensa em nunca mais beber ou fica olhando da janelinha seu bar favorito, que vai ficando longe?
Eu penso no bar, nos companheitos, mas confio que haverá o dia seguinte.
E sentar no bar só com água mineral, vale a pena?
Algumas vezes, fico na água, mas se a companhia for de um sujeito como você, meu amigo, é impossível!
Você sabe de algum milagre pra curar ressaca?
Eu ponho a cabeça dentro da privada e puxo a válvula.
Dentro da ambulância, a pressão lá em cima, mesmo assim você diria para o motorista que a pressa é inimiga da perfeição?
Meu grande parceiro musical, Moreira da Silva, começou a vida como motorista de ambulância. Ele me ensinou tudo sobre essa prática, essa correria.
Seguindo a letra, “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima” é a regra de um apaixonado por birosca quando pensa em desistir?
Nunca desisto, porque sou desses sujeitos que levantam a poeira e sacodem por cima.
Para fechar, uma pergunta pessoal: em algum delírio você já confundiu o Moreira da Silva com um médico na hora do sufoco?
Já. Quando fui preso e o delegado mandou recolher meus óculos e me deter. Pedi socorro ao Moreira, que me respondeu: “Acho que dessa vez você se estrepou, mas vou contigo.”