Setembro de 1986. Depois de duas semanas fazendo shows diários em Maués sem ver a cor do dinheiro, o cantor e compositor Carlos Castro resolve fazer um balanço da situação desesperadora e convoca seu parceiro de excursão, o também cantor e compositor Antonio Pereira, para discutir o assunto.
Os dois dividiam uma pequena casa cedida pelo empresário Arisilvio Costa, que os havia contratado em Manaus para uma série de shows no baixo-Amazonas.
Deviam ser umas 11 horas da noite. Cada um numa rede, um punho de cada rede no mesmo armador, uma rede pra lá, outra pra cá. Carlinhos se embalando, Pereira quase cochilando.
– Pereira, eu acho que o Arisilvio quer sacanear com a gente! – vociferou Carlos Castro, com sua voz de trovão.
Pereira fez que não ouviu. Carlos continuou:
– Olha só a merda de casa que ele arrumou pra gente! Está cheia de mofo, a tinta descascando, o banheiro não funciona, não tem geladeira, o quintal está cheio de lixo… Não sei não, mas acho que tem até cobra aí nessa merda… Daqui a pouco a gente está dormindo, uma cobra entra aqui dentro, morde a gente e a gente vai se foder… Aquele Arisilvio é um filho da puta!…
Pereira calado.
Dali a uns cinco minutos, Carlinhos volta à carga, com sua voz ficando cada vez mais grave:
– Pereira?… Pereira?…
– Que é, Carlinhos? – respondeu Pereira, louco pra continuar dormindo.
– Sabe essas meninas que andam contigo pra cima e pra baixo?… Os boyzinhos daqui de Maués comem elas direto… Olha, bicho, eu sei que você pensa que está abafando, que só você é o dono do pedaço… Porra nenhuma!… Os boyzinhos todos comem elas direto… São tudo umas pistoleiras… Tudo umas vagabundas… Não valem nada!… Tu ainda ficas andando com elas de otário… Aliás, elas só não dão pra ti… Porque os boyzinho daqui comem elas direto… Tô te dizendo…
Pereira calado.
Dali a uns cinco minutos, Carlinhos volta à carga, com a voz ficando parecida com a de um Barry White enfurecido:
– Pereira?… Pereira?…
– Que é, Carlinhos? – respondeu Pereira, já ficando mordido…
– Eu acho que esse pessoal aqui de Maués tem muito preconceito contra nós dois… Eu noto isso pelo jeito como eles olham pra gente quando a gente está cantando nos barzinhos ou quando a gente anda pelas ruas… A população inteira olha pra gente meio atravessado… Você ainda não notou não?…
– Porra, Carlinhos, deixa de papo aranha e vai dormir! – insistiu Pereira.
Dali a uns cinco minutos, Carlinhos volta à carga, dessa vez com a voz de um Billy Paul meio afônico:
– Pereira?… Pereira?…
– Que é, Carlinhos? – respondeu Pereira, já injuriado…
– Sabe por que esse pessoal tem preconceito com a gente e ficam nos olhando atravessado?… Eu sei, porra, eu sei!… Comigo, porque eu sou preto!… E contigo, porque tu és maconheiro!…
Ouvindo aquilo, Pereira teve um acesso de riso tão disgramado que o armador da rede caiu e os dois se estatelaram no chão.
Pereira foi passar o resto da noite bebendo numa birosca em frente da residência.
No dia seguinte, os dois embarcaram de volta pra Manaus. Nunca mais Pereira quis excursionar ao lado de Carlos Castro.