Por Marcos de Vasconcellos
Carlos Augusto Camargo, arquiteto, foi visitar um amigo e, diante da insistência da mãe, ficou para jantar, mesmo contrariado. Quem não conhece mãe de amigo, que é obcecada para agradar? Mas não é comum, por cortesia. É derramamento de agrado, catadupa de atenções, cachoeiras de Jocastas. No ensarilhar de talheres:
– Foi bem servido. Carlos Augusto?
– Fui, sim senhora. Um esplêndido jantar.
– Tem certeza que não quer mais um peitinho de frango?
– Não senhora. Muitíssimo obrigado. Estou repleto.
– Uma saladinha?
– Não, D. Zilu. Realmente comi como um abade. Não me cabe uma isca.
– Não me faças cerimônia, hein! A casa é sua como se fosse de um filho. Aqui é assim. Tudo é de todos. Vamos, coma mais um franguinho! Você está muito magrinho!
O filho tenta acudi-lo:
– Mamãe. O Camargo não quer mesmo.
A mãe atropeladora, amuada, manda tirar a mesa. A contragosto naturalmente; gostaria que o Camargo lhe lambesse as migalhas.
Sobremesas, preparem-se. Mãe de amigo, as gordotas mais afoitas babam-se por oferecer doces. D. Zilu, então, para exibir-se ao visitante, ativou todos os doces da geladeira, mesmo os da semana passada. O pudim de pão foi remontado às pressas, ganhou calda nova e carapuça de ameixa. E, presidindo a mesa (o destino bate à sua porta): o doce de mamão verde!
Interrompo esta singular narrativa para uma informação necessária. Conheço o Camargo há muitos anos. Fizemos o vestibular juntos, cursamos a faculdade juntos, partilhamos muito tempo o mesmo escritório. É uma pessoa extremamente afável, decerto, pelo que se depreende do diálogo acima reproduzido, jamais ergue a voz, anda invariavelmente de terno, é educadíssimo. Para se ter uma ideia, é um dos raros brasileiros que não usam secretária para chamados telefônicos e marca visita com antecedência.
Duas coisas, porém, transtornam o Camargo. Duas coisas que ele abomina com todas as forças dos nervos, com todo o ardor do coração: jogador que perde pênalti – e exatamente! – doce de mamão verde.
Ninguém sabe porquê, mas suspeita-se de um trauma infantil, como a história do primeiro porre: se foi de gin, diz-se, nunca mais pronuncia-se essa palavra maldita. Tudo, menos doce de mamão verde.
Entra de volta D. Zilu, a boca encharcada de prazer insopitável:
– Um docinho, Carlos Augusto?
– D. Zilu, agradeço muito, mas não costumo comer sobremesa. Vou esperar pelo cafezinho.
Até aquela hora o Camargo não tinha reparado no cardápio rico de doces, à sua frente, entretido que estava, bem à vontade, falando sobre o fim dramático de uma aventura na serra: a morte trágica do gato Pimpão.
- Zilu:
– Um pedacinho de pudim de coco? De pão?
– Não senhora. Obrigado, D. Zilu. Mas aí, o Chaffic propôs uma partida de pingue-pongue. Eu sou fissu…
– Vou botar um pouquinho pra você provar.
– D. Zilu, eu realmente não como sobremesa. Só vou tomar o cafezinho.
– Ora, Carlos Augusto, não seja enjoado, pára como essa cerimônia. Pelo menos um pouquinho de doce de mamão verde. Fiz especialmente para você. Vá.
Camargo fingiu que não ouviu para não ter que acreditar.
– Mas aí, começou a partida. Eu e o Chaffic. Em volta, a criançada brincado com o gato, o Pimpão. O Chaffic joga muito bem e…
– Olha, Carlos Augusto, botei um pouquinho para você.
Camargo ainda tentou apelar, justiça lhe seja feita.
– D. Zilu! Sou diabético!
- Zilu trila o apito:
– Ah, ah, ah, ah, ah, essa é boa! Você é uma bola! Ah, ah, ah, Carlos Augusto! Vá! Experimente só um bocadinho! Não me faça desfeita.
Na frente do Camargo o desgraçado do prato de doce de mamão verde, igual à abominável iguaria servida em sua casa, provavelmente com aquele mamão vindo do sítio de Correas, trazido na mala do carro, colhido fora de tempo, disentérico.
Confusas lembranças de infância somaram-se à matraca que à sua frente ria e empurrava-lhe, goela e moral abaixo, aquela abominação.
Camargo levantou-se, esgazeado, empunhou a colher, segurou o prato com a pasta verde translúcida e deu a primeira colherada. O projétil pegou o pescoço do pato sangrando, natureza morta de Oswaldo Teixeira. A segunda, melou os cristais do lustre cintilante comprado com sacrifício em S. Simon. A terceira, compôs estalactites na alvura do teto recém- pintado e a quarta inutilizou o lorgnon que madame assestara para, horrorizada, acompanhar a melação do jogo, o jogador desvairado.
Esgotada a munição do pratinho, Camargo atacou o paiol, a terrina com o resto do TNT verde. Sobraça o pirex e, com a catapulta de prata na outra mão, vai saindo aos berros, varejando bocados de doce de mamão verde em tudo que encontrava pelo caminho: no Lacoonte de bronze, no espelho de cristal bisotado, na cara de Roberto Carlos, no Graff-Zeppelin, no dó, no dó sustenido, no ré, no fá, no Lello Universal, na Santa Ceia…
– Eu detesto doce de mamão verde! Eu odeio doce de mamão verde! A senhora pega seu doce de mamão verde e enfia no cu!
…colherada no Juscelino dedicado, no Genaro, no Kirmã e foi saindo porta afora. Na rua ainda gritava:
– Velha maluca! Olha aqui o doce de mamão verde!
E arrepanhava as partes, sacudindo-as.
Pra encurtar: secou a terrina, varejou tudo na calçada, deixando atrás de si um rastro verde e inesquecível que vinha desde o campo da batalha principal – onde derrotou as travessas de D. Zilu – ultrapassava a soleira e parava no coração aliviado, na infância restada e nos intestinos vingados.