Novembro de 1979. Recém-chegado do exílio, o antropólogo José Ribamar Bessa Freire mostrou para o Grupo Universitário de Teatro do Amazonas (Gruta) uma peça teatral de um obscuro autor espanhol, que ele havia traduzido e batizado de A Incrível Luta de Peteleco contra o Diabo na Porta do Céu. Os atores do Gruta resolveram encenar a peça, que tinha sido inicialmente escrita para teatro de bonecos.
O renomado Mestre Rafael, um exímio mestre bonequeiro, realizou uma oficina de construção das cabeças dos personagens em papel machê, no tamanho natural, porque os atores iriam se fantasiar de “bonecos vivos”. As atrizes Socorro Papoula e Socorro Andrade foram encarregadas da produção das oito cabeças (índio baniwa, cangaceiro, diabo, feiticeiro, curupira etc.), que eram moldadas em gigantescas cuias ocas.
Produtores e diretores da peça, Guto Rodrigues e Rui Brito convocaram Bernadete Andrade para fazer a cenografia, o piradíssimo Palmes para ser o técnico de som e o performático Grego para atuar como contrarregra. A primeira apresentação da peça seria no Teatro da Aliança Francesa.
Antes disso, os produtores precisavam resolver uma pendenga judicial com o ventríloquo Oscarino Varjão, pai do conhecido boneco Peteleco, que se dizia detentor dos direitos autorais sobre o nome e queria interditar o espetáculo. O ventríloquo perdeu a causa, já que “peteleco” não passa de um sinônimo usual de “pequeno cascudo” e a peça não era destinada ao público infantil.
Na tarde de uma sexta-feira, no dia em que Guto Rodrigues ia levando as “cabeças” dos personagens para a prova final na cabeça dos atores, seu velho fusquinha enguiçou no meio da rua.
O carro foi guinchado até a oficina do Dinaldo, localizada no cruzamento das ruas Ferreira Pena e Barcelos, na Praça 14. O mecânico examinou o carro rapidamente e explicou que a biela do retentor do jiguelê havia estrangulado a ventoinha da parafuseta do cárter. Era necessário dar uns passes no anel hidráulico do carburador.
Guto não entendeu nada, mas intuiu que algo de muito grave havia acontecido. Divaldo garantiu que consertaria o carro no sábado e que Guto viesse apanhar na tarde de segunda-feira. Depois de colocar os documentos do carro no bolso, o produtor e diretor teatral foi embora.
Na verdade, o fusquinha estava apenas com as velas sujas. O esperto Dinaldo consertou o carro na mesma tarde e aproveitou a noite de sexta-feira para se divertir nos points “bregas” da periferia.
Quando entrou na Bola do Coroado, indo na direção do bairro de São José, onde ficava o famoso boteco “Rasga Velha”, Dinaldo deu de cara com uma blitz da Polícia Militar. Como não possuía carteira de habilitação e o carro estava sem os documentos, ele resolveu furar a blitz. Com as sirenes das viaturas ligadas, os meganhas iniciaram uma frenética perseguição, enquanto crivavam o fusquinha de balas.
Divaldo só resolveu parar depois que teve os dois pneus traseiros furados por tiros e o fusquinha quase capotou. Ele foi cercado por cinco viaturas e tirado à força de dentro do carro. Os meganhas começaram a revistar o carro, atrás de armas ou de drogas.
Quando abriram o porta-malas do fusquinha e deram de cara com aquelas oito “cabeças” amontoadas, que iam de índio baniwa a Satanás, os policiais concluíram que haviam colocado as mãos no perigoso assaltante mascarado que vinha aterrorizando a população com seus assaltos espetaculares nas redes de supermercados. Divaldo apanhou mais do que boi ladrão.
Os policiais militares passaram o final de semana tentando enfiar, uma por uma, as “cabeças” dos personagens na cabeça do Divaldo, mas sem resultado porque ele tinha a cabeça muito grande. E tome porrada para Divaldo contar como conseguia realizar a façanha e depois entrar nos supermercados para assaltar.
Na manhã de segunda-feira, os militares entregaram um Divaldo totalmente estropiado na Delegacia de Roubos e Furtos. O delegado começou o interrogatório:
– Quem é o dono daquele fusquinha?
– Ele se chama José Augusto Rodrigues, mas é mais conhecido como Guto Rodrigues! – ganiu Divaldo, sem esconder o nervosismo.
O delegado olhou uma ficha. O nome do bandido mascarado era Zé Augusto. Aquilo parecia uma pista quente. Talvez o infeliz estivesse falando a verdade e fosse apenas cúmplice do bandido mascarado. O delegado continuou:
– E onde eu posso encontrar este tal de Guto Rodrigues?
– Nesse horário, ele deve estar no Banco da Amazônia… – ganiu Divaldo, cada vez mais desesperado.
O delegado deu um pulo da mesa:
– Avisem pro comando geral da Polícia Militar que o endemoniado Zé Augusto está nesse momento assaltando o Basa! – berrou para um dos investigadores. – E peçam reforço da Polícia do Exército para cercar aquele quarteirão. Eu estou indo pra lá agora!
O centro da cidade, onde está localizado o Basa, virou um inferno, com dezenas de viaturas e policiais armados correndo feito baratas tontas pelas ruas, ônibus sendo desviados do Terminal da Matriz, carros sendo impedidos de circular, uma zorra total.
Depois de quase meia hora de confusão, o bancário Guto Rodrigues, funcionário concursado do Basa desde a época do pleistoceno, conseguiu esclarecer a presepada.
Algumas horas depois, Divaldo foi retirado da delegacia todo arrebentado. Ele fez apenas um pedido singelo:
– Gutinho, meu irmão, nunca mais deixe um carro cheio de máscaras na minha oficina…
O diretor teatral seguiu à risca o pedido do mecânico. O verdadeiro bandido mascarado foi morto pela polícia alguns meses depois.
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