Balangandãs de Parintins

A Acauera de Fogo do Mestre Jair Mendes

Postado por Simão Pessoa

OUTUBRO de 1986. Em uma transação milionária que exigiu várias semanas de penosas negociações quase secretas, o bumbá Caprichoso convenceu o mestre Jair Mendes a abandonar o bumbá Garantido e se bandear para as hostes do “contrário”.

O escândalo da transferência do mago dos efeitos visuais virou o principal assunto da ilha. Até então era impensável que algum brincante deixasse um dos bumbás para brincar no outro.

Com Jair Mendes no comando, o Caprichoso ganhou a disputa de 1987, mas perdeu em 1988 e 1989. A diretoria do touro negro começou a achar que havia entrado numa canoa furada.

Em 1990, para justificar a sua contratação a peso de ouro, o mestre Jair Mendes resolveu encenar no Bumbódromo, pela primeira vez, a lenda do Acauera de Fogo, um gigantesco pássaro encantado semelhante a um Grifo, aquele animal mitológico que é metade águia e metade leão.

Segundo a lenda vigente no Rio Andirá, o Acauera de Fogo é uma espécie de vampiro que surge como o vento, trucida e mata suas vítimas, tendo uma especial predileção por bêbados solitários vagando pelas ruas de madrugada. O pinguço está caminhando de bobeira, o pássaro-vampiro vem, mete as garras no sujeito e leva ele embora, sabe-se lá para onde.

Na apresentação do touro negro, ficou acordado que o pinguço seria o “tripa” Marquinhos Azevedo. O gigantesco pássaro desceria por um cabo de aço, encaixaria suas garras em duas alças existentes na fantasia do “tripa do boi”, atravessaria o tablado e deixaria Marquinhos no meio da galera azul e branco. Era lá que o boi Caprichoso deveria surgir para iniciar sua apresentação. A encenação foi ensaiada uma dezena de vezes com perfeição.

Na noite de exibição da lenda do Acauera de Fogo, o boa-praça João do Carmo, o “Careca”, que morava em Manaus e estava por fora do mais recente truque ilusionista do mestre Jair Mendes, recebeu uma camisa da Marujada de Guerra e entrou na arena como fiscal de harmonia do Caprichoso.

Assim que percebeu o pinguço Marquinhos dobrando as pernas no centro do tablado e exibindo uma vistosa garrafa de cachaça Velho Barreiro, Careca apertou o botão de pânico:

– Aquele cachaceiro vai tirar pontos da gente! Aquele cachaceiro vai tirar pontos da gente!

Dito isso, ele saiu correndo, deu uma “gravata” no bebum e caiu com ele no chão. Nesse momento, soltando o grito característico das aves de rapina, o gigantesco Acauera de Fogo desceu pelo cabo de aço e passou tirando “fino” da dupla. Não pegou ninguém.

O pássaro deu um novo rasante. Também não pegou ninguém porque Careca agora estava tentando dar um “mata-leão” no “tripa” do boi. Os torcedores do Caprichoso ficaram em silêncio. Os jurados se entreolhavam curiosos. Ninguém estava entendendo nada.

Dessa vez quem apertou o botão de pânico foi o mestre Jair Mendes:

– Avisem praquele filho da puta que o bebum faz parte da apresentação! Avisem praquele filho da puta que o bebum faz parte da apresentação!

Foram preciso seis homens para retirar o Careca de cima do Marquinhos e a lenda do Acauera de Fogo finalmente ser encenada na sua versão original.

Apesar do quase-estrago feito pelo Careca, a encenação tão foi bem-feita que os jurados aplaudiram de pé.

Naquele ano, o bumbá Caprichoso conquistou mais um título de campeão.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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