Balangandãs de Parintins

O sumiço do rádio do Coronel Bitônio

Jander Souza e Carlos Paulain no Lago Parananema, em Parintins
Postado por Simão Pessoa

Comerciante bem-sucedido no baixo Amazonas, Alcir Magalhães sempre foi um figuraço, um autêntico “self-made-man” amazônico, que construiu um império trabalhando duro.

Quando ainda ralava como trabalhador braçal em Oriximinã, no Pará, ele já mantinha aquele jeitão de membro típico da fidalguia britânica que ostenta até hoje. E não gostava de se sentir por baixo de ninguém, em nenhuma circunstância. Texto típico de Alcir, naquela época:

– Égua, parente, onde foi que tu comprou essa camisa? – indagava, curioso.

– Ah, isso é uma camisa Lacoste que comprei em Manaus! Custou uma fortuna porque é importada, veio diretamente de Paris! – respondia o sujeito.

– Égua, rapaz, vou comprar uma pra mim também. Tu é meu patrão, mas não é melhor do que eu, não! – avisava Alcir.

Na semana seguinte, lá estava ele com uma camisa exatamente igual à do patrão. Mesmo que aquilo lhe custasse o salário de um mês.

Vereador em Nhamundá, o compositor Carlos Paulain morava de aluguel numa casa pertencente a Alcir, quando este já havia se transformado em um próspero comerciante do município.

Outro grande comerciante da época, o coronel Bitônio Hortêncio, morador de Parintins, comprou uma nova casa em Nhamundá e resolveu se mudar para a cidade.

Um dia, comecinho da tarde, o vereador estava tirando uma soneca numa rede atada na varanda, quando chegou seu senhorio:

– Êi, Carlinhos, chegou o compadre Bitônio. Tu vai lá comigo, tu é um vereador de merda, mas é meu amigo, então tu vai lá comigo, conhecer o meu compadre…

– Claro, claro! – concordou Paulain. – Eu vou, eu vou, pra mim será uma honra…

– Égua, porra, então chama o Jander Souza, ele num te larga…

– Chamo, sim, seu Alcir, pode deixar…

Carlos Paulain passou na casa de Jander Souza, ex-secretário municipal de Turismo, lhe convidou para conhecer o compadre de Alcir e lá foram os três para o barco do coronel Bitônio, que estava sozinho.

Depois de feitas as apresentações de praxe, o quarteto subiu para o convés superior e sentou-se à mesa, para conversar, beber cachaça e tirar gosto com torresmo.

Em termos de birita, o coronel Bitônio era um verdadeiro leão: com quase dois metros de altura, parrudo que nem o Maguila, ele era capaz de beber três dias seguidos, misturando cerveja, conhaque, vodka, cachaça, água sanitária e creolina, que não ficava nem com bafo.

O comerciante Alcir Magalhães também era um emérito profissional do copo, graças aos chás de ervas medicinais que ingeria diariamente com pontualidade suíça: boldo, quebra-pedra, barbatimão, unha-de-gato, vassourinha, mururé, sálvia, carqueja, beldroega e pedra-ume-caá. Amadores mesmo, somente o compositor e o ex-secretário municipal, que, ainda assim, bebiam como gente grande.

A ventania que corria no tombadilho e que, volta e meia, derrubava uma cadeira, também contribuía para a “maldita” custar a pegar.

Seis garrafas de cachaça mais tarde, quando todo mundo já estava meio calibrado, o coronel levantou-se da mesa, olhou em torno, ficou meio cismado, aí voltou a sentar-se no seu lugar, em silêncio. De repente, perguntou:

– Alcir, tu visse o meu rádio?…

– Égua, porra, não, não vi, não! – respondeu Alcir. Aí, virando-se para os outros dois convidados, questionou: – Cadê o rádio, porra, cadê o rádio do compadre Bitônio?…

O ex-secretário municipal Jander Souza

Paulain e Jander continuaram na deles, sem saber do que os dois compadres estavam falando.

Alcir e o coronel levantaram-se da mesa e começaram a procurar o rádio pelo convés do barco. Procuraram, procuraram, procuraram e nada de o rádio ser encontrado. O coronel Bitônio estava ficando cada vez mais puto.

– Sumiu meu rádio… Porra, o rádio com que eu pego os avisos das minhas filhas, lá de Manaus, na Difusora. Eu não posso ficar sem esse rádio, Alcir, porra, cadê o rádio?…

Alcir também estava começando a ficar nervoso vendo a aflição do seu compadre. Depois de mais uma nova busca infrutífera, Alcir jogou a toalha:

– Égua, porra, cadê o rádio?! Olha, rubaro o teu rádio, compadre, rubaro o teu rádio!… Tem um ladrão aqui dentro de nós!…

Então, como se fosse um Sherlock Holmes, parou perto da mesa onde Paulain e Jander continuavam sentados, e começou a fazer suas brilhantes deduções:

– Porra, Bitônio, tu não vais roubar o que é teu, que tu num é leso…

O coronel nem respondeu, porque estava a ponto de ter um troço, cada vez mais agoniado e aflito:

– Pelamor de Deus, cadê meu rádio, rapaz, cadê meu rádio?…

O Sherlock Holmes continuou suas deduções:

– Eu, Alcir Ferreira Magalhães, cinco mil rezezinhas, não tenho por que roubar um rádio de bosta desses, que deve ser a pilha…

Então, respirando fundo, limpou as mãos numa toalha que estava em cima da mesa, olhou sério para Carlos Paulain e continuou:

– O Carlinhos, vereador, até que não tá muito bem de vida, mas também não é capaz de fazer uma patifaria dessa…

Aí, olhando pro Jander, que parecia não se dar conta da gravidade da situação, sentenciou:

– Porra, Jander, devolve o rádio do homem! Tu tá desempregado, anda comendo do bom e do melhor e só se traja bem, é porque tu tá roubando! Devolve o rádio do meu compadre, porra, devolve o rádio!…

O coronel Bitônio, que havia acabado de conhecer o sujeito naquela tarde, não contou duas vezes. Correu na cabine, pegou um terçado e voou na direção de Jander, completamente transtornado:

– Me devolve meu rádio, seu desgraçado, ou eu te parto no meio!…

Num ato reflexo, Jander pulou da mesa, deu dois passos pra trás e voou por cima da amurada do tombadilho, caindo n’água de roupa e tudo, onde começou a nadar feito um desesperado em direção à praia. Nem Mark Spitz seria capaz de acompanhar suas braçadas vigorosas.

Carlos Paulain era o único que mantinha o sangue-frio e tentava colocar ordem na casa.

O coronel Bitônio já estava colocando os cartuchos numa espingarda doze, papo-amarelo, para ver se acertava no fugitivo antes de ele alcançar o barranco, quando o compositor segurou no cano da arma e implorou:

– Seu Bitônio, tenha calma, não vá me fazer uma besteira!…

Alcir puxou o inquilino pelo braço e deu o maior esporro:

– Num te mete, Carlinhos, num te mete! Num protege o ladrão! Num protege o ladrão!…

Felizmente, Jander Souza conseguiu escafeder-se em direção à cidade, antes dos tiros serem disparados. Dentro do barco, depois de alguns minutos, os ânimos finalmente serenaram. O coronel é que continuava inconsolável:

– Porra, meu rádio, Alcir, meu rádio! Tava bem ali e eu inda punhei ele dentro da caixa! Tava novo, novo, novo, Alcir, porra, meu rádio!…

Nisso, um moleque remando uma canoa, ouvindo aquela confusão, encostou ao lado do barco e começou a gritar pelo nome do comerciante.

Quando Alcir meteu a cara na amurada, o moleque perguntou:

– Êi, seu Alcir, não é esse rádio que vocês estão procurando?…

E exibiu uma caixa contendo um pequeno rádio a pilha.

O coronel Bitônio quase desmaiou de emoção.

Na verdade, a ventania havia derrubado o rádio dentro d’água, mas o estojo protetor de isopor o impediu de afundar e a caixinha ficou flutuando no entorno da embarcação até o moleque resgatá-la.

Quando o coronel começou a retirar os cartuchos da espingarda, Alcir caiu na real:

– Puta merda, puta merda! Eu ofendi o Jander, Carlinhos, eu ofendi o Jander! – desculpou-se. – Manda chamar o Jander agora mesmo, pra mim pedir desculpa, que quase que ele pega uma terçadada e uma carga de chumbo por minha causa…

Mas o ex-secretário municipal Jander Souza, àquela altura do campeonato, já estava num barco de linha com destino a Parintins, desejando que o coronel, seu compadre e o compositor ardessem pelo resto da vida no quinto dos infernos.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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