Por Joaquim Ferreira dos Santos
Senta que lá vem história. Na primeira delas vamos encontrar o lamentável marechal Costa e Silva visitando as instalações do Jornal do Brasil na avenida Rio Branco. A ciceroneá-lo a muy digna proprietária do estabelecimento, a condessa Pereira Carneiro. Ao se aproximar o fim do tour, ela informa ao presidente que no dia seguinte o JB noticiaria a visita em suas páginas. O segundo chefe da ditadura militar, com a elegância que caracterizava a classe, quis saber mais: “Vai ter elogio?” A condessa, constrangida com a cara-de-pau do cara, informou-lhe, com jeitinho, que, hum, bem, não haveria. Seria feita uma reportagem sem comentários, objetiva, como é da boa norma jornalística, da passagem do presidente pela casa. O marechal foi-lhe sincero: “Desse jeito não precisa não, condessa. Eu gosto mesmo é de elogio.”
Na segunda história, vamos encontrar entrando numa festa o diretor Daniel Filho, um currículo enorme de grandes realizações na TV brasileira. Daniel cumprimenta uns e outros, até que chega ao grupo em que um conviva está cercado de barbudos e cabeludos por todos os lados. Ao mesmo tempo que aperta a mão do diretor, o sujeito vira-se para a roda. A pretexto de apresentação, anuncia: “Pessoal, esse é o Daniel Filho.” E depois de fazer uma pausa enfática para que todos anotassem bem a que tipo de gente o recém-chegado pertencia, foi em frente na apresentação: “Ele adora um sucesso.”
Continue sentado porque lá vem mais história.
Sucesso e elogio são dois dos mais lindos bálsamos semânticos da língua e eu sugeriria a esses deputados sempre em busca de algo desnecessário a se apresentar como projeto de lei que fosse instituída uma Bandeira Brasileira do Bom Profissional. O mesmo retângulo verde, o mesmo losango amarelo e a bolota azul. Sairia apenas o “Ordem e Progresso” da faixa entre as estrelas para dar lugar ao “Sucesso e Elogio”.
Eu gostaria de provar dos dois, quem não? Qualquer caixa do Bradesco ou cientista de Manguinhos está em busca dessas delícias perigosas. No Brasil, sucesso é ofensa pessoal. Elogio, em qualquer parte do mundo, nunca satisfaz a nossa enorme fome de reconhecimento. Elogio-e-sucesso, como a banana da música do Braguinha, engorda e faz crescer. Os Ronaldinhos ficaram mais bonitos depois, é ou não é? Mas leia a bula. Há efeitos colaterais desagradáveis da ingestão sem cuidado daquelas bananas.
Uma antiga namorada diria que eu não passo disso, frankenstein leonino surgido do cruzamento do Costa e Silva com o Daniel Filho. Discordo. Ela não sabe, por mais boa moça que seja, coitada, que um jornalista tem no conteúdo da sua caixa postal diária um cirurgião plástico eficiente para lhe corrigir na cara e na alma as monstruosidades que sucesso e elogio podem fazer ao ego e perfil. Não uso Pond’s. Ao bisturi do Pitanguy também nunca fui acertar problemas de máscara comportamental. Para manchas e espinhas do caráter uso o santo remédio – o e-mail do leitor que não gosta. Do leitor que não te acha essa Coca-Cola toda. Que denuncia a pobreza das tuas vírgulas. É o mais fantástico corretor facial existente no mercado.
Tenho dúzias de e-mails desse tipo arquivadas, e sei que novos chegarão. “Quanta falta de assunto”, dizem sempre. Guardo com especial carinho aquele que já nas primeiras horas de uma manhã de segunda-feira abria os trabalhos da minha correspondência. O leitor tinha acabado de sobreviver ao embate com não sei mais que crônica. Foi curto e grosso na opinião: “Ai que saudade do Rubem Braga. Desiste, cara.” Um bom-dia desses, desde que cheguem outros na direção oposta, deixa qualquer um no seu tamanho exato. É a senha para você se levar menos a sério. Dá equilíbrio. Tira o salto. “Eu moro em Niterói, faço crônica para um site da Califórnia e sei como é”, disse outro leitor. “A inspiração não veio hoje, né?”
O jornalismo diário, com sua enorme possibilidade de erro e a espetacular exibição pública desses fracassos, os mais discretos deles transformados imediatamente em e-mails esculhambatórios ao seu responsável, no caso este que vos digita, é a minha versão particular do “humildificador”.
Trata-se de um “aparelho virtual” patenteado pelo psicanalista Francisco Daudt. A engenhoca ativa uma área cerebral que costuma ficar sem uso: a noção da nossa própria desimportância. Ao longo do dia, o humildificador sussurra nas orelhas do seu portador um mantra básico para cortar qualquer possível efeito alérgico da ingestão da droga moderna do elogio-e-sucesso. “Menos, bicho, menos.” Se o papa morre, você, então, nem se fala. Pega leve. Se toca. Olha a pose.
Rhett Butler, grande filósofo do século passado, estava certo quando olhou nos olhos de Scarlett O’Hara em “E o vento levou” e mandou outra das frases que ativam o humildificador de Daudt: “Francamente, querida, eu não estou nem aí para isso tudo.”
Agora senta que lá vem a última história.
Séculos atrás, na TV Continental, canal 9 do Rio de Janeiro, Fernando Lobo entrevistava alguém cheio das importâncias.
Entrevistado: “Bem, Fernando, eu não sei se eu posso responder a sua pergunta aqui na televisão.”
Fernando: “Ah, claro que sim. Fala aí. Ninguém assiste a este programa mesmo…”
Fernando Lobo já usava, tenha um também. O humildificador está à venda nas boas casas do ramo.
Instale hoje mesmo e viva a delícia feliz da nossa humana desimportância.
(crônica publicada no livro “Em Busca do Borogodó Perdido”)