Por João Lopes
Com dez romances publicados, além de peças, contos, ensaios, traduções, adaptações para a televisão e uma volumosa produção como cronista de alguns dos maiores jornais do País, era de esperar que o baiano João Ubaldo Ribeiro, 70 anos, estivesse satisfeito com sua obra. Mas o imortal da Academia Brasileira de Letras, vencedor do Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, e de dois Jabuti, o mais relevante da literatura nacional, quer mais.
Só em 2011, começou três romances para os quais escreveu pouco mais de 50 páginas. Todos desandaram, atropelados pelas obrigações diárias do autor, que também é palestrante. Para 2012, já tem planos definidos: vai se desligar do mundo pelo menos durante as manhãs para se dedicar à literatura. “Senão minha obra futura vai ser constituída basicamente de e-mails. E eu não quero isso não.”
A literatura brasileira e a mundial hoje têm a mesma qualidade de quando o sr. começou?
Deve ter. As modas e os gostos variam tanto. Mesmo escritores considerados sólidos deixam de ter sua voga. Nunca deixam de ter seu lugar no panteão dos escritores, mas deixam de ter sua voga. A glória desse mundo é efêmera. Por exemplo, tenho certeza de que a maioria dos leitores brasileiros de 40 anos não ouviu falar de Humberto de Campos. Entretanto, Humberto de Campos foi um dos escritores de maior popularidade que o Brasil já teve. Ele era popularíssimo. Todo mundo lia Humberto de Campos, ele era reconhecido nas ruas, era convidado para isso e aquilo. Hoje ninguém lê Humberto de Campos. Hoje também pouco se fala dos escritores estabelecidos na época da minha juventude – William Faulkner, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Thomas Wolfe, John Steinbeck. Não sei se temos tempo suficiente de impressão em massa para garantir uma boa perspectiva para julgar. Balzac, por exemplo, não entrou para a academia francesa de letras e hoje quem concorreu com ele só é lembrado porque ganhou de Balzac. Essas coisas são muito relativas.
O que o sr. está lendo?
Não estou lendo nada, não tenho lido muita coisa. Eu tive minha fase glutona, onívora de leitura, até a pós-adolescência e quando era professor. Mas de uns tempos pra cá leio cada vez mais das mesmas coisas. Leio as mesmas páginas dos mesmos autores. Continuo lendo, de vez em quando, meu Shakespearezinho. Mas não costumo ler muito quando estou escrevendo porque fico com medo de plagiar, como já aconteceu. Enquanto escrevia, aquilo que eu tinha lido ficava inconscientemente na minha cabeça e saía como se fosse meu.
Está escrevendo algum livro?
Tenho tido dificuldade de escrever, pois neste ano a solicitação tem sido intensa. Comecei três vezes um romance este ano. Tenho três começos escritos, cada um com umas 50 páginas. São três livros diferentes que desandaram porque não pude me concentrar neles. Meus planos em 2012 são de me trancar pelo menos nas manhãs para escrever. Senão minha obra futura será constituída basicamente de e-mails. E não quero isso não.
Que vantagens a internet dá ao escritor?
Ela ajuda e atrapalha. Recebo até 320 mensagens por dia, a maior parte spam. Perco tempo demais. Mas quando trabalho em linha (online) fico tentado em futucar certas coisas. Para o romancista pode ser uma morte. Eu, por exemplo, trabalho com três dicionários. Então recorrer a eles é uma tentação, mesmo que não esteja com problema de palavra. Resolvo, por mero fascínio que eu tenho por palavras, consultar os dicionários. Aí vejo a palavra, os sinônimos, entro no Google para ver assuntos relacionados à palavra. É uma perdição se o sujeito não mantiver a cabeça muito equilibrada.
Quem são os novos talentos da literatura?
Deve ter uma porrada, mas não sei. Não sou muito um homem de letras. Gosto de ler, sou escritor. Mas não tenho interesse teórico pela literatura, por exemplo. Não sei quem são os novos talentos. E se soubesse não diria, porque detesto fazer inimigos.
Você participou da Festa Literária Internacional de Paraty. Sente-se confortável entre escritores e críticos?
Me sinto. Só não me sinto à vontade com o que é muito pomposo. O sujeito pomposo, que encara a condição de escritor como uma coisa meio esotérica ou monástica. Quando é complicado eu não gosto não. Entre os críticos, quando consigo entender o que eles falam, me dou muito bem. Quando não consigo, digo que não entendi e eles acham que estou fazendo piada.
Prêmios são importantes para o autor?
É sempre bom ganhar prêmio. Melhor ainda quando vem acompanhado de dinheiro. Todos preferem um que dê algum trocado. Vida de escritor não é tão esplendorosa quanto pensam. Escritor tem que se virar. Seja no jornalismo, seja fazendo conferências, aparições pagas ou dando aula. Raros são os escritores que têm o sucesso de vendas suficiente para se sustentar.
Lida bem com a tietagem?
Nunca senti a tietagem. Nunca fui um Cauby Peixoto, que tinha as roupas rasgadas pelas fãs. Nunca fui assediado assim, de forma esmagadora. Já estive em lugares onde fui muito solicitado, mas sem nenhum açodamento. Gosto que as pessoas gostem do que eu escrevo, fico feliz. Escritor não é como ator ou cantor, que recebe o aplauso ou a vaia diretamente. Então quando a gente vê alguém que gosta do trabalho é agradável.
O que acha das adaptações de sua obra para a tevê e o teatro?
De modo geral, gosto das adaptações para a televisão. Eu não gostei do “Sorriso do Lagarto” (foi feita por Geraldo Carneiro e Walter Negrão). Nem me lembro direito o porquê. Eu não vi. Quando começou a passar aqui eu estava na Alemanha. E depois era tarde, eu não queria ficar acordado para assistir. Costumo encarar esses trabalhos derivados do meu como obras do sujeito que fez a adaptação. Por exemplo, acho que “Sargento Getúlio”, o filme, é de Hermano Penna.
Repetiria a experiência de ter uma obra como samba-enredo?
Cautelosamente. Por que quando “Viva o Povo Brasileiro” foi transformado em samba-enredo funcionei como perfil monumental para a escola Império da Tijuca. Que, aliás, nesse ano desfilou no grupo principal pela primeira vez. Quebrou um carro, morreu um dos compositores do samba, a escola perdeu pontos, se atrasou. Uma calamidade. Então, acho que qualquer outra escola pensaria duas vezes antes de escolher um livro meu como samba-enredo.
O que gosta de fazer no tempo livre? Conseguiu abandonar a bebida e o cigarro completamente?
Tenho cada vez menos tempo livre. Quando não estou escrevendo fisicamente, estou escrevendo na cabeça. Passei uns 11 anos sem beber nada. Hoje bebo uísque só sábado e domingo. Às vezes bebo um chope. Essa conversa de bebida é engraçada. Vivem me perguntando sobre isso. E é uma besteira total. Teve um tempo em que andei exagerando na bebida, parei de exagerar e agora bebo normalmente. Parece que eu devo explicações sempre a respeito do meu comportamento quanto a isso. Cigarro é que não larguei direito. Não larguei direito não, não larguei. Sou viciado mesmo.
Considera-se um pai rigoroso?
Não, eu sou o oposto exagerado. Cheguei a ser um pai negligente com meus filhos em relação a isso. Eu tinha terror de oprimi-los com a obrigação de aprender, por exemplo. Fui o inteiro oposto do meu pai. Nunca bati nos meus filhos. Dava uns esbregues ou outros, mas verbais.
Já assistiu a alguma apresentação do seu filho mais famoso, Bento Ribeiro, como stand-up comedian?
Não sabia que ele estava se apresentando como stand-up comedian. Vejo o programa dele na televisão. Vejo pouco televisão, mas a mãe costuma ligar na hora do programa dele na Emetevê (MTV). Apresentação ao vivo só vi uma vez, quando ele era ator de teatro. Foi muito bem. Começou uma carreira difícil, sem nenhum alicerce, não conhecia ninguém. Montou peça de teatro, depois fez um trabalho de sucesso em novela de televisão, ascendeu por si mesmo e hoje é um vitorioso. Fico orgulhosíssimo.
O sr. é religioso?
Sou. Talvez não no sentido de que pertença a uma religião porque não gosto de religião institucionalizada. Mas fui criado na tradição católica. Então sou culturalmente católico. Mas não aceito o magistério da igreja, tenho problemas com isso. Então não posso me chamar de católico. Mas sou mais próximo do catolicismo do que de qualquer outra coisa. Sou um cristão que acredita no Deus posto nos Evangelhos, que costumo ler.
O que pensa da Igreja Católica como instituição hoje?
Ela sobrevive há dois mil anos com sabedoria exemplar. Cometeu erros monumentais, sobreviveu a esses erros todos e de certa forma se recuperou. Tem sido um exemplo notável de sobrevivência. Alguns, de má vontade, diriam de esperteza; outros, com menos má vontade, diriam de sabedoria política. É uma das instituições mais importantes da humanidade. Fazer críticas à Igreja Católica é esquecer que ela é um êxito.
Voltar a viver no Brasil, depois de morar na Alemanha, nos EUA e em Portugal foi difícil?
Não gosto de ser estrangeiro. Gosto muito desses lugares todos e tenho a impressão de que vou conseguir, em setembro, passar alguns dias em Berlim, onde morei por 15 meses, o que é uma alegria, embora não seja chegado a viajar. Sou péssimo turista, mas bom viajante. E hoje, já coroa, não dá mais para ir de classe econômica. Quase morri uma vez e resolvi que não me arrisco mais. Tive problema circulatório nas pernas. Tenho medo de morrer atulhado numa classe econômica. Mas sou brasileiro. Fora do Brasil nem escrever direito eu escrevo.
O sr. tem uma afinidade especial com a Alemanha. Por quê?
Não sei. Digo que fui alemão em outra encarnação. Em um crônica acho que digo que já fui prussiano. Tenho até fama de que falo alemão. Jamais vou conseguir me livrar dessa fama. Desminto em toda oportunidade, mas todo mundo diz que eu falo. Eu tartamudeio em alemão. Mas não posso manter uma palestra, nem ler um livro.
(entrevista publicada em 27.07.2011. Link original: http://istoe.com.br/147801_A+INTERNET+E+A+PERDICAO+DO+ESCRITOR+/)