Por José Castello
Imagine, por breves instantes, um vampiro com drama de consciência perfilado diante de um espelho. Ele não pode se ver (vampiros não projetam uma imagem), e isso o horroriza. Dentes de alho, crucifixos, estacas de prata, todo esse arsenal de defesas sugerido pela literatura e pelo cinema góticos, o ameaçam – mas ele, em vez de fugir, começa a se lamentar. O vampiro não quer ser um vampiro, está em crise de identidade; inconformado, renega o que é e põe essa imagem na conta de seus detratores. Os outros, sim, o “vampirizaram”, pensa o vampiro, desconsolado; sugaram seu espírito (vampiros segariam o sangue, mas críticos literários são mais espertos e perigosos) e o transformaram em um ser repulsivo; ele é só uma vítima.
Vamos trabalhar com a hipótese de que esse vampiro se chame Dalton Trevisan. Seu grande drama é ter se tornado, contra a sua vontade, o vampiro de Curitiba. E se convertido, assim, no mais famoso personagem que criou. Dalton se empenha, há algum tempo, em se livrar dessa identidade de que ele mesmo é o autor, esforço que aparece em textos breves e irônicos como “Quem tem medo de vampiro?”, um dos capítulos de Dinorá, livro de 1994.
Em breves sessenta e seis linhas, escritas em estilo híbrido entre o ensaio, a confissão e a crítica literário, ele “vampiriza” tudo aquilo que os críticos mais enfezados escreveram a seu respeito: que tem um vocabulário restrito, que repete sempre as mesmas histórias e que, por isso, tornou-se um escritor monótono, que jamais se cansa de se copiar. E que, ao se esconder ansiosamente da mídia, nada mais faz do que exercitar um tipo de promoção delirante, bastante infantil aliás, parecida com um esconde-esconde em que, quando mais o jogador se esquiva, mais aparece.
Os clichês a respeito da obra e da pessoa de Dalton Trevisan, compendiados por ele mesmo, são bastante conhecidos. É própria dos estereótipos serem toscos. Ligeiros, pouco dados a sutilezas, e assim é também em seu caso. Mas é próprio deles também carregarem, dentro dessa rudeza inevitável, um bom pedaço da verdade. A verdade nem sempre é complicada; muitas vezes está bem à nossa frente, restando apenas ver. É provavelmente assim em seu caso.
Diz-se que Dalton conta sempre a mesma história de seu único João e de sua bendita Maria; que escreve cada vez menos, com um ritmo monótono, simplesmente primário, repisando sempre as mesmas situações pornográficas e os mesmos personagens grotescos, e que lhe falta amor pelos semelhantes, e, por fim, que quanto mais se esconde, nega entrevistas, foge da imprensa – como um vampiro trancafiado em seu ataúde, que não suporta se expor à luz do sol –, mais põe seu nome em evidência, mais se deixa roer pela vaidade. E que lhe sobra apenas, é ele mesmo quem escreve, “ a grotesca imagem do vampiro já desvanecida aos raios fúlgidos da História”.
É Dalton ainda quem, carregando no sarcasmo, diz: “Negar o retrato é uma secreta forma de vaidade, a outra face do cabotino.” A ironia, porém, não o salva: quanto mais zomba de seus críticos, mais se entrega. O escritor, que não precisa disso, pois pode ostentar uma obra que ultrapassa em muito as circunstâncias, põe-se a enumerar essas restrições, monotonamente aliás, com a intenção de devolvê-las a seus detratores, mostrando assim que a insipidez é da crítica, e não sua, pois ela sim repete sempre os mesmos chavões, e ele, Dalton, não passa de um condenado. O escritor, em momento algum, diz “Eu; ao contrário, refere-se sempre a um suposto “Ele”, que seria apenas o Dalton Trevisan que os especialistas, com seus clichês, empenharam-se em criar. Um homônimo, um impostor posto em seu lugar, um sanguessuga. Isto é: um vampiro.
Mas o vampiro – e isso evidentemente só deve ser entendido como uma metáfora, o que não é pouco – é mesmo Dalton Trevisan. Sem muito esforço, pode-se sentir sua presença difusa, mas persistente, na paisagem urbana de Curitiba. Mesmo depois da modernização (bastante discutível em muitos aspectos) promovida Era Lerner, a capital paranaense conserva um temperamento introvertido, pudico, que não se deixa dobrar. Curitiba é uma cidade, como já disse Cristóvão Tezza, um de seus mais eminentes escritores, “feita de Outros”. Antes de ser, o curitibano olha para o lado para verificar se não está sendo inconveniente, ou desmedido. O Eu é só um resultado do olhar do Outro, não passa de um reflexo. É bastante justo portanto que Dalton, como um curitibano exemplar, também se perceba assim: como um efeito do olhar alheio. E que se revolte contra essa condição, que é mesmo miserável. Só que a realidade é um pouco mais complexa – e aqui começam seus problemas.
Para se opor à modernização, com a qual tem uma relação verdadeiramente paranoica, e assim não correr o risco de se tornar o que não é, Dalton Trevisan resolveu se fazer de invisível. As raras fotografias que se fizeram dele são imprecisas, apanham-no apenas de relance, sem nenhuma nitidez, como o flagrante de um fantasma. Numa delas, bastante famosa, Dalton aparece descendo uma rua, um homem magro e apressado, com um andar torto, escondendo-se sob óculos escuros. Na outra, é apanhado de soslaio, à frente do portão de sua casa, como se tivesse tomado um susto. São flagrantes borrados, indefinidos, tomados às pressas e impregnados de medo. Dalton está sempre fugindo, e é sempre bem-sucedido nessa fuga. Assim, escolheu para si o papel do homem que se esconde para resistir. O papel de morto. Morto-vivo – pois está bem vivo. Para não ser tomado pelo que não é, um vampiro, Dalton converteu-se no que não é: o mesmo vampiro. E agora, ocupando o lugar de seu mais famoso personagem, paga o preço dessa escolha.
Afora o caso dos amigos mais chegados, que têm a chance de reconhece-lo e de privar de sua companhia, todo o resto da cidade se detém nessa opacidade, que aliás lhe confere um poder nada desprezível. Ele vê, mas não é visto; está ali, mas não se pode imaginar que esteja. Como quase ninguém sabe como ele é, não precisa se disfarçar; Dalton se esconde em Dalton, ele se tornou seu próprio disfarce, e assim pode levar uma vida tranquila e sem apreensões, e no entanto é como se estivesse mascarado todo o tempo. Dalton Trevisan é a máscara de Dalton Trevisan, restando apenas, como avalistas dessa existência esquiva, os livros que escreveu.
Mais que uma estratégica de sobrevivência pessoal, de resistência contra a modernidade, porém, o vampirismo é, no caso de Dalton Trevisan, uma estratégia literária – devemos dizer logo, muito bem-sucedida. E é isso que a crítica, perturbada com a imagem do homem que se furta, deixa de perceber. O autor desaparece sob seus livros, torna-se só um personagem secundário, sem importância, indefinido, para que a literatura, essa sim, tome a frente. De que serve mesmo um autor diante de uma obra tão impecável? A ele resta, só, o papel de desejo: foi usado para que a obra se escrevesse e agora pode ir para o lixo, ou se esconder sob sua coleção de andrajos. Reduzido a um segredo, o autor, por contraste, torna a obra ainda mais luminosa. Dalton não teria razão alguma para negar sua imagem obscura; ao contrário, deveria orgulhar-se dela.
Além da inviabilidade, Dalton cultiva outra característica pessoal que o liga aos vampiros: o horror ao presente. Tornou-se um sujeito inadaptado, em eterno conflito com seu tempo, preso às lembranças de um mundo que acabou e que, hoje, só sobrevive em suas narrativas. Ele mesmo já definiu o papel do escritor, certa vez, como o de “um vampiro de almas”. Espírito do passado detido em um mundo futurista, Dalton se recusa a existir. Mas Curitiba não seria Curitiba sem a presença ausente de Dalton Trevisan. É como se ele tivesse se transformado num zelador do passado, vigiando as ruínas da cidade verdadeira que a modernização se encarregou de soterrar. Guardador do passado, Dalton passa a ter o poder de apontar a falsidade do presente. Não é sem razão que a Curitiba moderna lhe desagrada: cidade do design, do marketing e dos arquitetos, tem um rosto que a deixa (para o bem ou para o mal) em sincronia com seu tempo, e essa claridade solar é tudo de que um vampiro mais deseja fugir.
Em Quem tem medo de vampiro?, Dalton construiu uma espécie de “espelho invertido”, que tem o poder de devolver tudo aquilo de mau que sobre ele se lançou. O sarcasmo não tira – ao contrário, torna mais nítido – o aspecto devastador desse texto. Em sua primeira versão, Quem tem medo de vampiro? foi publicado em forma de fanzine editado pelo autor e distribuído em 1991 aos amigos mais próximos, acompanhado de outros onze textos, entre contos, crônicas e breves ensaios críticos. Teve assim um caráter íntimo, de desabafo restrito a uma legião de escolhidos. Esse aspecto secreto lhe conferiu ainda mais força, até porque o escritor não fala, e não falando não se defende, e não se defendendo não se sabe nunca (embora se possa ter a certeza de que não gosta nem um pouco) o que pensa a respeito de seus detratores.
Queira Dalton Trevisan ou não, todos os atributos clássicos do vampirismo aparecem hoje condensados sobre sua pessoa e sua obra – e se eles se parecem hoje com clichês é porque, como os vampiros, Dalton se ausentou do tempo e esses atributos congelaram. Ninguém supõe que Dalton possa mesmo circular à noite pelas ruas de Curitiba, vestido de preto, atacando moças indefesas para sugar-lhe o sangue, como faz seu Nelsinho em O vampiro de Curitiba, ainda que hoje seu nome apareça até como verbete no The vampire book, de J. Gordon Melton. É Melton quem afirma: “Trevisan entendeu a natureza sexual da vida e do apelo do vampiro.”
Mas é justamente por ser uma metáfora, e não uma encenação, que a idéia do vampiro se torna mais eficaz. Metáforas carregam sempre uma mistura de sentidos, que se misturam, se camuflam e nos pegam de surpresa. A mudança de campo semântico operada pela metáfora inclui uma série de disfarces, de duplos sentidos, de ambiguidades, e é daí que ela tira sua força. Dalton pode lutar contra a imagem de vampiro, pode denegá-la, pode ridicularizá-la, mas não pode se livrar dela. Ela é hoje uma máscara que o escritor não tem mais forças para tirar.
Já em O vampiro de Curitiba, o conto de 1965 que terminou por ligar a imagem de Dallton definitivamente ao vampirismo, o vampiro é apenas uma metáfora da obsessão sexual. Os personagens são pessoas comuns da classe média baixa, com a vida monótona e o sexo como último consolo. Nelsinho, o protagonista do conto, com um apetite sexual insaciável, sai à noite pelas ruas de Curitiba para perseguir mulheres. A imagem é quase ingênua: Nelsinho precisa do sexo a qualquer custo, assim como os vampiros necessitam do sangue de suas vítimas para sobreviver. Tudo se dá, como sempre ocorre em Dalton Trevisan, de modo muito simples e direto. As histórias de Dalton se passam em ritmo substantivo e acelerado. Seus diálogos são curtos, desprovidos de divagações ou, como diriam seus críticos menos inspirados, “sem profundidade”. Ele não perde tempo com exercícios de estilo, nem está preocupado em mostrar que “escreve bem”. Só grandes escritores como Dalton, aliás, podem dispensar a beleza com tanta displicência.
O vampiro, cadáver que se ergue do túmulo para sugar o sangue dos vivos e assim reter a aparência de vida, é também uma figura das superfícies. É um sanguessuga, alguém que vive do que não é seu, e também um fingidor, um príncipe sedutor que se faz passar pelo que não é. É pura imagem, e, nesse aspecto, sua estratégia de conquista evoca os procedimentos do marketing, que Dalton critica com tanta veemência na Curitiba de hoje. Mas nem todos os vampiros são mortos ressuscitados, alguns deles são apenas espíritos demoníacos desencarnados. Não são sujeitos, mas meros veículos. O vampiro é aquele que detém o poder de “drenar” o outro – não só física, mas emocional e psicologicamente; é, portanto, um ser que vive “entre” dois corpos. O vampirismo, além disso, não se refere só ao desejo de sangue, mas à sucção de algum tipo de força psíquica ou, mais simplesmente, de alguma força elementar que é roubada de alguém. Embora dependa do outro, porém, os vampiros não costumam ter uma aparência fraca. Os mais célebres atores a interpretarem vampiros no cinema, Bela Lugosi e Christopher Lee, eram homens de estampa viril, sedutores capazes de manejar grande dose de magnetismo pessoal.
Assim como Drácula, o mais célebre dos vampiros, Dalton Trevisan também é um passadista: venera o passado, ainda que não possa, por razões de sobrevivência, desprezar o presente. Ele circula pela Curitiba de hoje com seus parques de arquiteto, seus ônibus imensos, estações de cristal, shoppings modernosos, em busca de uma outra Curitiba, que já não existe: a das polaquinhas, casas de madeira, cachorros vadios, famílias severas e bosques obscuros. Dalton escreve sobre o fim de um mundo que não voltará. Um mundo de encantos e de perversões, de ingenuidade e de maldade, mas que era também um mundo denso, sem a futilidade de hoje. Escreve para amaldiçoar os vencedores, aqueles que reformaram o velho mundo e que fizeram dele, Dalton Trevisan, um estrangeiro no novo mundo que o sucedeu.
Dalton escreve contra a Curitiba real, que ele, ao contrário, vê como a “cidade irreal da propaganda… falso produto do marketing político… a Curitiba oficial enjoadinha narcisista… toda de acrílico azul para turista ver” como diz em Curitiba revisitada. Vale a pena repassar com atenção essa prosa em verso, publicada em Dinorá. Dalton, o lamuriento, escreve para lamentar a perda do passado, cheio de saudades das ruas de barro, das pensões familiares de estudantes, dos bailes bem-comportados, das confeitarias silenciosas, da vida pudica e dos gatos de rua. Mas também com nostalgia dos bordéis, inferninhos, dancings decadentes, cafetinas, pistoleiras, velhinhos pedófilos, lambaris nos rios, corruíras, personagens que ele mesmo escolhe para vangloriar. “Que fim ó Cara você deu à minha cidade / a outra sem casas demais sem carros demais sem gente demais”, diz. Quem é o “Cara” senão Jaime Lerner, o prefeito e depois governador que mudou a face da capital paranaense, símbolo portanto, ainda que sempre contestado, da modernização?
Num momento raro, surge para surpresa do leitor um Dalton Trevisan engajado no presente, militante da oposição política. Dalton não se rebela contra esse ou aquele político, contra esse ou aquele partido, mas contra a modernidade em geral, vista mais como um mostro devorador. Tem saudades de uma Curitiba recatada, reprimida, introvertida, que ele ironiza com seus personagens grotescos, de vida dupla que se camufla em modos estudados, de gestos tímidos mas severos, que, talvez ele nem possa perceber isso, sobrevive disfarçada nos curitibanos de hoje. “Não te reconheço Curitiba a mim já não conheço / a mesma não é outro eu sou”, ele escreve, sem poder ver aquilo que se perpetua. “Não me toca essa glória dos fogos de artifício / só o que vejo é tua alminha violada e estripada / a curra de teu coração arrancado pelas costas.” Dalton protesta também contra a nova face da “capital ecológica”, como a cidade é apresentada na propaganda oficial. “Verde? Não te quero / antes vermelha do sangue derramado de tuas bichas loucas / e negro dos imortais pecados de teus velhinhos pedófilos.” Como um Proust que substituísse a história pela geografia, ele escreve para recuperar o que resta da Curitiba perdida, espontânea, não planejada, “natural, que se perdeu e que talvez ainda sobreviva às margens da cidade oficial. E termina: “Curitiba foi, não é mais.”
Mas podemos ainda ver nos vampiros, para além do terror que provocam, uma carga de tristeza, uma lenta depressão, saudade difusa dos tempos em que estavam em sincronia com o mundo e assim podiam gozar das coisas que agora lhes escapam. Todo vampiro é, por definição, um melancólico, além de guardar em si, como sombra do que se perdeu, uma grande carga de rancor. Arrancaram-lhe o tapete de sob os pés e ele preenche esse vazio com uma obsessão – de sangue. Também Dalton, além de nostálgico, é obsessivo. “Escrever bem é pensar bem, não uma questão de estilo”, diz ele em Cartinha a um velho prosador. O estilo, portanto, não é uma escolha arbitrária; se não é só uma afetação, uma cópia, um tique, é consequência de um modo de pensar. Dalton, diz-se, e ele mesmo ironiza, é repetitivo, é perseguido pelas mesmas histórias, mesmos personagens, mesmos monstros, e não perde tempo com adornos, com sofisticações, vai rapidamente ao ponto, sabe aonde que chegar, ainda que seja sempre ao mesmo lugar. Parece reescrever, eternamente, o mesmo conto – e isso, contrariando os que o desprezam, é sua marca de grande escritor.
Também o vampiro não tem tempo a perder com o efêmero, com enredos decorativos, nem com novidades passageiras, apelos de mercado ou vanguardices. O vampiro repete sempre a mesma busca: quer sengue, isto é, a essência, e nada mais. Ele o encontro, mas logo depois quer mais, e mais, jamais se sacia. Dalton, como os vampiros, também parece nunca se satisfazer. Sua avidez não tem limites, nem solução. Ele busca obsessivamente o passado, mas sua fome jamais é mitigada. A escrita parece também não saciar a voracidade de Dalton, e por isso, de forma cada vez mais concisa, mais avara, mais cruel, ele trata de repetir sempre as mesmas histórias. Escreve com sofreguidão, sem tempo para se deter nas questões de estilo (ele diria: design), sem paciência com a elaboração (ele diria talvez: planejamento). Sua arte, ao contrário, é a do corte; ele apara, suprime, elimina, encurta, interrompe no ponto em que menos se espera, castra. Tornou-se assim um autor cada vez mais substantivo – é, um admirador de substâncias.
Outra semelhança indisfarçável aparece no gosto de Dalton Trevisan pelo grotesco e pelas pequenas crueldades. Alguns críticos já o compararam a Tchecov, mas enquanto Tchecov via seus personagens com compaixão, Dalton os vê com distanciamento e até com desprezo. Parece sempre distante, sem compromissos com o mundo, movido só pela indiferença, lidando com uma economia máxima de palavras. É um miniaturista, a cavar sempre no mesmo lugar, a cavucar as mesmas feridas, não se importando se elas doem ou não, e por isso tantas vezes se aproxima do grotesco. Seus traços muitas vezes se assemelham ao do caricaturista: rápidos, incisivos, maldosos, restritos ao essencial.
Mas o ridículo, por mais que nos faça rir, carrega atrás de si a aflição e é, quase sempre, uma forma disfarçada de crueldade. Ridicularizar é zombar, destruir. Também a crueldade, não podemos esquecer, está na origem do mito do vampirismo. Vlad Dracul, o primeiro dos vampiros, nascido ainda no século XIV nos Montes Cárpatos, viveu envolvido em lutas sangrentas. Seu filho, Vlad Dracula (“filho de Dracul”, ou simplesmente Vlad, o Empalador), teve também seu nome associado a numerosos relatos de crueldade. A história registra, durante seu curto reinado de seis anos, no século XV, um número não inferior a quarenta mil vítimas. Ele usava refinados métodos de tortura e matava friamente, até com certa elegância.
Como os vampiros, Dalton também prefere os cenários sombrios e noturnos, as atmosferas carregadas. Sua escrita em bisturi, sutil e minuciosa, só se interessa pelo osso das coisas. Mas, por desejar sempre o que está mais fundo, ela vem, quase sempre, embebida em sordidez. O mundo é sempre impuro, baixo, infame; está atravessado pela miséria e pela grosseira, emporcalhado pela avareza, é lamentável e repugnante. Dalton, o vampiro, não tem nenhuma piedade de suas vítimas; ao contrário, não se envergonha de espezinhá-las, de maltratá-las, de humilhá-las, até esmaga-las, ainda que aja sempre com frieza cirúrgica, sem demonstrar piedade, mas também sem demonstrar prazer ou qualquer resquício de sadismo. E aqui cabe pensar num laço que, em geral, não se considera: o que liga, em linhas muito sutis, a obra de Dalton Trevisan à de Nelson Rodrigues.
Na medida em que se afasta de qualquer análise sociológica, de qualquer pano de fundo engajado, Dalton se afunda também numa espécie de populismo literário (a mesma acusação foi feita muitas vezes a Nelson), uma paixão sem causa pelo povo, sem ideologia, desprovida de qualquer boa intenção, e indiferente às consequências de seus atos, paixão apática quase insensível, mas obstinada. Dalton não fala das elites, não constrói personagens marcantes, ou fabulosos, ou surpreendentes, nem fala de si. Fala sempre do mesmo povo anônimo – Maria e João são apenas modos de chamar, não são nomes próprios –, trata sempre da mesma massa amorfa, sem face, e age assim como seu grande senhor.
Nos contos de Dalton, até a violência é gratuita. É uma violência estéril, composta por uma estética vazia, a mesma maldade com que Christopher Lee e Bela Lugosi sugavam nas telas os pescoços de belas mulheres sem nome. Um mundo de aberrações, o que seria a contrapartida da Curitiba provinciana que sempre gostou de retratar. Dalton se encanta não só pelsa regras tolas e rituais da Curitiba provinciana que desapareceu, mas pelas perversões que vinha, sempre reprimidas, mas ferventes, sob essa capa de normalidade. Ainda como os vampiros, é na penumbra que ele encontra com o que se saciar.
A rotina do escritor, revelada aos pedaços, confirma também que autor e personagem se embaralharam, como se Dalton se esforçasse, sem perceber, para confirmar o estigma que renega. Em Curitiba, há o mito de que sua casa, no bairro do Alto da Glória, está sempre com as cortinas cerradas e que nem mesmo tem uma campainha, para que jamais o importunem. Dalton vive trancafiado: pela manhã, escreve em seu escritório, um pequeno cômodo isolado, anexo ao jardim da casa, conhecido como a “cabana do vampiro”; à tarde, tem o hábito de dar caminhadas pelo centro da cidade, de visitar suas livrarias preferidas (onde existe até uma pequena caixa para recados pessoais) e de lanchar na Confeitaria Schaffer, na Rua XV, de preferência em uma mesa de fundo. Tem horários rígidos e uma rotina comedida, novos aspectos em que se assemelha aos vampiros, que são sempre seres metódicos e inflexíveis.
Dalton confessou, certa vez, sua admiração por uma frase de Hemingway: “Quanto mais infeliz na infância, melhor será o escritor.” Na mesma entrevista, a Fernando Granato, ele disse ainda que todo escritor deve “acreditar no demônio” e ter contradições religiosas. Isto é, que não há literatura sem a presença do mal. Também os vampiros, é adequado lembrar, tinham o mal em alta conta, pois sem ele nada seriam. Por muitas razões, Dalton Trevisan não pode mais separar sua imagem do vampirismo, destino que, podemos supor, não deve ser nada confortável as que, mesmo assim, só vem atestar sua grandeza de escritor. É quando a máscara da escrita não pode ser mais desgrudada da pele que a literatura mostra, enfim, seu poder. Dalton não tem nenhuma razão para se envergonhar da imagem que a história lhe destinou, que, aliás, é um dos mitos mais verossímeis que a literatura brasileira produziu neste século. O maior escritor paranaense será, para sempre, o vampiro de Curitiba, lenda que ele mesmo ajudou a construir.
(Publicado no livro “Inventário das Sombras”, de 1999)