Por Joaquim Ferreira dos Santos
Enterrem meu coração na curva do rio, rápido, pois essa é a única maneira de poupá-lo de um dos meus pânicos modernos – as pessoas, pelo menos as que se tentam apresentar mais sensíveis e gente boa, estão mandando como prova de carinho e ternura um beijo bem gostoso no coração. Não me façam tal, por favor. Ainda não cheguei à idade de dispensar qualquer tipo de beijo. Desse, no entanto, caio fora. Peço licença para mandar Detefon em meu lugar.
Não me beijem o coração, ressuplico. O colesterol anda péssimo, as desilusões amorosas não cessam, ele é um pote até aqui de água malparada. Nada porém me é pior ao já combalido do que a ameaça do tal beijo. Sobra gordura desse afeto, esparrama açúcar dessa afeição molenga. Não levem a mal se recolho o carcomido para dentro da camisa, se o tranco ainda mais por detrás das costelas portuguesas. Desculpem. Deve ser por timidez, cosquinha, herança da loura que se mandou mês passado – escolham o motivo.
O velho poeta pernambucano pedia que não se perfumasse a flor. Contenham-se nos arroubos estéticos desnecessários, ensinava com o verso enxuto. Eu, peladeiro suburbano, sem nenhuma lição artística a oferecer com minhas esquisitices cronicais, rogo apenas que não bombeiem melado pela aorta já com 112 pontos de glicose. Esse beijinho doce que você me trouxe, glacê de bons sentimentos, mata de tão cafona.
O beijo no coração é derramamento hippie do politicamente correto, uma necessidade hiperbólica de realçar, sublinhar, olha só, como estamos impregnados não apenas das boas causas mas das boas palavras. Papo-furado. Não faz bem nenhum. O tal beijo é banha pura. Enseba os ouvidos. Não é só a população, como vi outro dia numa pesquisa do IBGE, que está mais adiposa. O carinho também ficou balofo.
Se duas maravilhas indiscutíveis da civilização, beijo e coração, com todas as suas conotações de prazer e sentimento, estão juntas na mesma frase, ficaria tudo barra-limpa. Definitivamente, estaríamos do lado das forças corretas. Mas não é bem assim. É acúmulo de toucinho simpático, piscinão do colesterol ruim onde mergulham os que fogem do beijo certo. O beijo no coração substituiu a falsa gentileza do tapinha nas costas. Deus me livre de ser tão querido!
Despejem o ursinho blau-blau da conversa. Passem mão de tinta adulta no quartinho cor-de-rosa desse bicho. Eu sei que os tempos são cruéis. Sei de todo o horror dos primeiros cadernos dos jornais. No meio do açougue terminal das almas em que nos metemos deve ter alguém achando que, sabido de todo esse bode, mandar beijo no coração deveria ser saudado com aplausos. Não acordo. É tudo parte do mesmo e pavoroso crime, um estilo de contrapor ao horror da barbárie a pasmaceira radical dos tolinhos.
Cuidado com os dois.
Há bandidos demais ao redor, alguns esperando apenas a edição de amanhã para serem declarados como tal. Do outro lado do ringue, o oponente pelas forças do bem não pode ser o escoteiro medíocre que oferece hóstia vazia em troca da glória suprema – ser reconhecido como “muito gente”. Olho vivo nessa turma.
Sempre vestidos com uma camiseta onde está escrito “Nada contra”, há que lhes temer – hum, aí tem! – a subserviência gentil, a obsessão samaritana, a retidão ong, a benemerência de crachá e a doação de um quilo de alimento não perecível para a arquibancada. O falso boa-praça, com sua insistência em se mostrar mais gente fina que todos, querendo agradar geral e nunca conjugando o verbo não – será que ninguém percebe que esse cara sufocando o coração dos outros com seus beijinhos é muito chato e perigoso?
Não há nada que se queira mais próximo do que os donos das boas palavras, dos bons gestos e da alegria amiga. Vivam todos e cheguem mais. O beijo no coração, filho espúrio do casamento de locutor-FM com heroína de novela mexicana, é outra coisa. Parece novo-rico que acabou de chegar à linguagem afetiva e exagera juntando duas jóias lindas mas incompatíveis.
Desconfio da intenção fofinha.
Falta sinceridade na gratidão ternurinha.
Os taxistas cariocas e os motoboys paulistas dão provas definitivas de que o brasileiro não é essa cordialidade toda que andaram escrevendo nos livros. Xavecos do saci-pererê. O beijo que se aplica agora nesse músculo improvável soa como mais uma palavra de ordem rumo ao troféu de outro desvario nacional – somos o povo mais bom coração do mundo.
E porque assim somos, quietinhos esperamos. Enquanto não vem o espetáculo do crescimento econômico, assistimos, ursinhos fofinhos, ao espetáculo do sentimento. Falta emprego, esse aborrecido detalhe estatístico. Mas sobra afeto e um beijo muiiiiiiiiiiito gostoso no coração de todos vocês.