Por Rubem Braga
Muitos leitores me dizem que estão indignados com esse negócio de eu começar uma história num domingo e não acabar. Consolem-se comigo, que também me aborreço muito. Hoje, por exemplo, devo acabar de contar minhas aventuras em Casablanca. Ora, quando eu comecei aquilo, estava convencido de que era uma boa história. Hoje, relendo a primeira parte, fiquei com sono e desanimado; e quando penso que devo fazer a segunda, francamente, sinto náuseas.
Afinal, o leitor nada tem a ver com o que me aconteceu em Casablanca. E não me perguntou nada. Eu é que me meti a contar a história. Se tivesse contado de uma só vez, vá lá. Mas neste momento estou na posição de uma pessoa que começa a contar uma anedota e é interrompida; e quando pretende continuar se dá conta, subitamente, de que a anedota não tem nenhuma graça nem interesse, ou, o que é lamentável, ele se esqueceu do fim.
Está visto que não me esqueci pois do fim de minhas aventuras em Casablanca. Mas só agora percebo que fiz uma horrível imprudência; porque, francamente, não me é possível contar a história tal como aconteceu. Como acontece em muitas histórias, a parte mais interessante é de caráter confidencial; seria da maior inconveniência que eu a contasse em público. Mesmo em particular, quando sou interrogado, guardo um pesado silêncio, ou digo qualquer mentira que, ocorre, pois além de ser um homem responsável perante minha Pátria, e minha Família, sou um perfeito cavalheiro, e um perfeito cavalheiro deve saber guardar perfeito silêncio em circunstâncias como essas.
Se fosse apenas o meu nome que estivesse em jogo, vá lá; eu talvez não hesitasse em comprometê-lo pois a probidade profissional e o respeito ao público me obrigariam a contar tudo direitinho, visto que comecei. Tanto que muitas pessoas, inclusive senhoras de sociedade manifestaram-se muito aflitas para saber o fim. São corações fracos. Ficam assustadas quando imaginam o quadro final do primeiro capítulo destas emocionantes aventuras: um pobre correspondente de guerra brasileiro, desarmado, com a mão direita neutralizada por uma tipoia, mal dormido e bem bebido, no fundo de um barzinho da perigosa cidade de Casablanca, com mulheres desconhecidas e duvidosas, uma enorme conta e um gerente que revela na cara sentimentos de banditismo piores que os de um Humphrey Bogart.
Sei que uma boa parte da população do país não tem dormido nada esta semana, de medo que me aconteça alguma coisa. Que fazer? Pois se tranquilizem, minhas senhoras. A verdade é que se alguma senhora passasse cinco minutos depois por aquele bar (o que não quero que aconteça, porque aquela zona é considerada perigosa, mesmo em Casablanca) se deteria na calçada e ficaria certa de que o escritor Bernanos andava pelas proximidades, pois ouviria as exclamações com que ele costuma iniciar e terminar seus artigos, tais como la France imortelle, bonneur de France, la France c’est une traison, on ne passe pas, vive la France e allons enfants de la Patrie.
O Sr. Bernanos costuma dizer essas coisas ao mesmo tempo que chama le imbecis, idiotas e canalhas todas as pessoas que não acreditam que os Franceses foram para a Síria por inspiração de Jeanne d’Arc e para colocar o sprit contra o grosseiro materialismo russo, inglês e americano. Assim a paixão patriótica cega as inteligências mais claras; e muitas vezes me ponho a imaginar que se o Sr. Bernanos é tão orgulhoso e desvairado tendo, final de contas, nascido na França, como ele seria insuportável se pudesse provar, como eu posso (sem querer com isso, repito, humilhar ninguém), que nascera em uma cidade como Cachoeiro do Itapemirim – afinal de contas uma cidade de gente decente e boa, de famílias conhecidas, gente que a gente sabe quem é, e que fala uma língua direita que qualquer pessoa de bem pode entender.
Mas naquele momento eu estava no estrangeiro, e era obrigado a falar em língua estrangeira, o que sempre é incômodo e ligeiramente humilhante, pois como dizia aquele português, o Teixeira, não há nada mais hipócrita constrangedor para um homem de bem do que chamar queijo de fromage ou cheese quando está vendo com toda a clareza que no fundo aquilo é queijo mesmo. Confesso, entretanto, que naquele momento não me importava falar francês, pois a França bem merecia, e inclusive eu estava empolgado por uma onda de admiração pela França, ali representada por aquela senhora de cabelos castanhos e voz meio rouca, porém muito doce.
Nessa voz ela me dizia que non, non, jamais; que elas duas me haviam convidado para beber e que portanto tinham o direito de pagar; que era estúpido de minha parte querer afrontá-las com o meu sujo dinheiro; e chegaram a insinuar coisas depreciativas para a boa educação e o cavalheirismo do homem brasileiro, o que seria intolerável se não fosse dito com ar tão meigo e por uma boca tão fresca à qual um dentinho ligeiramente torto do lado esquerdo não tirava graça nenhuma, antes me pareceu acrescentar alguma. Neste ponto proponho ao leitor uma conversa de homem para homem. Prometo pela minha palavra de honra não voltar nunca mais a escrever histórias em série, continuando no próximo domingo.
Prometo, ainda, domingo que vem terminar de uma vez por todas estas excitantes aventuras de Casablanca e nunca mais falar nisso. Era minha intenção, juro, acabar essa história hoje, tanto que logo que sentei à máquina escrevi o título “Fim da Aventura em Casablanca”, como o leitor pode verificar. Mas, domingo que vem acabo de qualquer jeito e prometo mesmo prestar declarações sobre as coisas que, com tão condenável indiscrição, o correspondente Joel Silveira, que passou por Casablanca alguns dias depois de minha partida, andou espalhando aí, pelos botequins, sobre meu encontro com a atriz Ingrid Bergman, quando a verdade é muito diferente e – vou dizendo desde logo – nada contém que possa desabonar a conduta daquela senhora.
(Setembro, 1946)