Por Alexandre Kovacs
Náufragos do Escolho (Ou os 98 infernos possíveis, 63 takes, dois jogos de armar e algumas armas mortais) – Autor: Francisco Rogido – Editora 7Letras – 196 Páginas – Capa e ilustrações: Lula Palomanes – Lançamento: 2023.
O título desta coletânea de contos de Francisco Rogido é apropriado porque os personagens se assemelham realmente a náufragos, perdidos e perdedores na vida, ousando nascer no lugar e no momento errados; gente simples que sobrevive a cada novo dia e em todo lugar à nossa volta sem nem mesmo percebermos. Para esses homens e mulheres, resta apenas a teimosa persistência na busca de uma felicidade possível em meio à pobreza, violência e falta de perspectivas de um cotidiano digno nos grandes centros urbanos. Apesar de tudo, notamos os rastros de uma humanidade difusa que permeia todas as narrativas, afinal, “não há ninguém que não seja estranho a si mesmo”, como nos lembra a epígrafe certeira ao citar Nietzsche.
Esses traços de humanidade podem estar presentes nos protagonistas mais improváveis, como no ótimo “5×7”, cuja narrativa é conduzida por um cachorro do além, relembrando momentos de sua convivência pregressa com alguns humanos, nem tão humanos assim, diga-se de passagem. Este mesmo cachorro volta a ser citado em “…dente por dente”, estratégia utilizada pelo autor ao conectar personagens em diferentes contos, estabelecendo assim uma estrutura fragmentada em forma de quebra-cabeças que renova o interesse na leitura, caso da cuidadora Cecília, protagonista em “Planta exótica em solo frívolo” e que, contudo, participa também como uma personagem secundária em “Cenários de uma gênese” e “O homem que virou suco”.
“Janela de terceiro andar, com luz acesa, às duas e quarenta e cinco da manhã, num conjunto habitacional de subúrbio, é uma coisa muito rara de se ver. Principalmente se é de uma segunda para uma terça-feira. Dá para ver do outro lado da linha do trem que naquela janela tem alguém com insônia. O que aquele passageiro do Uber não sabe é que Cecília já se revirou na cama várias vezes, ajeitou o travesseiro, tentou de tudo, suspirou não como náufraga submersa por embalagens de comprimidos, olhou para o lado, deitou de bruços, de barriga para cima, e pensar que chegou às onze da noite da faculdade, cruzou as mãos no peito, fechou os olhos, cataplasmas, chás medicinais e orações ao Divino Espírito Santo, tipo morta, e nesse instante os intestinos de gatos no cio começam a chiar do lado de fora. Agora, não ia dormir mesmo. Nesse instante Cecília aproveita para se levantar e vai até à janela. Olha para a linha do trem, para a luz dos postes, para os carros estacionados lá embaixo, para a rua vazia. É uma noite sem estrelas. Quente. Respira fundo e pensa com resignação que em duas horas tem que acordar, pegar um trem e um ônibus cheios para ir trabalhar do outro lado da cidade. Uma brisa leva lentamente dois sacos plásticos. […]” (p. 18) – Trecho do conto Planta exótica em solo frívolo.
Mesmo seguindo referências literárias famosas tais como Julio Cortázar e Augusto Monterosso, assim como citações a clássicos do cinema de diretores como Alfred Hitchcock, Jim Jarmusch e Robert Altman, o autor consegue manter um estilo próprio e original que se caracteriza por uma linguagem direta, sem floreios, e uma condução narrativa extremamente visual que surpreende pela segurança em experimentar, sem menosprezar a inteligência do leitor, exemplo no conto “Números” com sua hilária protagonista idosa e sagaz ao descrever um típico dia de sábado na pracinha local, certamente tem uma praça assim bem próximo à sua casa: “malandro junto com trabalhador”, onde “a merda dos vira-latas fica aí, misturada com as fezes dos pedigrees”.
“A pracinha está calma, na verdade está mais para uma rotunda que para uma praça; hoje é o dia do presente, tudo bem normal na vida humana em suas insignificâncias; bom dia… bom dia dona Ana Neri, enfermeira heroína da Guerra do Paraguai, te picharam de novo! Sim… Somente eu devo saber disso no meio dessa praça infecta, sim, hoje é sábado, olha aí, casa cheia, malandro junto com trabalhador, olha lá no boteco, da esquina que nunca fecha, ainda os resquícios daqueles homens vazios, resquícios da sexta, movimento perpétuo, porque hoje é sábado, amanhã é domingo, hoje dia de feira e tem gente à beça, gente a dar de pau, tipo as moscas de Monterroso; xadrez, ronda, dominó, carteado à vera, nas mesas de cimento, a merda dos vira-latas fica aí, misturada com as fezes dos pedigrees. E esses velhos babões, cruz-credo, deus me livre, alimentando pombos; olha lá o Pastor… Pastor à paisana parado na frente de um poste, pensa que ninguém vê, anúncios de ‘Juma, Mulher’ e ‘Verônica Travesti, superativa’, as babás cuidando dos filhos-de-alguém, cuidadoras cuidando dos pais de alguém; sim, manhã amena, tudo bem normal, ó tudo doido para descolar algum, os craquelados acordando com fome, olha ali, daqui a pouco começam a pedir dinheiro, puxam até caco de vidro, tudo por causa de uma pedrinha, já até deixo 10 merréis separados na bolsa, tudo em moedinha, documento, tudo xerox, celular esse do mais baratinhos mesmo, aí vem um eu dou, vem outro dou, assim eles vão te conhecendo, mas sabe que eu gosto daqui… Cenário perfeito… […]” (pp. 37-8) – Trecho do conto Números.
No conto “Amar é…” um lutador de MMA brasileiro enfrenta a luta da sua vida em Las Vegas mas, no decorrer do combate, as lembranças do relacionamento com Rute podem comprometer o seu desempenho no ringue. Já em “Os falsos profetas”, um pequeno papel distribuído na Central do Brasil oferece os serviços da Vovó Margarida do Amor que garante a volta da pessoa amada e ainda uma defumação completa, incluída no preço da consulta, para abrir os caminhos. Assim tem início a saga de João para reconquistar a mulher que termina com uma caixa de bombons recheados com um estranho licor. “Náufragos do Escolho” comprova a força da literatura brasileira contemporânea que se renova nesse conjunto de contos perturbadores.
“PRIMEIRO ROUND. Ali dentro éramos três. Eu, ele e Deus contra nós dois. O russo mastigava o protetor com a boca aberta como um cachorro que não larga o osso. Espalhava os braços, acenava para o pessoal, socava o ar e dava uns saltinhos igual a uma bicha, como se estivesse me desafiando. Como se estivesse dizendo: ‘tá vendo seu merda, eles me adoram e você está sozinho’. Eu estava cansado e puto da vida. Na noite anterior a vaca da Rute resolveu brigar e revirar um monte de coisas da minha vida, do passado, sabendo que a luta era hoje. Eu saí do hotel e fiquei andando um tempão por Las Vegas, pensando no tempo em que eu ficava na entrada do Home Depot esperando o trampo do dia, ou lavando prato, lavando carro, todo molhado e tossindo sem parar. Nem dormi pensando que eu tinha vindo pra esse inferno cheio de luz ardendo na minha vista por causa dela, pra juntar um dinheiro e voltar. Eu olhei pra ele e fiquei com medo, dele e de mim, pois no momento que começasse a quebrar aquela cara branca com meu soco eu não ia parar. Sei lá, eu tinha uma coisa meio animal que até me dava medo.” (p. 180) – Trecho do conto Amar é…
Sobre o autor: Francisco Rogido nasceu no Rio de Janeiro em 1972. É mestre em História, escritor e tradutor. Trabalhou por alguns anos como tradutor do projeto Biblioteca Digital Mundial (WDL) da Biblioteca do Congresso/Unesco em Washington D.C. Teve contos publicados em sites literários portugueses como Pnet Literatura, na Revista Cult (Brasil), Agália (Espanha), e Revista da Faculdade de Letras de O Porto, E-Fabulações. Os contos reunidos em Náufragos do escolho ficaram entre os dez finalistas do Prêmio Latino-Americano de Literatura Jovem da Aliança Francesa de São Paulo-Brasil/2008.
Obrigado Simão!