Cantadas Literárias

Livros e leituras

Ivan Lessa na redação do jornal O Pasquim nos anos 70
Postado por Simão Pessoa

Por Ivan Lessa

Hoje, depois do almoço, eu participei de um programa de rádio, sobre livros, lá para uma estação de São Paulo. Programa, aliás, com nome de samba-canção na voz, de preferência, do Lúcio Alves: “Certas Palavras”.

Eles queriam saber de mim o seguinte: o que é que eu ando lendo aqui em Londres, quais são as novidades nas livrarias, o que é que eu recomendo.

Como de hábito, entrei em solilóquio incontível, como sói acontecer com os melancólicos príncipes dinamarqueses. Acho que essa é a única maneira que eu tenho de pensar: falando em voz alta. Certas pessoas escrevem para saber o que acham. Eu falo. E é uma parada para me conter. Consequentemente, sou aquilo que o vulgo chama de falastrão palpiteiro. Não discordo. Não sou ordeiro, não acredito na ordem, desconfio de tudo que cheire a progresso, essas bandeiras todas.

Que eu me lembre – e todo cara que fala pelos cotovelos se esquece do que andou dizendo que eu me lembre, de repente vi-me envolvido numa verdade da qual só me dei conta ao articulá-la: eu não tenho a menor confiança em livro. Livro não me inspira o menor respeito.

É que livro nós, os brasileiros, levamos muito a sério, talvez por existirem com tanta escassez de qualidade. Principalmente em se tratando de ficção nativa. O resto? O resto a gente vai e traduz, ora.

Eu leio simultaneamente uns três livros. Quase sempre ficção americana, algo em português, quase sempre Machado (não temos muito mais que o Bruxo do Cosme Velho), e uma enxurrada de publicação especializada sobre livro, sobre autores. Quer dizer: eu leio muito mais sobre livro do que livro em si. E o livro passa então a funcionar como objeto perfeito, encerrado em mistério, decifrado, analisado e esmiuçado por especialista regiamente pago para a resenha, a crítica e o ensaio.

Depois sou o protótipo do rato de livraria. Sou capaz de ficar meia hora folheando as novidades da semana. Leio o parágrafo inicial, dou uma folheada, cato uma frase aqui e outra ali, pego o jeitão do bruto, confiro orelha e contracapa. E eis o livro fechado e encerrado e agora é esperar a resenha para ver se o perito concorda comigo que o romance está morto e nada mais tem a dizer.

No que se passa automaticamente à não-ficção. Às biografias, autobiografias, análises literárias, memórias, volumes de cartas. Debaixo disso tudo, cada vez mais enterrado, o livro, o romance, seja Proust, Joyce ou Umberto Eco.

Além do mais, o clima na Inglaterra não conduz à ficção experimental ou de vanguarda, que, num mundo ideal, seria a que mais me interessaria. Mais me interessaria porque nunca descobri nada de muito importante num livro. Descobri muito mais sentado no banco da praça discutindo com a namorada do que em A montanha mágica do Thomas Mann. Senti muito mais aquela manhã de sol em Copacabana do que o suicídio de Ana Karenina de Tolstoi. Um amigo me deixou muito mais perplexo no bar do que o Leopold Bloom tomando um porre com o Stephen Dedalus do James Joyce.

O que todos os romances me deram foi, muito raramente, uma vaga lembrança do que foi o banco da praça, a cara da namorada, o jeitão do amigo, aquela manhã de sol. Mas o que eu senti, ah, isso ninguém nem nada chegou perto. Eu, como você e você e você, estava, estou, estamos vivos. Um romance é a coisa mais morta do mundo. E não adianta dar o golpe da releitura. Ele continua lá, paradão. Cada vez dando menos. Então vai e se aplica o golpe do bisturi: dissecá-lo para entender. E aí se perde o banco da praça, a manhã de sol etc. etc. etc.

Estou sendo claro? Claro que não. Fui falar de livro. Livro nunca é claro. Faz um escuro danado, o tal do livro.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment