Por Joaquim Ferreira dos Santos
Pagar cofrinho não tem nada a ver com qualquer escândalo político-financeiro que você tenha acabado de ler no jornal. É o outro lado da moeda, o princípio do prazer e, no máximo, a corrupção dos sentidos. Antes assim. Quem paga cofrinho não deixa dízimo para o PT, não recolhe tostão para fundo de campanha, não libera verba para a compra de votos dos deputados, muito menos quer saber de caixa dois. Não se amarra em dinheiro não. Faz tudo de graça, apenas pela desgraça de saber estar buliversando a paz dos que a vêem pagando o tal. Não quebra o regimento interno da Câmara. Pelo contrário. Agrega questão de ordem estética, senhor deputado.
Eu me tenho posto aflito diante da TV Senado e sei. Pagar cofrinho, por mais benemérito e estupefaciente que seja num contexto nacional tão triste, não chega a ser um gesto de ação social benemerente – e ainda bem que assim seja, que o país está cheio de demagogos e vossas excelências. É uma brincadeira da moda.
O governo não cai, o dólar não flutua, a balança de pagamento fica na mesma. A Comissão Parlamentar de Inquérito por sua vez nada pergunta ou quer saber, porque a tudo vê e vê que em nada dessas secretárias lindas que passam há dolo. Não há golpe baixo, mas a cintura baixa. É apenas arte. Beleza. A governabilidade dos corpos. O ousado caminhar da espécie. Transcreva-se nos autos da sessão, senhor relator.
Quando a mulher paga um cofrinho, e só ela seria capaz da dádiva diabólica, está rindo alto desses homens sérios de nomes macambúzios, Genoínos, Delúbios, todos de olho roxo. Dessas vossas senhorias carecas de tanto carregar estresse no bolso, todos suspeitos de jogar na cama dos hotéis não mais o corpo da amante cheio de gana, mas o couro cru da mala amada cheia de grana. A mulher que paga um cofrinho assina embaixo. Sozinha. Eis o grande escândalo da sinceridade. Não precisa de avalistas.
Ela, de corpo presente, na frente o umbiguinho saliente, atrás, os olhos da gente, ela avaliza em confiança plena que todas as suas companheiras de partido estão certas. Sim, devem passar mais embaixo o meridiano de Tordesilhas que antes lhe vinha na cintura e aceitar como definitivo que o sentido desta vida é quebrar o sigilo, cinco dedos ao sul do umbigo, dos seus bens mais escondidos. É deixar se examinar pela CPI dos Correios e não ter nada a declarar se não o óbvio que lhe vai visível e escrito sob o cós baixo da calça: viver é sentir um friozinho gostoso na tribal que irrompe do cóccix, sobe pela espinha e quando chega às costas dá asas à imaginação.
É uma das cenas urbanas mais inquietantes dos últimos tempos, a da mulher que caminha, principalmente a mulher que senta com a cintura da calça cortada tão baixa que permite a visão do terceiro segredo de Fátima, da fórmula da Coca-Cola, do trajeto da Ursa Maior no céu de outono, da ossada da Dana de Tefé, do momento exato do big-bang, da multiplicação dos peixes, do três-dedos-do Didi e doutros tantos mistérios que assombram a humanidade.
Há quem peça, falsos pudores em tempos de podres poderes, menos revelações públicas. Eu não chegaria a tal cinismo. Continuem. Abram suas asas, abram minhas contas e locupletem-se como lhes for de desejo. Avancem implacáveis como o quarteto mágico do Parreira, quebrem meu sigilo telefônico e timidez. Sussurrem na minha orelha cansada de tantas denúncias a felicidade poética das coisas que eu não sei. Eu entregarei de bom grado todos os meus agrados, toda minha criação de gado, meu cargo, a presidência do partido e, bêbado de euforia, as garrafas de absinto com a cara do Van Gogh que minha tesoureira trouxe de Praga.
Manuel Bandeira vivia de imaginar o que ia por baixo da brancarana azeda, da mulata cor da lua vem saindo cor de prata, da celeste africana, as suas três mulheres do sabonete Araxá. Sofria. Ninguém pagava nada antes, só depois que casasse e a luz do abajur lilás apagasse. A repressão doía n’alma, mas enchia os livros. Com certeza Bandeira, e todos os bardos tarados que encheram nossas páginas de delírios geniais, trocaria o reino de sua lírica antipassadista pelo alumbramento das musas modernas.
Os homens corruptos enchem o cofrinho. As mulheres pagam. Há cada vez menos segredos e motivos para a Grande Literatura. Mas ainda não será dessa vez que o cinismo beletrante me fará lamentar a troca. As letras pátrias vão mal. Azar, azeite, não me são parente. Não faltam por outro lado, vira, meu bem, vira, sonetos e redondilhas nas mulheres que passam o cofrinho cor de prata na Rio Branco.
Essas deusas que me invocam e me hipnotizam com uma nesga mínima de seus sete jardins suspensos fazem-no apenas porque lhes é da espécie e paraíso. Mostram-se à concorrência pública, abrem licitação nos conformes do regimento interno transcrito no coração. Dispensam publicitários. Não pedem recibo ao tesoureiro, não aceitam nada por fora. Chamam para dentro e vão para cima, eis como elas agora são no grande congresso nacional.
A cada temporada sublinham com a roupa, ou a falta dela, um recanto do Éden Divino que carregam. Pagam cofrinho agora com a mesma falsa ingenuidade que nos anos 60 usaram para vestir a minissaia, nos 80 o biquíni asa-delta, nos 90 as blusas transparentes e nos 2010, oh meu Deus me dê olhos para estar aqui e, Pero Vaz de Caminha, cronicar ao rei.
Elas não querem cargo algum nesse governo, muito menos no que virá. Pagam cofrinho apenas pela curtição dos pêlos, pela arte sublime de tirar o tapete sob os pés dos homens e fazê-los voar para longe do plenário careta.
Elas pagam cofrinho, insinuam o paralelo de Greenwich, a linha divisória do gramado, o caminho das pedras, porque foram eleitas por Ele com esse destino e divina missão. Sou-lhes correligionário. O voto distrital, o parlamentarismo, nada disso vai resolver a tragédia brasileira. Sufrago nas urnas as que vão para as ruas e, nesses tempos de receber, pagam cofrinho. Voto-lhes majoritário. Elas querem implantar o desgoverno dos frêmitos, o impeachment da razão, o pulsar do quasar mais longínquo e a reforma ministerial definitiva, aquela que deixe pingar na vida de todos nós a propina que interessa, o mensalão da felicidade. Estou dentro. O resto é esse falso decoro parlamentar que está aí.