Por Joaquim Ferreira dos Santos
Eu estava no MAM do Rio, na primeira fila do desfile de moda, vendo a Gisele Bündchen passar e, cá entre nós, vou ser sincero. O Grande Otelo não me saía da cabeça.
Foi sei lá quando, também não me lembro bem qual era o exato assunto. Talvez samba das antigas. Só sei que, do lado de cá do telefone, intrépido repórter em ação, eu perguntei alguma coisa para o Otelo e ele, ator fabuloso e também compositor, autor do clássico “Praça Onze”, autoridade na história da música popular, ele estupefaciou-se do lado de lá com o que tinha ouvido da minha arguição.
“Meu filho”, começou, “você é freelancer, não?” – e imediatamente eu o imaginei com aqueles olhos esbugalhados que, quando entravam em close na tela, eram gargalhada certa na platéia. Dessa vez, os olhos arregalados que eu desenhava do outro lado do telefone pareciam marcar o início de um filme de terror.
Eu disse que de maneira nenhuma, “seu” Otelo, estava de carteira assinada – sem saber exatamente aonde o grande nome das artes nacionais queria chegar com aquela dúvida estranha. Suspeitei que Otelo, de voz muito tensa e enérgica, bem diferente daquela serelepe que usava nas chanchadas e embalou de piadas os momentos mais alegres do país, Grande Otelo parecia contrariado com o que eu lhe havia perguntado.
Tenho certeza de que a minha questão era correta, acho que algo sobre a ala das baianas constituída por estivadores do Cais do Porto, coisa comum no início dos desfiles. Eu já havia entrevistado Ismael Silva, fundador da primeira escola. Sabia das gambiarras que iluminavam os cordões e também, como era costume nos tempos da Praça Onze, da técnica de os compositores improvisarem, ao vivo, de primeira, a segunda parte do samba. Eu podia não ser um Nei Lopes, mas estava compenetrado e pimpão no meu sapato bicolor de raiz. Sabia o terreiro-tia Ciata em que pisava.
Otelo, no entanto, foi em frente, tentando parecer cruel como se estivesse vendo em mim um novo Oscarito para sparring. Quando ele soube que eu era do quadro fixo da revista Veja, revelou-se, ao seu jeito Atlântida de ser, sinceramente descrente.
“Meu filho, essa sua pergunta é pergunta de freelancer!!”
Até hoje eu não sei direito o significado da expressão “pergunta de freelancer” com que o ator me nocauteou. A princípio o freelancer é apenas um profissional sem vínculo empregatício. O fato de estar livre, trabalhando para a empresa que quiser, não informa uma qualificação inferior a seu respeito. Mas eu estava falando com Grande Otelo, companheiro daquele Oscarito que certa vez, numa comédia, acariciou a barriga inchada depois de uma feijoada, fez uma carinha fofa de felicidade e disse para o mesmo Grande Otelo que agora me estava ao telefone:
“Ih, estou com uma idiossincrasia!”
Otelo tinha sido criado nessa escola de poetas-mambembes, os que jogam as palavrinhas para o alto e lhes inventam novos valores, delícias estapafúrdias, quando elas caem de volta em suas línguas. Deve ter sido por isso e, onde quer que ele esteja, quase sempre rodando em algum VHS da minha casa, mando-lhe um beijo daqueles que dava com a boca imitando uma ventosa.
Hoje, superado o momento em que a expressão podia ter feito algum estrago na minha autoestima, depois de gasto bom dinheiro através do tempo com sessões de análise que esconderam qualquer vestígio de sua carga maléfica em minhalma profissional, gosto de ouvir a voz do Otelo me dizendo com exclusividade esse texto que parece típico do nonsense das comédias da Atlântida.
Eu me lembrei de tudo isso quando vi Gisele desfilando, e era o que tentava dizer ao iniciar esta enorme idiossincrasia, porque fui acometido, no silêncio de minha cabeça, por uma daquelas dúvidas assombradas que desde o papo com Grande Otelo costumei identificar como “pergunta de freelancer”.
Já acompanhei uma borboleta amarela batendo asas pelas ruas do Centro, vi Gérson “canhotinha de ouro” passeando com a bola presa nos pés, segui o trânsito de uma aurora boreal em Estocolmo, vibrei com corridas de submarino no Morro do Pasmado, estava na multidão de 100 mil marchando contra a ditadura, boquiabri-me com David Parsons voando no Municipal, deslizei num trem-bala pelo Japão e sei, depois de registrar todos esses movimentos do Homem sobre a Terra, posso dizer que sei – nada se compara à arte sublime da mulher que caminha.
O samba-canção queria a paz de criança dormindo. A crônica pós-hodierna quer o nó na garganta do homem que observa a mulher andando. Há os que a preferem flanando no momento em que não se percebem observadas. Seriam menos técnicas e próximas da criança de asas no berço de Dolores Duran. Eu, humilde, passo. Não tenho preferência.
Um pé depois do outro, as ancas projetando-se em contraponto para o lado inverso da perna que avança. Algumas balançam mais, outras simplesmente transformam o ilíaco em seta – e vão, em linha reta, deixando que as sensações da vida se abatam sobre os que ainda têm fôlego e assistem. Gary Winogrand, meu fotógrafo de cabeceira, fez um livro inteiro sobre isso, Women Are Beautiful. Tom e Vinicius criaram em Ipanema o Hino Nacional num êxtase de alumbramento sobre uma delas que passava. Não é corpo, não é carne, é arte etérea do espírito de Deus movendo-se de novo e de novo sobre a face das águas. Rubem Braga, que da varanda sobre a Barão da Torre tudo via, percebeu que uma delas não flanava apenas com as pernas. Como dizer que o movimento de seus cabelos castanhos nos faz bem?
Eu vi Gisele Bündchen caminhando sobre a grama do Aterro, ia lhe perguntar que nuvens eram aquelas sob seus tornozelos, como agradecer a brisa que borrifa em nossos artelhos, para onde, se ela sabe, caminha esse arco-íris de pernas brancas pretas amarelas, e, afinal, para que tanta perna, meu Deus? Mas foi aí que lembrei do grande Grande Otelo e fechei a boca. Calei o estupor idiossincrático e, em frente ao divino, tive a humildade de apenas abrir os olhos. Eles não fazem perguntas de freelancer.