Causos de Bambas

Ele, o muro pornográfico

Postado por mlsmarcio

Por Marcos de Vasconcellos

O Colégio do Caraça era uma ameaça tão grande quanto o psicopata e degenerado sexual Febrônio índio do Brasil e ambos constituíam um sério perigo na minha infância e na de outros meninos. Quando minha mãe via aproximar-se o limite das minhas múltiplas indisciplinas, dizia as palavras mágicas que restituíam o equilíbrio, tanto em casa quanto no colégio:

– Ou você toma modos ou te boto no Caraça.

Porque o Caraça, o velho Caraça, morto num incêndio em 1968, era o templo feroz da disciplina férrea, siderúrgica como o Estado que o abrigava, Minas Gerais. Fundado no tempo do Império, transformou-se a partir de 1821 no mais afamado centro de estudos humanísticos do Brasil, além de constituir o mais duro e espartano estabelecimento de ensino do país, em todas as épocas.

O Colégio São José de Ubá – que agora completa 80 anos – foi fundado por um ex-aluno do Caraça e dele herdou os princípios rígidos, quase brutais, impostos pelos padres lazaristas que substituíram os fundadores, os religiosos portugueses da Congregação da Missão de São Vicente de Paulo.

Ferdy Carneiro, pintor, gravador, desenhista industrial e hoje o austero – quase – Diretor do Museu do Segundo Império, instalado na casa que pertenceu à Marquesa de Santos, foi aluno do Colégio São José, em regime de semi-internato. Apesar de ser um estabelecimento leigo, o São José era dirigido com as mesmas mãos de ferro dos antigos lazaristas do Caraça por um jesuíta, padre Luís.

Uma tarde, aquelas tristes tardes da antiga Minas, de um crepúsculo calado, montanhoso, Ferdy e Anatole – Anatole Cordeiro da Costa – iam para casa depois de mais um dia de repressão, outro dia de pesadas lições, de silêncios impostos pela lei sombria do sombrio colégio.

Anatole, ao passar pelo muro que limitava os fundos do campo de futebol do São José, pegou de um tição e desenhou na virgindade alvíssima da parede um falo gigantesco, descomunal, irretocável.

Quando o sol amanheceu e iluminou o popular e secreto pai-de-todos, o pênis anatólico riscado a carvão na imaculada brancura do santo muro, o padre Luís anoiteceu ainda mais o noturno colégio com uma explosão surda, sangrenta:

– Não quero saber quem foi o autor da obra – rosnou ele, gritando, mordendo os dentes. – Todos, todos, sem exceção, estão presos!

O pênis lá, ereto, assistiu à cena, soberano, onipresente.

Chamou-se um servente que, munido de balde d’água, vassoura e panos, dedicou-se a devolver o silêncio ao muro berrador. Em vão.

– Está até mais de acordo – comentaram. – Agora dá pra se ver de longe. Engrossaram o traço.

Fama volat, disse Virgílio. As notícias voam, e em breve toda a cidade sabia do sucedido, e, às claras ou às escondidas, a população de Ubá, sob múltiplos pretextos, passava ao largo do Colégio São José, na estrada que o dominava, para assistir o mural do Anatole.

Foi a vez do pedreiro remover a peça do muro. O homem raspou cuidadosamente com a colher o traço indecente.

Ficou parecendo uma gravura da Ana Letícia – comentou o Ferdy, quando me contou o episódio. – Juntava gente para ver, para apreciar a obra.

Mandaram emassar o muro pecaminoso. Pura perda de tempo. Se chovesse chuva grossa e mesmo miúda, lá apareceria ele, desenhado. Parecia coisa do tinhoso, maldição, assombração.

Padre Luís, apoplético, perdia batalha após batalha para o falus gigante, raro monumento imoral saído das entranhas pecaminosa de um arruaceiro anônimo que conspurcou a imagem sacrossanta do colégio que reverenciava o pai de Jesus.

– Cal! Cal! – urrava o padre, tentando exorcizar a parede pornográfica.

E caiavam o muro, uma, duas, duzentas vezes. Inutilmente. A obra do tição resistia a todas as perseguições e reaparecia sempre cheio de vida, de saúde, de alegria.

Aliás, se não fosse a trágica providência do padre Luís, o pênis anatólico estaria lá até hoje, assombrando os moradores e os eventuais turistas que iam conferir de perto a obra impressionista.

Inspirado no desenho, o padre demoliu o muro no cacete.

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