Por Simão Pessoa
Segundo o historiador Luiz Antônio Simas, o gurufim era uma brincadeira específica que se fazia durante velórios. Para distrair o ambiente, alguém começava: “Gurufim não está aqui, foi pro mar. Gurufim não come…” O coro respondia: “Quem come então?…” E alguém respondia: “O tubarão!” Na outra rodada, alguém respondia: “A tainha!”. E, durante o resto da noite, os peixes iam se sucedendo: a baleia, a corvina, o badejo, etc.
A brincadeira acabou designando as festas de velórios, muito comuns entre descendentes de bantos e no mundo do samba. Festeja-se para espantar a dor e garantir a partida tranquila da alma. O folclorista Câmara Cascudo sugere que a palavra seja originada de golfinho. Um exemplo de dialectação. Nas culturas antigas do mediterrâneo era o golfinho, que levava as almas dos finados para o reino dos mortos. Algumas civilizações africanas ligavam morte e mar.
Na tradição popular, ainda há outro componente nessa encruza. Dizia-se que a morte, quando levava um, levava três. Os mais velhos falavam, então, que a festa era também para distrair a morte, que assim passava reto e não ficava de olho em mais duas pessoas. A brincadeira específica do gurufim praticamente sumiu. Mas o hábito de beber e cantar ainda é forte no mundo do samba, que chama de gurufim esse velório com festa.
Nó último dia 23 de maio, Izinha Toscano postou esse texto na sua timeline do FB:
“Hoje faz um mês que meu pai entrou andando no hospital para fazer um procedimento relativamente simples (embora não haja procedimento simples) e desde então ele permanece internado na UTI. Foram várias complicações: AVCs, parada cardíaca, reanimação, pneumonia, diálises, possibilidades de sequelas irreversíveis, muito choro, sensação de impotência, desânimo… Nesse período também sentimos muita felicidade por pequenas imensas conquistas.
Aprendemos a nos comunicar por olhares, gestos, apertos de mão, leitura labial; aprendi também o que é o tal choro de felicidade, quando ele abriu os olhos ao ouvir a minha voz depois de sair do coma e quando o ouvi falando “Oi filhota” com uma voz robótica. Aprendi a rezar e conversar com Deus, seja pedindo pela saúde do meu pai, seja agradecendo pelos 30 anos ao lado dele. Aprendi a orar esperando a vontade divina ser feita mas sem perder a fé na melhora dele.
Papai tem surpreendido os médicos com a evolução positiva do estado de saúde, tanto que ele ganhou o apelido de ‘touro brabo’ porque não fica quieto. Mesmo que seja tudo muito lento, é um passo de cada vez e as pequenas conquistas são comemoradas.
Nesse último mês eu e minha família recebemos demonstrações de afeto que são imensuráveis e somos muito gratos! Levamos cada recado recebido pra ele todos os dias. O carinho tem sido muito importante e acalentador nos momentos de desespero e desânimo. Agradecemos a todos que entram em contato e deixam seu apoio nesse momento, temos fé que em breve daremos mais notícias boas sobre a recuperação dele!”
Na manhã desta quarta-feira, dia 29, foi a vez da Conceição Toscano dar a má notícia:
“Infelizmente nosso Afonso não resistiu a uma parada cardiorrespiratória e, cercado de muito amor, carinho e cuidado, desencarnou. A nossa dor é de saudade, já que o verdadeiro amor independe da presença. Nossos laços não acabam aqui, a vida continua sempre! Afonso já está no caminho de luz!”
Nesse gurufim solitário pela memória de um parceiro de quase 40 anos (nos conhecemos no Bar do Armando, em 1981, fizemos juntos várias marchinhas para a BICA e conversamos pela última vez em dezembro do ano passado), nada melhor do que relembrar sua maravilhosa história de vida. Me acompanhem nessa viagem.
Estamos no início dos anos 30. Dona Altina, uma senhora recentemente chegada de Canutama, leva a filha de quatro anos para uma consulta de rotina em um Posto de Puericultura localizado nas proximidades da Praça da Saudade. Caçula de 19 filhos, a criança não consegue ganhar peso. Ela é tão mirradinha que ganhou o apelido de “Izinha”.
O médico fica perplexo. Com quatro anos, Izinha tem o desenvolvimento físico de uma criança de um ano. Após uma série de exames, ele conclui que a criança sofre de “raquitismo crônico” e dá o veredicto final: o óbito da garota seria uma questão de meses.
Aos prantos, dona Altina deixa o posto médico com a criança no colo e se dirige à Igreja de São Sebastião. No altar, faz um pedido ao mártir da Igreja Católica que, em vez das honras do palácio imperial, preferiu a honra do martírio para ser soldado de Cristo. Se sua filha sobrevivesse, seria batizada como Sebastiana. O santo atendeu suas preces. Dona Altina honrou a palavra.
Quinze anos depois daquela malfadada visita ao pediatra, Sebastiana, aliás, Izinha, havia se transformado em um mulherão. Pense na Juliana Paes. Perde. Além do corpo escultural, Izinha tinha adquirido uma voz afinada e limpa, com um timbre parecido ao da cantora Almira Castilho, mulher de Jackson do Pandeiro. Esse São Sebastião é danado!
Com 20 anos, Izinha resolveu encarar o show de calouros “Tem Gato Na Tuba”, apresentado pelo famoso Zé Coió. Foi eliminada em duas eliminatórias, mas passou na terceira e, de quebra, conquistou o papel principal no musical “Chiquita Bacana”.
A morena sestrosa não passou despercebida pelo olhar clínico do primeiro sargento-músico Antônio Gonçalves de Melo, sax-alto e clarinetista do 27º Batalhão de Caçadores. Os dois começaram a namorar.
Em 1951, com apenas 23 anos, Izinha engravidou. Um escândalo para as famílias da época. Principalmente porque Izinha era solteira. Se não bastasse, o sargento era casado e pai de três filhos, na cidade de Recife (PE), de onde havia vindo para uma temporada em Manaus e para onde voltaria no ano seguinte.
O músico Domingos Lima, que morava em frente à casa da família de Izinha, no Beco do Macedo, impediu que os seus (dela) irmãos capassem o sargento.
Para sustentar o rebento, Izinha encarou pra valer a carreira artística. Virou vocalista do Regional Mariauá (Domingos Lima, violão, Máximo Pereira, violão de sete cordas, Toinho, sax e clarinete, Anúbio Celestino, pandeiro, e Zito, irmão de Danúbio, no bongô) e foi contratada para o “cast” da Rádio Difusora como atração fixa dos shows “Gelomatic”, que tinha como apresentadores Belmiro Vianez e Rômulo Gomes.
A grande diva ocupou esse posto até 1959. Aí, resolveu parar e dar lugar aos talentos emergentes, como Helena Silva e Kátia Maria.
No ano seguinte, o então governador Gilberto Mestrinho a nomeou agente administrativa do leprosário Colônia Antônio Aleixo.
Nesse meio tempo, o moleque Afonso Toscano passara a ser criado por uma das irmãs de Dona Izinha, Tia Lourdes, que morou a vida inteira na mesma rua Xavier de Mendonça, 25, na Aparecida, onde faleceu com mais de 90 anos. O menino só recebia a visita da mãe a cada 45 dias.
Mãe e filho voltaram a morar juntos, no Beco São Domingos, na Matinha, em 1965, época em que Toscano foi contemporâneo de Guto Rodrigues nos campinhos de peladas da velha Manaus.
Nesse mesmo período, Toscano foi aluno interno da Fundação Presidente Kennedy – um colégio misto tanto por abrigar meninos e meninas quanto pela harmônica convivência entre o religioso e o profano e teve por companhia os poetas Arnaldo Garcez e Marco Gomes.
Afonso Toscano herdou a musicalidade de Dona Izinha e começou a estudar violão, enquanto concluía seus estudos. Em 1974, com 22 anos, montou a banda “Evolução da Revolução” (Almir Fernandes, bateria, Bernardo Lameira, guitarra, Baby Babão, contrabaixo, Beto Beiçola, violão, Ferreira, teclados, e o próprio Afonso na segunda guitarra).
Ele também se formou em Educação Física, pela Ufam, em 1978, e passou a lecionar a disciplina nos colégios Estadual e Brasileiro.
Aposentada desde 1982, Izinha costumava abrir o vozeirão nas manhãs de domingo e mandar ver: “Convidei a comadre Sebastiana / para dançar e xaxar na Paraíba / ela veio com uma dança diferente / e pulava que só uma guariba / e gritava a, e, i, o, u, ípsilone”. E tome xote, baião, rumba, bolero e o diabo a quatro. Os vizinhos vibravam.
Num domingo de março de 1992, entretanto, a tradicional cantoria não se fez ouvir.
Afonso, que desde que casara com a administradora de empresas Conceição Barbosa, em 1985, ligava religiosamente para a mãe todo domingo, ficou intrigado com as ligações que não eram atendidas.
No dia seguinte foi ver o que estava acontecendo. Dona Izinha estava caída ao lado da cama, numa tentativa inútil de alcançar o telefone. Havia enfartado na madrugada de domingo. A demora no atendimento deixou sequelas irreparáveis. Ela ficou com um lado paralisado e, o mais grave, impedida de cantar pela atrofia nos lábios.
O músico resolveu levar a mãe inválida para morar com ele e Conceição, que já tinham duas filhas, Haydée e Izinha.
Pelos 11 anos seguintes, Afonso Toscano cuidaria pessoalmente da mãe enferma, fazendo das atividades mais comezinhas um exercício diário de amor filial e cidadania. Era ele que dava banhos de asseios, ajudava na fisioterapia, a levava para passear na cadeira de rodas, lhe dava comida na boca, mudava sua posição na cama, essas coisas.
Havia um inconveniente. Como sua esposa Conceição, sabe-se lá por que cargas d’água, era constantemente hostilizada pela sogra, os dois entraram em um acordo e alugaram uma casa de dois andares. Em cima, morava Conceição e as duas filhas do casal. Embaixo, o músico e sua mãe.
O casal também desenvolveu um código particular para iniciar seus colóquios amorosos. Quando estava fissurado, Afonso Toscano começava a assoviar, no andar de baixo, uma das nove “Bachianas Brasileiras”, do compositor Heitor Villa-Lobos.
Ouvindo os assovios, Conceição chegava até a parte superior da escada que ligava os dois aposentos, abria um sorriso de orelha a orelha, e voltava a entrar no quarto, indo se alojar diretamente na cama do casal. Afonso subia em seguida.
Algumas vezes, entretanto, o músico estava entretido com prosaicos afazeres domésticos, quando, de repente, sua esposa aparecia na parte superior da escada e indagava, como quem não quer nada:
– Você assobiou, negão?…
Afonso Toscano nem respondia. Já subia a escada quase correndo.
Dona Izinha Toscano faleceu em outubro de 2003. Não teve tempo de assistir sua neta Haydée entrando na faculdade de Desenho Industrial, nem a outra neta, Izinha, trilhando o mesmo caminho.
Fundador e compositor da irreverente Banda Independente Confraria do Armando (BICA), Afonso Toscano e sua inseparável Conceição sempre foram duas pessoas do mais profundo bem-querer de todos os biqueiros da cidade. E, hoje, a eterna diva Dona Izinha deve fazer parte de algum coro celestial comandado pessoalmente por São Sebastião. O santo protetor da BICA é danado!
Em 2008, Afonso Toscano lançou o álbum “Enredo”, que contou com a participação dos músicos Almir Fernandes, Bernardo Lameiras, Gilson Rodrigues, Célio Vulcão e Miguel Pronsky, cujos destaques eram os hits “Viver Noturno”, “Meninas da Noite”, “Enredo”, “Pessoa de Bem”, “Notívago” e “Manaus Mana”.
É esse disco que vou ficar ouvindo durante esse gurufim solitário. Obrigado por tudo, negão!