Por Amaral Cavalcante (*)
Joana Doceira vendia iscas de mamão cristalizado, jenipapo seco, umas balas de mel pegajosas e doce batido em tacho de cobre. O de batata vinha com grânulos esquisitos, o de goiaba açucarava em cima. Agora, no de araçá, o azedinho enganoso de fruta mal lavada até que compensava. Mas só a meninada lhe fazia freguesia.
É que tinha também um quebra queixo briguento, impossível de morder por cariados e banguelas, inesquecível.
Do tabuleiro lodento ela extirpava com certo esforço uma lasquinha do doce e competia a nós, meninos de Simão Dias, brigar a ferro e foice para degustá-lo com a precária dentição que, descuidada, doía-nos em cáries e incomodações.
O quebra-queixo na boca resistia um tanto, mas ia liberando pouco a pouco os seus mistérios de açúcar: lembranças de cocadas velhas, tons longínquos de maria-mole e sobressaltos de baunilha.
Joana Doceira deixava restar no quebra-queixo o gosto primordial da maravilha: o sabor de goiabas amassadas, um gosto de chão arrematado nas frutas do quintal, maduras de preguiça e alumbramento.
Ficava no oitão da minha casa a venda dela, que nem platibanda tinha. Lá dentro, após o batente de ardósia polida por gerações de pezinhos, um escuro balcão paupérrimo de festa.
Prateleiras destroncadas expunham pucumãns e intrincados alfenims de bosta de mosca. Falanges de baratas bêbadas crocritavam babadinhos de celofane, tão senhoras de si que pareciam coadjuvantes, aprendizes da cozinha se apresentando à rara freguesia que chegava com seus tostões em punho.
Sá Joana Doceira estava muito velha!
Tínhamos que gritar três vezes e esmurrar o balcão com vigorosos chamamentos para que, lentamente, balançando os peitões e arrumando a carapinha, Sá Joana aparecesse.
Adernava a bundona enorme, parcamente disfarçada num camisolão de madrasto. Vinha desentalando os panos do fiofó, certamente imundo, enquanto abria um sorriso de negra velha com o olho derramado em nossos dez tostões.
Um dia fui além do balcão. Tinha vontade de ver os armários de imundície de onde imergiam o corrompido sabor dos meus doces queridos.
Desci dois degraus. No catre à esquerda, lençóis sujos. Na parede, uma Senhora Sant’Ana ensinava Maria a rezar. Um cotoco de vela na prateleirinha pedia por Joana, que adjutórios quereria ela?
Depois, a cozinha: trecos, pandarecos, um fogão de lenha crepitando aceso cozinhava doces. Mais eis que daí uma meia porta de tramelas fáceis me acessou o quintal!
Esta crônica chega até aqui para maravilhar o leitor. O quintal de Joana era um segredo palato, guardado nas assombradas cavernas da infância de qualquer um.
Sombreado de goiabeiras e romãs, tomado pela natureza afável dos quintais recônditos, era um lugar de sonhos. Um pé de maracujá guerreava com as telhas sob as bênçãos de um sapotizeiro, tão velho quanto a cristandade. No chão, acompanhando o rego de águas detritas, a colorida procissão de cravos.
Lá longe, ao pé da cerca, uma roseira tenaz ria de tudo, com seu cheiro de amor e rococós de pétalas. Um pé de abacate havia, goiabeiras perebentas, uma floresta de araçá.
Dois mamoeiros heráldicos e uma jenipapeira decente sombreavam verbênias de vários matizes, e adálias de tronco esguio perguntando vida a dezenas de enxeridas margaridas, doidas pra serem colhidas. Elas sim, que se multiplicam elegantes e satisfeitas margaridam a vida.
Nunca voltei de lá. Fiquei no mundo doce de açúcares imemoriais onde Joana vivia a inventar paladares. Bruxa velha, imunda e boa, a Joana Doceira dos meus sujos sabores.
(*) Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e boêmio. Contatos através do email: folha.da.praia@terra.com.br