Causos de Bambas

Kokó Rodrigues e o ralho de Marieta Severo

Postado por mlsmarcio

Dono de uma coleção de uirapurus escondidos na garganta, o cantor Kokó Rodrigues nasceu em Santarém (PA) e se mudou para Manaus no início dos anos 80. Ele começou a cantar na noite fazendo shows para turistas na pérgula da piscina do Hotel Tropical, sendo acompanhado pelo violonista Mestre Carlito.

Empolgado com aquele rapaz boa pinta, cuja musicalidade parecia uma feliz combinação de Chico Buarque, Milton Nascimento e Noel Rosa, Rodolfo Marques, um dos diretores da Enasa, a empresa de navegação de transporte de cargas e passageiros da rota Manaus-Belém, contratou o músico para animar as noitadas de um catamarã dedicado exclusivamente ao transporte de turistas.

Na primeira noite em que se apresentou a bordo do catamarã, Kokó Rodrigues foi literalmente hipnotizado por uma potranca norte-americana, que não parava de olhar para o cantor. Resultado: mesmo sem falar uma única palavra em inglês, o cantor acabou no quarto da gringa e deixou a vida lhe levar. Fez barba, cabelo, bigode, cavanhaque e sobrancelha.

No dia seguinte, ele já começava a dominar os rudimentos da língua inglesa por meio de uma frase que a gringa não parou de gritar a noite toda:

– Oh, my God! Oh, my God! Oh, my God!

Kokó Rodrigues passou seis meses fazendo a rota Manaus-Belém a bordo do catamarã da Enasa e prestando assistência sexual às solitárias turistas estrangeiras. Só não se transformou em um poliglota porque suas parceiras se limitavam a dizer sempre, invariavelmente, a mesma frase: “Oh, Dios mio!”, “Oh, mon Dieu!”, “Oh, mein Gott!”, “Oh, mijn God!”, “O mój Boże” e assim por diante…

De volta à boêmia da cidade, Kokó Rodrigues continuou se apresentando em todos os palcos de bares, lounges e boates onde valesse a pena cantar: Vereda Tropical, Opção, Consciente, Galvez, Refúgio, Amoricana, Madrigal, Paulo’s Bar, Porão da Bossa, TapereBar, Guadalajara, Barraka’s Drinks, Messejana, Xorimã, Moronguetá, Clube do Samba, Nostalgia, Orvalho da Noite, Casinha Branca, et caterva.

Em setembro de 1992, Kokó Rodrigues estava se apresentando no bar do Hotel Tropical quando percebeu a chegada no salão de Flora e Gilberto Gil, que estavam hospedados no hotel. O cantor baiano iria fazer um show musical no Teatro Amazonas no dia seguinte. Assim que Kokó encerrou a sua apresentação, ele e os demais membros da banda voaram em cima de Gilberto Gil para pedir autógrafos.

Durante a conversa com o simpático baiano, Kokó Rodrigues explicou que era fã incondicional de Chico Buarque de Holanda e que seu maior sonho era trocar meia-dúzia de palavras com o “cantor de olhos cor de ardósia”. Gilberto Gil disse que tinha o telefone de Chico Buarque, mas que tinha deixado sua agenda telefônica no quarto. O papo informal entre os dois continuou por mais cinco minutos.

Na hora em que se despediu, o baiano deu o número do quarto onde estava hospedado e pediu para Kokó ligar dali a dez minutos. Foram os dez minutos de espera mais angustiantes da vida do cantor poliglota, mas no final tudo deu certo: Gil realmente cumpriu a palavra e lhe forneceu o número da casa de Chico Buarque no Rio de Janeiro.

Kokó começou a ligar para a Casa de Chico Buarque de manhã, de tarde e de noite. Invariavelmente a ligação era atendida pela empregada Madalena, que pacientemente avisava que o patrão não estava em casa. Os dois já estavam se tornando íntimos. Depois de três semanas de tentativas infrutíferas, Kokó desistiu do jogo e parou de telefonar para o cantor.

Dois meses depois, durante um canavial de responsa na casa do advogado Nicinho Benoliel, os músicos presentes na tertúlia (Torrado, Kokó Rodrigues, Beto Beiçola, Alcides Pajé, Casqueta, etc), começaram uma discussão sobre quem era melhor compositor: Chico Buarque ou Caetano Veloso. Morto de bêbado, Kokó não apenas defendeu a primazia de Chico, como cometeu a imprudência de falar que tinha o número do telefone particular de seu grande ídolo. Baixou o espírito do cearense Mução no meio da galera: liga, liga, liga, liga, liga, liga…

Devia ser três horas da madrugada. Kokó ligou. Dessa vez quem atendeu foi Marieta Severo. Na época, a atriz estava participando da novela “Deus nos Acuda”, ao lado de Dercy Gonçalves, Claudia Raia, Glória Menezes e Aracy Balabanian.  A novela estreou com grande repercussão por ser vista como uma crítica aos escândalos de corrupção que pipocavam no momento. Um mês após sua estreia houve o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello.

Marieta Severo nem esperou Kokó Rodrigues se identificar e já foi pagando geral:

– Escuta aqui, ô filho da puta, você não tem mãe não? Porque só sendo muito filho da puta para ligar de madrugada para uma casa de família! A porra desse Brasil não tem mesmo jeito, puta que pariu! Isso aqui é o fim do mundo! A gente passa o dia trabalhando feito uma desgraçada, chega em casa pra descansar e vem um leproso lá da casa do caralho perturbar o nosso sossego… Não tem mais o que fazer não, seu imbecil?

Morto de bêbado e emocionado, Kokó começou a chorar copiosamente e repetir um mantra:

– É que eu gosto muito do Chico… É que eu gosto muito do Chico…

Marieta Severo não se comoveu:

– Como assim gosta do meu marido?! Você não tem o mínimo respeito por ele, seu vagabundo! Se tivesse alguma consideração com o Chico você não teria feito essa palhaçada de ligar de madrugada para a casa de uma pessoa que nem te conhece! De que planeta você é pra fazer uma merda dessa e achar que vai ganhar aplausos?! Se oriente, cabra safado, se oriente! Falando nisso, quem foi o filho da puta que te deu o nosso número?… Nós não costumamos dar o nosso número pra vagabundo nenhum…

Kokó, engolindo o choro:

– Foi o Gilberto Gil…

Marieta Severo parou o ralho, ficou em silêncio alguns segundos, aí voltou a falar:

– Liga pra esse número aí…

Assim que Kokó confirmou o número, ela desligou o telefone. Ainda meio nervoso por conta do ralho recebido, o cantor contou rapidamente o que havia acontecido. Baixou de novo o espírito do cearense Mução no meio da galera: liga, liga, liga, liga, liga, liga…

Kokó ligou. Do outro lado da linha atendeu Manolo, dono do bar Antonio’s, no Leblon. O cantor se identificou e contou o que havia acontecido.

– A megera te deu esse número? – divertiu-se Manolo. – Porra, então você está no seu dia de sorte. Na maioria das vezes, ela simplesmente manda a pessoa pra puta que pariu e desliga o telefone na cara…

Manolo confirmou que Chico Buarque estava mesmo no bar, mas tinha ido embora há cinco minutos, morto de porre. Mais: convinha não ligar de novo pra casa da megera se não quisesse começar a terceira guerra mundial. Kokó obedeceu e nunca mais ligou para a casa do “cantor de olhos cor de ardósia”.

Dez anos depois da presepada, Kokó Rodrigues conheceu o ator Antônio Pitanga no Teatro Amazonas e contou pra ele essa história. De volta ao Rio de Janeiro, Pitanga repetiu a história para Chico Buarque de Holanda, que se limitava a rir e repetir: “Esse moleque é doido! Esse moleque é doido!”

Resumo da ópera: até hoje, Chico Buarque nunca trocou meia-dúzia de palavras com seu maior fã em Manaus. Pior pra ele.

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