Causos de Bambas

O bodozal do Mestre Gudu

Postado por mlsmarcio

Em uma de suas apresentações no bumbódromo, o boi Garantido resolveu encenar o ritual do Kuarup, que é celebrado uma vez ao ano por até nove etnias indígenas (kamaiurá, xavante, mehinaku, waurá etc.) que fazem parte do alto Xingu. O ritual serve para homenagear os mortos. Cada membro falecido é representado por um tronco de madeira, denominado Kuarup, que passa por um longo ritual, antes e durante a cerimônia. A toada “Kuarup”, escolhida para o ritual, se transformou em um dos grandes hits daquele ano:

“Vai começar/ A grande festa do Xingu/ Todos os guerreiros preparados para o grande ritual/ Ecoa na mata o som do Uruá/ Flauta sagrada das tribos do Xingu/ Toda tribo canta e dança sem parar/ Kuarup, ritual Kamayurá/ Todos os pajés são convocados/ Para a festa do Xingu/ E muitas etnias se reúnem/ Para o grande ritual/ Kuarup é o tronco/ Do velho ancestral/ Ritual sagrado das tribos do Xingu/ Toda tribo canta e dança sem parar/ Kuarup, ritual Kamayurá”.

Nessa época, o compositor Inaldo Medeiros, irmão do autor da toada, Tony Medeiros, era o xerife dos galpões da Cidade Garantido e mantinha, a ferro e fogo, a ordem e a disciplina no lugar. Em uma determinada sexta-feira, a diretoria do boi não conseguiu levantar o dinheiro do pagamento semanal dos operários, aderecistas, artistas e demais artesões que se revezavam no QG fazendo as alegorias do bumbá, e a Cidade Garantido ficou em um baixo-astral de dar dó. Todo mundo injuriado.

Na noite de sexta, os diretores chamaram o xerife e informaram que ia sair um “vale” pra rapaziada na manhã de sábado. O pessoal foi embora meio ressabiado. No sábado, nova “barrigada” da diretoria, que nem deu as caras no lugar. Para evitar uma rebelião, Inaldo garantiu que o “vale” ia ser pago na manhã de domingo.

Por volta do meio-dia de domingo, Inaldo deu a triste notícia: dinheiro só na próxima semana. As mais de 200 pessoas, morrendo de fome, começaram a ir embora. Só quem permaneceu na Cidade Garantido, alheio a tudo e a todos, foi o Mestre Gudu, a “biba” mais assediada do pedaço. Instalado na sua baiuca, ele não parava de trabalhar.

Uns quinze minutos depois, Gudu, sorrateiramente, saiu de sua baiuca com duas dúzias de bodós em uma panela e se pôs a cortar as verduras, a fim de preparar uma caldeirada especial para seus “ajudantes” – cerca de 15 garotões marombeiros, cada um mais “malhado” do que o outro, que haviam permanecido escondidos na cidade-fantasma.

O local escolhido para o banquete dionisíaco foi o bucólico trapiche da Cidade Garantido, banhado pelo rio Amazonas.

Por volta de 13h30, quando a caldeirada começou a ser servida por Gudu, Inaldo Medeiros retornou à Cidade Garantido e, vendo aquilo, pensou tratar-se de uma “boca-livre comunitária”, como as muitas que ele próprio ajudava a patrocinar. Pegou logo um prato.

Mestre Gudu olhou de soslaio para ele e, enquanto mexia o caldo na panela, começou a falar, como se estivesse pensando em voz alta:

– É… pegar um prato sabe… na hora de colaborar, some… quando vem, não traz uma verdurinha, uma folhinha pra colocar na panela… mas quer comer igual uma piranha esfomeada…

O xerife entendeu a indireta e se encrespou:

– Olha, parente, eu tenho dinheiro pra pagar por toda essa merda e ainda sobra pra mim comer o teu rabo e o desses bodós todinhos…

Aí, levantou a pilha de pratos sobre a mesa e começou a quebrá-los, atirando um a um nas paredes de cimento, como se estivesse participando de um casamento grego. Depois, pegou a panela fumegante e despejou seu conteúdo no rio.

Mestre Gudu e seus “ajudantes”, claro, fugiram apavorados, antes que entrassem na porrada.

Na manhã seguinte, uma paródia da toada “Kuarup” já circulava na cidade:

“Vai começar/ O grande almoço do Gudu/ Todos os bofes no terreiro preparados para o grande bodozal/ Chegou Inaldo e foi tratado mal/ Peixe cozido só pros bofes do Gudu/ Todo mundo grita e corre sem parar/ O brabo do Inaldo vai brigar”.

Até hoje o compositor fica injuriado quando escuta a versão apócrifa.

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