Fevereiro de 1962. Ambos adolescentes e com pretensões literárias, Anibal Beça e Alexandre Otto costumavam visitar semanalmente o poeta Américo Antony, em sua residência, na rua Japurá, quase no canto da rua Joaquim Nabuco. O excêntrico “guru da Amazônia”, do alto de seus quase 60 anos, esperava ansiosamente pela visita dos moleques para brindá-los, em primeira mão, com a leitura de seus últimos sonetos.
Apesar de ter sido educado na Inglaterra, Américo Antony era uma figura rara que se orgulhava de suas origens indígenas: ele garantia que seu tetravô tinha sido o lendário tuxaua Manauí Camandry, um dos mais valorosos chefes dos índios Manaú, que dominavam a região do rio Negro, de Manaus até Barcelos, antes de terem sido dizimados pelos portugueses.
Autor em vida de um único livro de poemas, o festejado “Sonetos das Flores”, Américo Antony escreveu na capa do livro a seguinte advertência: “Estes versos são para serem lidos e meditados no mais profundo silêncio, quando o vaivém mundano ainda não haver maculado com as suas nódoas de ilusão o espelho puro, original e límpido das emoções verdadeiramente do Espírito”.
Nessa época em que era visitado pelos moleques, Antony já estava na sua bad trip de se achar um novo Mahatma Gandhi: completamente pelado, ele se cobria com um lençol encardido, devidamente enrolado em dobras para emular um sári indiano, e ficava circulando pelo quintal da residência entoando mantras em voz alta. Quando Anibal Beça e Alexandre Otto chegavam, tinha início um novo ritual:
– Xandico, meu filho, vá até a taberna do Zé Magalhães e me traga um vidro de café solúvel. Quando voltares, já me traga a lata de leite condensado, a lata de Nescau e um bule de água fervendo, que quero preparar um cappuccino para os meus convidados! Mas vê lá, hein! Me vá num pé e volte no outro!
Xandico era Alexandre da Macedônia Antony, seu filho mais velho.
Alguns minutos depois, Américo Antony entregava uma xícara para um dos convidados e começava a recitar seus poemas.
Quando Xandico retornava da taberna, Américo Antony pegava a lata de leite condensado, soprava em um dos furos da lata, despejando dentro da xícara tanto o leite condensado quanto uma quantidade indescritível de perdigotos, colocava, em seguida, uma colher de café solúvel, outra colher de Nescau, a água fervendo até a borda a xícara e, só então, vinha o toque final.
Para transformar a mistura em um cappuccino digno do nome, Américo Antony usava como colherinha uma gigantesca unha do dedo mindinho, que ele utilizava o tempo todo para retirar cera de ouvido.
Enquanto mexia com a unha na mistura dentro da xícara, para adiantar a diluição, o poeta ia recitando seus poemas.
Quando o cappuccino ficava pronto, ele oferecia a xícara a Anibal Beça, aparentemente seu pupilo favorito.
Anibal Beça, invariavelmente, agradecia a oferta e, com muito tato, explicava que estava fazendo dieta, ou que era alérgico a cacau, ou que era diabético, ou então prometia provar da iguaria na próxima vez.
A xícara era então passada para Alexandre Otto, que não podia recusar a oferta pela segunda vez porque seria uma indelicadeza inominável.
Além de beber o cappuccino com gosto, era de bom tom o convidado elogiar a beberagem, de preferência improvisando um soneto na hora.
Na semana seguinte, a presepada acontecia de novo.
Anibal era capaz de jurar de pés juntos que nunca provou do cappuccino do guru. Alguém acredita?…