Novembro de 1978. O grupo teatral À Margem faz uma primeira apresentação no Teatro Amazonas da peça “Nervos de Aço”, de autoria de Guto Rodrigues, com direção de Antonio Paulo Graça e cenografia de João Bosco Ladislau. A peça era um exemplo bem-acabado da contracultura que tomava conta do país naqueles anos de chumbo.
Os personagens principais eram dois artistas de vanguarda (Almir Graça e Jailson Bacre), alijados da indústria cultural e sobrevivendo no gueto em permanente estado de amargura e desespero. Como personagens secundários, um bêbado flamenguista (Domingos Leite) sempre com uma garrafa de pinga na mão e mais interessado em discutir futebol do que em fazer a revolução, e um pastor evangélico reacionário (Bosco Ladislau), que defendia ardorosamente o “Brasil grande” e a salvação das almas. Havia ainda um policial e alguns populares que entravam em cena mudos e saíam calados.
Sem dourar a pílula, o texto vigoroso de Guto Rodrigues expunha todas as mazelas do regime militar. No final da peça, durante a perseguição do policial a um dos artistas que havia acabado de sair de uma “boca de fumo”, uma bala perdida atingia o missionário evangélico, que caía pateticamente no centro do palco. Era um final tão inesperado e chocante quanto enfiar uma tesoura numa tomada de 220 volts.
A peça foi bastante aplaudida, mas o sempre exigente diretor Antonio Paulo Graça encrespou com a atuação do saudoso Domingos Leite: seu bêbado não tinha consistência, estava muito canastrão. Ou ele melhorava a composição do personagem ou seria afastado sumariamente da peça.
Na segunda apresentação, Domingos Leite resolveu apelar. Minutos antes de entrar no palco, ele detonou uma “meiota” de Tatuzinho no gargalo. Depois, com uma garrafa de Cocal zero bala na mão, começou a beber insistentemente até sua língua ficar completamente enrolada. Completamente bêbado, ele fez um bêbado perfeito.
No final da peça, momento antes de o pastor receber a bala perdida, Domingos Leite, num acesso de fúria pela derrota do seu Flamengo, arremessou com violência a garrafa de Cocal já vazia no palco. Voou caco de garrafa pra todo lado. Como aquele “caco” não estava no script, sobrou pro pastor.
Bosco Ladislau recebeu no meio do peito a bala perdida disparada pelo policial, procurou um local pra cair pateticamente morto no chão, mas o palco todo estava cheio de cacos de garrafa. Ele então resolveu morrer em pé, que nem Santo Antão, sob uma vaia ensurdecedora da plateia. Depois que as cortinas se fecharam, o diretor Antonio Paulo Graça, que nunca teve nervos de aço, queria comer o fígado do bêbado destrambelhado.