O ventríloquo, repentista e bonequeiro paraibano Paulo de Tarso (aka “Paulo Mamulengo”) chegou ao Amazonas em 1988. Veio com uma missão designada pela coordenação nacional do Morhan (Movimento de Reabilitação dos Portadores de Hanseníase): descobrir o porquê de o Amazonas ser campeão absoluto em casos de hanseníase, uma doença terceiro-mundista mais conhecida como “lepra”.
Paulo esteve no centro do furacão (Lábrea e Humaitá) e voltou para contar o que tinha visto – e que todo mundo sabe de cor e salteado, menos os nossos governantes: a lepra é resultado, basicamente, da falta de condições mínimas de higiene e alimentação.
Em Manaus, Paulo ouviu falar que o primeiro leprosário do Estado foi erigido no distrito de Paricatuba, no município de Iranduba, e que estava localizado no rio Negro, a uns 50 quilômetros acima da capital.
Descobriu, também, que o hospital-colônia de tratamento, mantido por religiosos italianos durante seis décadas, foi posteriormente desativado, nos anos 40, sob o argumento idiota de que os leprosos estavam contaminando o rio e, por extensão, a capital, já que a estação de captação de água de Manaus, localizada na Ponta do Ismael, ficava abaixo de Paricatuba. O governador responsável pela tragédia foi Álvaro Maia, um poetastro medíocre também conhecido como “Cabeleira”.
Paulo Mamulengo visitou o lugar e conversou com vários leprosos que haviam sobrevivido ao “pogrom”. Na época, quase todos os portadores de hanseníase foram trancafiados em barcos regionais, remetidos para Manaus e isolados num complexo hospitalar chamado Colônia Antônio Aleixo, que hoje virou um dos maiores bairros da Zona Leste.
Em Paricatuba, só escapou quem se escondeu no mato. Qualquer alusão aos quilombos não é simples coincidência. Revoltado, Paulo Mamulengo resolveu encampar a luta dos hansenianos daquele distrito.
Ele comprou uma casa, cujo quintal é o próprio rio Negro, e se estabeleceu no lugar, junto com sua esposa Rô, e os dois filhos do casal, Artur e Alberto. Apesar de ele ser portador do mal de Hansen, seus filhos e sua a esposa são absolutamente normais, o que derruba outro preconceito besta: o de que alguém “pega” lepra pelo simples contato físico.
Mais esclarecido sobre a doença que muitos “doutores” do Instituto Alfredo da Matta, Paulo Mamulengo logo se tornou porta-voz de Paricatuba. Na companhia de seus bonecos mamulengos recitando textos mezzo-humorísticos, mezzo-dramáticos, ele, à sua maneira, começou a conscientizar a comunidade sobre os seus direitos.
Tendo confeccionado o seu primeiro boneco de manipulação aos oito anos de idade, Paulo de Tarso percorreu vários caminhos até encontrar-se com a arte popular do mamulengo.
Em 1992, no Espaço Cultural Mar Azul, do capoeirista Joãozinho da Figueira (atualmente morando em Londres), Paulo de Tarso e o boneco Albino Caburé da Silva (aka “Negão”) apresentaram o espetáculo “Na Grota do Istopô Kalango”, em que a dupla recitava poemas, contava causos, desfiava repentes e canções populares e improvisava textos feitos na hora, a partir do noticiário dos jornais do dia.
Assim que começava o espetáculo, Paulo de Tarso falava para a plateia sobre sua experiência de vida, que vou tentar reproduzir ao sabor da memória:
– Posso ser considerado um recordista de vestibulares! – avisava. – Fiz cinco e passei em todos eles. Iniciei minha carreira de estudante na Universidade de Brasília, em 1972, onde fiz vestibular para Psicologia. Estudei menos de um ano. Só fiquei no curso até o dia em que me levaram para um laboratório e me mandaram abrir um rato! Que psicologia barata eu podia aprender com aquilo? Se fosse pelo menos um preá ou uma cutia…
– É mermo, macho? – intervia o boneco Negão.
– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Voltei para a Paraíba e estando lá de bobeira resolvia fazer vestibular para Educação Física. Era época de Olímpiadas e eu era um rapaz lindo, bonito e joiado. Resolvi ser atleta. Mas quando soube que tinha de acordar às 5h da manhã para correr 16 quilômetros todos os dias, desisti. Pulei para Educação Artística, porque queria ser artista. Lá encontrei um bocado de professores conservadores e metidos a catedráticos, ensinando alunos que estavam mais interessados em aprender tricô e crochê para ensinar aos aleijados. Era esse o conceito que se tinha de Educação Artística no governo militar e acho que de lá pra cá não mudou muita coisa…
– É mermo, macho? – intervia de novo o boneco Negão.
– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Aí voltei pra Brasília e fiz vestibular para Arquitetura. Estudei três anos. Eu passava oito horas diante de uma prancheta aprendendo a desenhar casa com piscina no lago Paranoá e depois pegava dois ônibus para ir dormir numa favela na Ceilândia. Não deu outra. Desisti.
– É mermo, macho? – intervia pela terceira vez o boneco Negão.
– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Aí, fiz vestibular para a Escola de Teatro Dulcina, também em Brasília, mas fiquei traumatizado porque todos os atores eram boiolas e as atrizes, sapatões. Resolvi seguir meu destino e retornei a Paraíba, para aprender com o Mestre Lucas a arte do mamulengo. É por isso que nós estamos aqui…
– Então vamos começar a fuleiragem, cabra da peste! – berrava o boneco Negão, já meio injuriado com tanta ladainha.
E haja causos. Dois deles, que achei altamente filosóficos, também vou transcrever de memória:
Desde pequeno Paulo Mamulengo reparava na mãe olhando o céu, catando sinal do tempo. Pôr do sol vermelho é geada braba. Picumã caindo, sol chorando, é chuva certa. “Neblina na serra, chuva na terra”, dizia um. “Neblina baixa, sol que racha”, repostava o outro.
Um dia, ainda moleque, capinava junto com o pai. A enxada batia no chão seco, tinia, repicava. O silêncio deles só pedia a chuva que não vinha. Olhavam pro céu, nada.
De repente, Paulo apurou o ouvido e abriu o verbo, satisfeito:
– Vai chover, pai. Sabiá cantou. Acabei de ouvir.
Seco, seu pai contestou:
– Qual o quê?… Sabiá não é Deus… Se ainda fosse macaco guariba, vá lá…
Até hoje o bonequeiro não entendeu a lógica do velho.
Numa outra ocasião, Paulo foi flagrado pela mãe sendo enrabado por um moleque da sua idade. Levou uma surra de criar bicho. Sua mãe contou pro pai o motivo do castigo infligido ao garoto. O velho não disse nada.
Uma semana depois, Paulo foi flagrado novamente pela mãe, dessa vez enrabando o referido moleque da sua idade. Levou outra surra de criar bicho. Sua mãe contou pro pai o motivo do castigo infligido ao garoto.
O velho se encrespou:
– Ô, mulher, desse jeito ocê vai dar um nós nas tripas no cerebelo do menino. Ele agora não sabe mais se é pra dar o cu ou se é pra comer, já que apanha do mesmo jeito… Não se meta mais nisso não, que eu mesmo vou conversar com ele…
Graças aos sábios conselhos do pai, Paulo Mamulengo se transformou em um espada matador de carteirinha.